Decisão sobre 'memória utilizável' pode prejudicar consumidor
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A decisão tomada pela Justiça de São Paulo, que obriga a Apple a informar a "memória utilizável" de aparelhos como iPhones e iPads pode parecer extremamente positiva, mas as consequências dessa decisão podem trazer ao mercado práticas ainda mais enganosas ou prejudiciais ao consumidor, e a complexidade dessas práticas pode criar um ambiente ainda mais difícil de ser regulamentado.
A Justiça desconsiderou o argumento de que a Apple não é capaz de estimar com precisão a quantidade de memória que será ocupada pelo sistema. Afinal, o aparelho recebe atualizações ao longo de sua vida, o que reduz a quantidade de memória disponível. Esse argumento é correto: as atualizações de fato mudam a quantidade de espaço que é necessária para o sistema, o que significa que uma estimativa de "memória utilizável" no momento da venda não informaria o consumidor de forma adequada. A Justiça discordou.
Nas palavras do juiz Felipe Poyares Miranda: "a necessidade de atualização periódica do sistema operacional para melhoria dos serviços não impede a requerida [Apple] de aferir antecipadamente qual a memória livre do aparelho, porque referidas atualizações são feitas quando o produto já está em posse do consumidor, após a retirada do estabelecimento comercial em que adquirido referido".
Em outras palavras, tanto faz qual é a utilização da memória depois que o aparelho já está nas mãos do consumidor. O que importa é o momento da venda.
Essa intepretação torna a decisão totalmente inócua e abre brecha para práticas que, no fim, não vão atender aos interesses dos consumidores. Por exemplo, um fabricante de um celular pode optar por não atualizar o sistema embutido de fábrica - mesmo quando há uma atualização - se isso significa que o aparelho terá que ser vendido com uma quantidade menor de "memória utilizável". O consumidor sai perdendo, pois terá que passar por um longo processo de configuração assim que ligar o celular.
De modo geral, haverá um incentivo claro em retardar a atualização ou a instalação de aplicativos para depois que o celular já está nas mãos do cliente, e provar a má-fé do fabricante nesse cenário é extremamente difícil, pois atualizações são lançadas frequentemente. Já é bastante normal que um celular informe a existência de atualizações na primeira vez em que é ligado.
As consequências podem ser ainda piores se a Justiça ampliar essa decisão e impor que um fabricante deve estimar o tamanho futuro de atualizações na "memória utilizável". Isso incentivaria fabricantes a represarem o repasse de atualizações aos aparelhos, ou mesmo a não repassarem as atualizações mais significativas e que ocupam mais espaço.
Se isso acontecer, os aparelhos mais baratos sofreriam mais, já que quem compra os modelos de ponta não aceitaria não receber as atualizações. Quem compra aparelhos mais baratos olharia muito mais o preço e o armazenamento "utilizável".
O consumidor também não tem um poder real de decisão sobre instalar ou não as atualizações. É essencial que se entenda isso: atualizar o aparelho não é uma opção. Deixar o aparelho desatualizado abre caminho para ataques virtuais e muitos outros problemas. Manter o sistema atualizado é uma prática básica de "higiene virtual".
Sendo assim, não é correto pensar que o "espaço utilizável" informado na hora de compra seguiria sendo válido porque a atualização é "opcional".
Portanto, qualquer regulamento que incentive fabricantes a deixarem as atualizações para depois da venda, ou que incentive fabricantes a simplesmente não lançarem atualizações, não vai ajudar os consumidores. E é exatamente essa a consequência que uma decisão que obrigue fabricantes a estimar a "memória utilizável" no momento da venda pode ter.
Como diz o ditado: de boas intenções, o inferno está cheio.
Felizmente, a decisão vale a penas para Apple, que trabalha com produtos mais caros e com um modelo diferente de atualizações e que é muito mais consistente que as atualizações para Android. Por enquanto, não há muito risco de problemas. A única decepção vai ficar com os consumidores, que logo vão descobrir que nem mesmo a tal "memória utilizável" ainda é utilizável depois da primeira atualização.
O processo foi movido pela Proteste (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor) e ainda cabe recurso.
(Foto: G1)
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