Por Rodrigo Rodrigues, g1 SP — São Paulo


  • Moradores de várias ruas da Vila Mariana, Zona Sul de SP, estão usando placas na frente de suas casas em protesto contra o assédio de construtoras.

  • Após a mudança do Plano Diretor Estratégico (PDE), houve aumento das abordagens de interessados em terrenos para construir prédios.

  • Regiões onde hoje só existem casas podem passar a ser ocupadas por edifícios que, por lei, não tem sequer limite de altura.

  • O g1 visitou várias ruas e ouviu histórias graves de invasão de privacidade, falta de respeito e criação de boatos que têm tirado a paz de moradores

  • Também tem sido gerada uma verdadeira guerra entre vizinhos que querem e os que não querem vender suas propriedades.

Assédio de construtoras cresce na Vila Mariana, e moradores protestam com placas

Assédio de construtoras cresce na Vila Mariana, e moradores protestam com placas

Cansados do assédio de construtoras que desejam comprar suas casas, moradores de várias ruas da Vila Mariana, na Zona Sul de São Paulo, estão colocando placas na frente de suas residências para protestar e tentar frear o apetite das empresas por terrenos na região.

Após a mudança do Plano Diretor Estratégico (PDE) em alguns quarteirões do bairro no ano passado, moradores narram o aumento das abordagens, fazendo com que placas com a frase "esta casa não está à venda" se espalhem pela região.

O g1 visitou várias dessas ruas e ouviu histórias graves de invasão de privacidade, falta de respeito e criação de boatos que têm tirado a paz entre os proprietários dessas casas. Também tem sido gerada uma verdadeira guerra entre vizinhos que querem e os que não querem vender suas propriedades (veja vídeo acima).

Moradores da Vila Mariana, Zona Sul de São Paulo, exibem placa anunciando que suas casas não estão à venda no bairro. — Foto: Rodrigo Rodrigues/g1

Um dos casos mais graves acontece no quarteirão das ruas Mantiqueira, Juaracê e Dona Inácia Uchôa. Desde o início do ano, a Incorporadora Magik assinou acordo de intenção de compra de algumas casas no entorno e espalhou placas na vizinhança dizendo que ali haverá em breve um novo empreendimento imobiliário.

Após as placas, a construtora começou a procurar a vizinhança alegando interesse em adquirir as casas de todo o quarteirão para expandir o projeto do suposto condomínio. O projeto ainda não tem nenhuma licença protocolada na Prefeitura de SP.

Mais de 40 ligações de incorporadoras

Alguns moradores disseram que receberam mais de 40 ligações de corretores da incorporadora.

“Eles ligam e mandam mensagens insistentemente, dizendo que já compraram todas as casas vizinhas e que a minha é a única que vai sobrar. E se a gente não vender, passaremos por transtornos durante os anos de construção, teremos riscos estruturais que podem até fazer a casa cair”, contou a engenheira Ana Amélia Feijó, que mora na rua Mantiqueira há 16 anos.

“Na primeira ligação, a gente fica desesperada e fala: ‘Meu Deus, o que será da minha família?’. Mas aí a gente começa a conversar com os vizinhos e entende que, na verdade, o que eles estão fazendo é terrorismo psicológico para nos obrigar a vender nossos imóveis. Oferecem, inclusive, um valor abaixo do mercado, para que a gente nem sequer consiga achar no bairro outro imóvel do mesmo tamanho”, disse a engenheira.

Ana Amélia é uma das moradoras que colocaram na porta da casa uma placa informando que o imóvel não está à venda.

A engenheira Ana Amélia, da rua Mantiqueira, é uma das moradoras que não quer vender sua casa no bairro para as incorporadoras. — Foto: Rodrigo Rodrigues/g1

Na articulação com os vizinhos, ela descobriu que a empresa na verdade assina com os proprietários um compromisso de compra e venda com validade e, caso a vizinhança tope negociar seus imóveis, o pagamento é feito. Do contrário, o negócio é desfeito.

O g1 procurou a Magik LZ, que disse, por meio de nota, que “prima pelo respeito a todos os envolvidos na cadeia de produção, de proprietários dos terrenos ou casas que adquire ao cliente final” (leia mais abaixo).

“Decidi que não vamos sair e vamos resistir a essa rede de mentiras e intrigas. Minha casa tem 140 m². Tenho duas filhas, cachorros. Com o dinheiro que eles oferecem, não dá para comprar nem um apartamento de 60 m² aqui na região”, disse.

Ana Amélia conta que, quando o proprietário se recusa a negociar ou falar com a empresa, a construtora começa a procurar os familiares, até mesmo fora do estado.

Placas nas casas da Rua Mantiqueira protestam contra o assédio das construtoras no bairro — Foto: Rodrigo Rodrigues/g1

Contato com familiares de proprietários

Em um dos casos, uma proprietária de imóvel foi hospitalizada com uma doença grave e teve que ser interditada temporariamente pela Justiça. Um dos filhos foi nomeado tutor e, após a decretação da intervenção pela Justiça, ele começou a receber contato da construtora.

Três vizinhos contam que os corretores da Magik LK foram pessoalmente à casa desse homem em outro bairro e chegaram a aparecer até na saída da escola dos filhos dele para tentar convencê-lo a vender o imóvel da mãe, que ainda estava hospitalizada.

O g1 procurou familiares da idosa, mas eles não quiseram dar entrevista, apesar de terem confirmado a história.

“Eles conseguem nossos dados pessoais, dos nossos parentes, a forma como a gente comprou o imóvel, se financiou ou não, quanto pagou. A nossa privacidade está absolutamente exposta. E muita gente está com medo do que eles podem fazer ou de quem são”, disse Ana Amélia.

Moradores de casas na Vila Mariana reclamam de abordagens abusivas de construtoras

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Um dos vizinhos dela também decidiu resistir à pressão imobiliária e não vender o imóvel. Ele e a família vivem há quatro anos na casa e fizeram uma reforma especial para adequar tudo às necessidades da família.

“Não sou contra negociação de mercado, nem o adensamento dos bairros, a verticalização, nem nada disso. Moro numa rua tranquila, investi uma grana enorme para reformar a minha casa, minha filha já está adaptada ao bairro, tem uma rotina escolar. Se eles querem nos tirar daqui, precisam nos indenizar por isso. Fazer terrorismo psicológico só nos faz pegar ojeriza”, disse ele, que não quis se identificar.

O rapaz e a esposa afirmaram que estão com medo do assédio da empresa.

“Outro dia eles fizeram campana aqui na porta para falar com um dos nossos vizinhos. Saí às 7h para levar a minha filha na creche e três homens já estavam num carro o aguardando na porta. Ficaram até as 16h, quando ele chegou, e o abordaram. Ele já tinha se recusado a negociar a casa, mas insistiram. É uma gente sem limites”, afirmou o morador.

Casas e postes na Vila Mariana exibem placas contra o assédio das construtoras para a construção de prédios no bairro. — Foto: Rodrigo Rodrigues/g1

O g1 também conversou com uma família que topou negociar com a empresa. Ao se reunirem com representantes da Magik LZ, ouviu a proposta de que a casa abriria espaço para que uma quadra de tênis fosse erguida no suposto empreendimento.

Quando a família questionou a incorporadora sobre a recusa da proposta e a solução que seria dada para possíveis danos estruturais do imóvel, a resposta da empresa foi lacônica: “A gente arruma, mas a gente tem muita má vontade com quem não vende”.

Nas ruas do bairro, além das placas que anunciam o desinteresse por negociar os imóveis, é fácil encontrar casas com placas que dizem "chega de prédios", geralmente colocadas por inquilinos que também estão insatisfeitos com a descaracterização do bairro e a presença constante das construtoras.

O que diz a Magik LZ

A construtora disse que “repudia e não compactua com atitudes desrespeitosas e agressivas”, mas que “faz parte do próprio negócio, transações que não são fechadas, finalizadas. E isso é entendido como algo natural: divergências são parte de uma democracia”.

O g1 também procurou o Sindicato da Habitação do Estado de São Paulo (Secovi-SP) para comentar o assunto, mas não recebeu retorno até a última atualização desta reportagem.

Placas da construtora Magik LZ nas casas anunciam breve lançamento imobiliário sem comprar as casas ao lado. Elas espalham pânico nas construtoras. — Foto: Rodrigo Rodrigues/g1

Assédio

A situação vivida pelos moradores da região da Rua Mantiqueira é a mesma por que passam há meses os moradores do quarteirão de casas do trecho entre as ruas Humberto I, Octavio de Moraes Dantas e Hildebrando Thomaz de Carvalho, também na Vila Mariana.

As duas regiões ficam distantes cerca de 2 km. Desde que os vereadores da Câmara Municipal de São Paulo derrubaram o veto do prefeito às mudanças de zoneamento na Vila Mariana – em outubro do ano passado - a vida deles se tornou “um verdadeiro inferno”, segundo narram.

O quarteirão passou de Zona Mista (ZM) - com residências diversificadas e autorização de pequenos comércios - para Zona de Estruturação Urbana (ZEU), onde a Prefeitura de São Paulo autoriza a construção de edifícios sem limite de altura.

A partir daí, os proprietários começaram a receber as insistentes ligações, mesmo sem nenhum interesse em colocar seus imóveis à venda.

'Invasão de privacidade inaceitável'

O casal de aposentados Flávio Carrança e Maria Luiza, moradores da rua Octávio de Moraes Dantas, na Vila Mariana. — Foto: Rodrigo Rodrigues/g1

Morador da Rua Octávio de Moraes há 30 anos, o aposentado Flávio Carrança, de 72, diz que foi comunicado por um funcionário da construtora You, Inc sobre o suposto fim iminente da vizinhança.

A empresa informou para a família ter comprado 17 das 34 casas do quarteirão e avisou que iria demolir tudo imediatamente.

“Eles me abordaram na porta de casa dizendo que já tinham comprado todas as casas vizinhas e que, na semana seguinte, elas seriam derrubadas, e tapumes seriam instalados. E se eu não vendesse a minha casa, a família ficaria isolada, correndo o risco de o imóvel ter problemas estruturais sérios”, contou.

Nos dias subsequentes, a incorporadora também instalou placas em dois imóveis anunciando o novo lançamento imobiliário, espalhando pânico na vizinhança.

Flávio e a esposa, Maria Luiza, se articularam com os vizinhos e também resolveram colocar uma placa dizendo que a casa da família não estava à venda, a exemplo de outros vizinhos.

“É um assédio imoral. Quando a gente não quer ouvir a proposta e bloqueia as mensagens, eles ligam para os nossos filhos no interior. Ligaram para a minha filha em outra cidade pedindo que ela nos convencesse a vender o imóvel. Uma invasão de privacidade inaceitável”, contou Maria Luiza.

Casas com placas contra o assédio das construtoras em casas da Vila Mariana, Zona Sul de São Paulo. — Foto: Rodrigo Rodrigues/g1

O casal Carrança se uniu aos vizinhos Adriana Coppi e Fernando Rangel, que também foram assediados pela You, Inc através de uma subsidiária da incorporadora chamada Madala. Eles dizem que a empresa foi contratada pela empreiteira para negociar os imóveis.

Adriana Coppi vive na Travessa Humberto I desde 2014, onde estabeleceu uma vida confortável, e o marido, escritor, instalou a sede da pequena editora familiar que tocam.

A atriz afirma que, após se negar a vender o imóvel e bloquear os corretores da Madala e da You, Inc no WhatsApp, o marido começou a ser procurado insistentemente.

“É um desgaste que está deixando a gente doente. Tenho crises de ansiedade e insônia com essa história toda. Se eu quisesse vender a minha casa, eu mesma tinha colocado uma placa na frente e anunciado a intenção de negociar o imóvel”, diz Adriana Coppi.

A atriz conta ainda que, além do assédio, a construtora espalha boatos e orienta que os vizinhos que têm intenção de vender também auxiliem no convencimento dos demais.

“Eles causam uma rede de intrigas que envenena a convivência pacífica, nos jogando uns contra os outros. Porque após assinarem o contrato de intenção de venda, deixam claro que o cara só vai receber o dinheiro se eu topar vender a minha casa. Ora, se meu vizinho quer vender a casa dele, ótimo. É um direito dele. Mas me obrigar a isso é um absurdo completo que fere meu direito de propriedade e a minha privacidade”, contou.

No dia anterior à visita do g1 ao local, Flávio Carrança contou que tinha recebido a visita de um vizinho pedindo que ele não desse mais entrevistas sobre o assédio das empreiteiras para evitar “melar o negócio dele”.

“O meu vizinho tem todo o direito de negociar o imóvel que é dele. Mas eu tenho o meu direito de me articular com os que querem permanecer aqui. O direito de propriedade dele é o mesmo que o meu”, contou o aposentado.

O casal Adriana Coppi e Fernando Rangel, moradores da rua Humberto I, também não quer vender a casa onde vive — Foto: Rodrigo Rodrigues/g1

Engenheiro contratado para investigar possíveis nascentes

O grupo da Humberto I e Octávio de Moraes Dantas contratou um engenheiro ambiental por conta própria para mapear as nascentes de rio que passam pelo local e, assim, tentar reverter a mudança de zoneamento feita pelos vereadores nesse trecho do bairro.

Na frente da casa deles corre um fluxo de água constante e forte, que indica a possível presença de nascentes de rios que alimentam o lago do Parque Ibirapuera.

A comunidade do trecho conta que, após a contratação do especialista, um boato surgiu dizendo que eles queriam tombar a quadra, impedindo que qualquer outro imóvel fosse vendido naquele quarteirão.

“Ninguém sabe quem espalhou essa história sem pé nem cabeça, mas começamos a ser procurados por quem tem interesse em vender, dizendo que a gente estava prejudicando a vida e os negócios deles com essa história de tombamento. Não existe nenhum pedido de tombamento. Parece coincidência, mas o envenenamento e o conflito entre vizinhos fazem parte da estratégia deles de atuação, como temos visto em outras ruas do bairro”, disse Adriana Coppi.

Água verte 24 horas na rua Octávio de Moraes Dantas, na Vila Mariana, e indica presença de nascente de rio. Rua é alvo de assédio das construtoras. — Foto: Rodrigo Rodrigues/g1

O que diz a You,Inc

Por meio de nota, a You, Inc disse que “desde o fim de outubro não tem mais interesse neste terreno da Vila Mariana”.

A empresa também afirmou que “não tem relação, controle ou responsabilidade sobre a atuação desses profissionais, já que eles operam de forma independente”, se referindo às subsidiárias contratadas.

“A incorporadora ressalta que, em mais de 15 anos de atuação, sua abordagem sempre foi marcada por respeito e profissionalismo, além de nunca ter passado por problemas ou reclamações parecidas”, afirmou.

Manual de resistência

Longe dali, no Largo Ana Rosa, na Rua Domingos de Morais, a oficial de Justiça aposentada Angela Baralla, de 75 anos, vive o mesmo drama. Ela tem um imóvel familiar de cerca de 200 m² na região, que é há anos cobiçada pelo mercado imobiliário.

Após a mudança no Plano Diretor no ano passado, o assédio aumentou.

“A minha vida virou um inferno. Diversas construtoras ligam todos os dias. É tanto nome diferente que nem decoro os nomes das empresas. Mas digo sempre o mesmo: ‘Não tenho interesse em vender.' É a minha fonte de sustento. Para mim, minha filha e meu neto, e não vou me desfazer dela. Tenho um inquilino ocupando por cinco anos e qualquer venda está descartada'. Mas eles insistem, insistem e insistem”, contou.

“Não sei como conseguem meu telefone, que não está na lista telefônica. Sou uma idosa com locomoção prejudicada e eu só quero a paz de continuar tocando a vida e usufruindo do único bem deixado pelos meus pais para mim”, afirmou.

“É desolador [o que os vereadores fizeram]. Ao mudar a lei sem nos consultar, eles nos deixaram sozinhos, e a gente tem que lutar por conta própria. Nos deixaram à própria sorte. Precisamos de um respaldo maior do município para lidar com isso. Porque os técnicos da própria prefeitura foram contra a mudança do zoneamento, e o prefeito vetou. Mas eles derrubaram o veto, atendendo sei lá que interesses”, afirmou Adriana Coppi, da Travessa Humberto I.

A reportagem procurou a Câmara Municipal de SP para falar sobre o assunto, mas não recebeu retorno até a última atualização deste texto.

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Para lidar com esse assédio, os moradores se articulam em várias ruas do bairro para criar um “manual contra o assédio” e espalhar entre os proprietários que estão vivendo esse clima de medo narrado na reportagem.

“A ideia é fazer um manual mostrando como é o modo de operação das construtoras e impedir que as famílias se desesperem. Ele vai ter ideias de atuação como essa das placas e também sugestões de como fazer dentro da lei para impedir o assédio desenfreado”, contou Ana Amélia, da rua Mantiqueira.

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