Operação da polícia na Cracolândia em 2022 — Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO CONTEÚDO
Há pelo menos uma década, a Cracolândia, no Centro de São Paulo é alvo de operações policiais, como a Caronte, no ano passado, que tinha como objetivo prender usuários de drogas. Segundo a pesquisa "Operação Cachimbo: relatório das detenções em massa realizadas na Cracolândia", produzido pelo Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, obtido com exclusividade pelo g1, a operação não surtiu o efeito pretendido de diminuir o número de usuários nas ruas.
Só a sexta fase da Operação Caronte, de setembro a novembro de 2022, fez 641 detenções, de 535 pessoas, média de 15 prisões por dia, e três dias de internação. Mas todo esse gigantismo nos números policiais, não refletiu em condenações na Justiça, de acordo com o relatório. Em 90% dos casos analisados, houve trancamento ou arquivamento do termo circunstanciado.
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Principais motivos para o trancamento ou arquivamento das ações contra os usuários de drogas:
- Princípio da insignificância
- Questionável a constitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas, nos termos de recurso extraordinário do Supremo Tribunal Federal (STF)
- Os direitos constitucionais à vida privada e à intimidade
- Princípio da intervenção mínima
Defensoria aponta prisões ilegais na Cracolândia
Até o fechamento da pesquisa, em julho deste ano, o Ministério Público não apresentou recurso de apelação ou qualquer manifestação no sentido de reverter os trancamentos dos processos. O MP também afirmou que a conduta de prender um usuário só com o cachimbo, sem a droga, como na maioria dos casos (veja abaixo), é ilegal.
Para a defensora pública Fernanda Balera, coordenadora da pesquisa, esse tipo de operação afetou significativamente a possibilidade de outro tipo de atuação com os usuários de drogas na região da Cracolândia.
"Nos últimos dez anos, a repressão policial tem sido utilizada para tratar a questão social da Cracolândia, inclusive como suposto ponto de partida para a oferta de acesso aos serviços de saúde. Nesse tempo, é possível constatar que tal opção política gerou a incriminação de variadas pessoas em situação de rua, ampliou os conflitos na região central de São Paulo e afetou sobremaneira a boa condução das políticas de assistência social e saúde."
"Para além disso, é preciso ter em conta que o recrudescimento da violência policial nos últimos anos fez com que a atuação no território se desse em regime de emergência. A improvisação de serviços e fluxos de atendimento têm impedido a construção de proposições mais efetivas".
Policial aponta arma para usuários de droga durante operação em 2022 — Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO CONTEÚDO
Destaques da pesquisa:
- 53 processos judiciais analisados relacionados a 641 detenções
- Média de 12 pessoas detidas em cada processo judicial analisado
- 91 pessoas foram detidas mais de uma vez no período de três meses
- 97,6% das detenções foram registradas no 77º Distrito Policial
- 86% dos detidos são homens e 14% mulheres
- 63,67% são negros, 30,7% brancos, 0,2% amarelos e 4,5% sem informação
- 86,7% não tinham endereço fixo de moradia registrado
- Prevalece a resposta 'sem informação' aos parâmetros de estado civil, escolaridade e profissão
- 61,2% das internações solicitadas pelo CAPS IV
- 3 dias foi o período mais frequente das internações
- 73,6% dos casos foram encontrados apenas "resquícios e sujidades" de substâncias ilícitas, obtidas a partir da amostra dos cachimbos periciados
A pesquisa mostrou que a operação só reforçou o efeito de "porta giratória entre a delegacia e as cenas de uso".
"A relação entre estar nas ruas do Centro de São Paulo e ser conduzido às carceragens da Polícia Civil parece indicar uma reatualização de um velho modo de gerir a ordem urbana e estabelecer fronteiras no espaço público, em que o espectro da prisão torna-se modo de controle e ameaça da população vulnerável", diz o relatório.
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Além disso, o Núcleo percebeu que houve "massificação nos processos judiciais". Tanto pelo viés quantitativo, do total de pessoas presas conjuntamente e registradas sob um único procedimento judicial, como no qualitativo, a automatização nas formas de registro dos acontecimentos e das informações sobre as pessoas detidas na operação, que criou uma sensação durante a leitura de que os processos eram iguais.
"Excertos idênticos de textos foram reproduzidos indistintamente e com pouco cuidado a partir de um modelo comum, num verdadeiro 'copia e cola' de informações e descrições", diz o relatório.
Por que cracolândia segue sem solução em SP?
Em entrevista coletiva no dia 18 de julho, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) admitiu a ineficácia da estratégia adotada para lidar com a questão dos dependentes químicos na região central. “A gente tá conseguindo reter 18% das pessoas que estão indo para as comunidades terapêuticas. Então, a cada 100 que a gente manda 18 ficam e 82 voltam pra Cracolândia. É um desafio, é um trabalho diário”.
Contudo, Tarcísio não deu sinais de que o modus operandi mudará, apenas afirmou que irá reforçar a atuação das forças de segurança pública.
“Em breve, nós vamos instalar mais uma companhia da polícia militar no Centro. Em fevereiro do ano que vem, a gente vai ter um batalhão instalado lá. Nós vamos aumentar brutalmente o efetivo, vamos trabalhar com monitoramento e vamos tentar conduzir essas pessoas para onde a gente vai conseguir prestar uma assistência da melhor forma possível”, disse o governador.
Na mesma ocasião, Tarcísio anunciou que tinha planos de mudar o “fluxo” de lugar, levá-lo para o Bom Retiro. Porém, dois dias depois, recuou na ideia.
Situação dramática de dependentes de crack volta a desafiar autoridades em São Paulo
A Secretaria da Segurança Pública informou, por meio de nota, que a "atual gestão intensificou as ações na região central de São Paulo, com foco na prisão dos principais traficantes e na integração das ações e operações conjuntas objetivando ampliar a segurança para todos os moradores, trabalhadores e frequentadores da região" (veja nota completa abaixo).
Em nota, a Prefeitura de São Paulo afirmou que, durante a 6ª fase da Operação Caronte, suas equipes de assistência social que atendem a região da Cracolândia realizaram cerca de 24,3 mil abordagens e 6,9 mil encaminhamentos para equipamentos de saúde e acolhimento.
A gestão municipal também destacou o trabalho conjunto que realiza com o governo estadual na região central da cidade e o incremento de aproximadamente 400 agentes no efetivo da GCM voltado para essa área. A atuação dos guardas teria como objetivo mediar e evitar possíveis conflitos durante a execução de serviços da prefeitura na Cracolândia.
Cachimbo
Em grande parte das detenções da sexta fase da Operação Caronte, o simples fato de portar um cachimbo foi o suficiente para justificar a detenção com base no artigo 28 da Lei de Drogas 11.343/2006.
Mas, diferentemente do que ocorre no caso do tráfico de drogas, não é considerado crime portar instrumentos ou objetos destinados ao uso de drogas para consumo pessoal. Apenas a conduta de "adquirir", "guardar", "ter em depósito" ou "transportar" a droga a ser usada individualmente para consumo é considerada crime.
"Em 567 (88,5%) dos casos analisados, o laudo pericial das drogas, considerado pelos tribunais como prova essencial para comprovação da materialidade da conduta, foi juntado aos autos. Nesses laudos, o cachimbo foi o principal objeto apreendido como 'vestígio' da prova de uso de drogas. No total de 567 registros sobre pessoas detidas com laudo, foram apreendidos 556 cachimbos. Além dos cachimbos, também foram apreendidas comas pessoas isqueiros, tubos de metal, microtubo plástico".
Um dos usuários atendidos pelo sistema de saúde chegou até a renomear a Operação Caronte para "Operação Cachimbo", segundo o relatório.
- Pessoa atendida: "A Operação Cachimbo, eles estão pegando qualquer pessoa que está com cachimbo na mão, que tenha um cachimbo, tão levando para delegacia e tão fazendo uma espécie de internação compulsória. Mas isso não existe, porque internar a pessoa compulsoriamente é sequestro e cárcere privado.
- Defensoria: E você já foi para a delegacia alguma vez?
- Pessoa atendida: Três vezes, em menos de uma semana.
- Defensoria: E o que que eles alegam para levar você para delegacia?
- Pessoa atendida: Eles falam assim: 'cadê o cachimbo, cadê o cachimbo?, Se tiver o cachimbo na mão, eles pegam e levam você.
- Defensoria: E mesmo se não tem droga no cachimbo? Como é isso?
- Pessoa atendida: sem droga, sem nada! Se tiver um cachimbo na mão, eles levam".
Recorrentemente, as prisões ocorreram perto do 77º Distrito Policial, na Alameda Glete, nº 827, sendo a maioria no máximo a 2 km da delegacia, de acordo com o estudo.
Ao final do relatório, o Núcleo recomenda que a porta de entrada para as políticas de saúde e assistência social não pode ser a das forças de segurança pública ou pelo sistema de Justiça. Também recomendam a adoção de políticas reparatórias para a população que sofreu os efeitos da criminalização do consumo de drogas para uso pessoal, em especial das 535 pessoas detidas entre setembro e novembro de 2022. Indicam ainda a necessidade de intensificação de políticas públicas e intervenções psicossociais na Cracolândia.
Um ofício com o relatório foi enviado ao governo do estado.
O que diz a SSP
"A atual gestão da Secretaria da Segurança Pública intensificou as ações na região central de São Paulo, com foco na prisão dos principais traficantes e na integração das ações e operações conjuntas objetivando ampliar a segurança para todos os moradores, trabalhadores e frequentadores da região.
O resultado dessa ação pode ser acompanhado semana a semana no sistema de monitoramento das Cenas Abertas de Uso disponibilizado no portal da SSP, efetivando o compromisso com a transparência da Pasta e com o dever de prestação de contas com a sociedade.
Durante os seis primeiros meses deste ano, 1.322 pessoas foram presas/apreendidas na região, representando um aumento de 68,4% em comparação ao mesmo período de 2022. Para ilustrar o compromisso das forças de segurança na Cracolândia, o 3º Distrito Policial (Campos Elíseos) prendeu um homem, de 44 anos, na última quarta-feira (26). O suspeito é considerado um dos principais fornecedores de crack para a região. Durante a detenção, o indivíduo foi encontrado com 1,5 kg da droga e R$12 mil, na Rua dos Andradas, no bairro República, também no centro da cidade."