Comunidade Renascer, em Piracicaba — Foto: Júlia Heloisa Silva/ g1
O Supremo Tribunal Federal (STF) acolheu um recurso e decidiu validar uma lei originada de projeto de iniciativa popular que prevê acolhimento social de moradores de ocupações que são alvo de despejo, em Piracicaba (SP). A decisão, no entanto, vai valer apenas para ocupações de áreas públicas.
O objetivo da lei é minimizar os impactos sociais das reintegrações de posse determinadas pela Justiça na cidade, através do estabelecimento de uma série de condutas a serem adotadas pelo poder público para garantir que os processos ocorram de forma humanizada.
De acordo com o texto, as ordens de despejo ou remoção na cidade devem obedecer os seguintes critérios:
- Garantia de habitação às famílias vulneráveis, sem ameaça de remoção;
- Manutenção do acesso a serviços de comunicação, energia elétrica, água potável, saneamento e coleta de lixo;
- Proteção contra intempéries climáticas ou ameaças à saúde e à vida;
- Acesso aos meios de subsistência, inclusive acesso à terra, infraestrutura, fontes de renda e trabalho;
- Privacidade, segurança e proteção contra violência.
O texto também estabelece que o poder público deve notificar as pessoas que serão desalojadas; realizar audiência de mediação entre as partes; e inserir as pessoas removidas em programas e políticas sociais.
Moradora em frente à sua casa na Comunidade Renascer, em Piracicaba — Foto: Júlia Heloisa Silva/ g1
Contestada pela prefeitura na Justiça
Após ser aprovada e colocada em vigor pela Câmara, a chamada "Lei do Despejo Zero" foi contestada na Justiça pela prefeitura, que apontou que ela é inconstitucional. Então, foi suspensa por meio de uma liminar, em abril de 2023, e julgada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em setembro do mesmo ano.
Na ação, a prefeitura argumenta que a lei trata de questões que invadem a competência do Poder Executivo, que é o responsável por tratar da organização do solo urbano e programas de moradia. Também aponta que gera despesas com logística e alojamento de pessoas e pertences após despejos, sem apontar de onde vai vir o recurso para o custeio.
Afirma, ainda, que "a aprovação da referida lei tem efeito nefasto sobre a ocupação do solo no Município de Piracicaba, pois estimula sobremaneira o surgimento de ocupações irregulares no perímetro do Município, o que vem sendo combatido pela Administração Municipal e órgãos fiscalizatórios, inclusive o Ministério Público do Estado de São Paulo".
Comunidade Renascer, em Piracicaba — Foto: Samantha Silva/G1
'Alinhada aos direitos sociais', diz ministro
Em decisão sobre o caso, o ministro Dias Toffoli argumentou que uma decisão anterior do Supremo já definiu que não invadem competência da prefeitura as leis que, embora criem despesas para administração, não tratam "de sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos". E considerou que esse é o caso da "Lei do Despejo Zero".
Toffoli ainda citou outra decisão anterior do STF que aponta que não infringe a separação de poderes a lei de iniciativa popular que concretiza direitos sociais previstos na Constituição, o que também considerou que é o caso da lei de Piracicaba.
Por outro lado, não manteve na lei a extensão do acolhimento a casos de ocupações de áreas particulares, por violação da Constituição.
"Constato, portanto, à exceção dos dispositivos no parágrafo acima citados [ocupações de áreas particulares], que, a legislação municipal, além de estar em conformidade com a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, [...] está alinhada aos ditames constitucionais referentes aos direitos sociais à moradia e à saúde e à dignidade da pessoa humana", decidiu.
O g1 questionou a Prefeitura de Piracicaba a respeito da decisão e aguarda um retorno.
ARQUIVO: Moradores da Comunidade Renascer fazem ato por moradia em Piracicaba — Foto: Bruno Leoni
'Passo importante na garantia do direito à moradia'
Em nota, o Coletivo Despejo Zero de Piracicaba, que encampou a defesa da lei, afirmou que ela é entendida pelos moradores da região e movimentos populares como "um passo importante na garantia do direito constitucional à moradia e dignidade".
"A participação popular das comunidades foi fundamental pra conseguir aprovar uma lei como essa, desfavorável aos interesses da política dominante. Todas as votações foram acompanhadas de intensas mobilizações populares, que pressionaram a Câmara. As comunidades tiveram assembleias em que o texto foi apresentado, debatido e elaborado. E todo esse processo de luta teve o apoio de diversas organizações populares, advocacia e arquitetura popular, partidos políticos e movimentos sociais", contextualizou Caio Garcia, advogado popular que defendeu a lei na ação.
10 mil em favelas e comunidades
Novos dados do Censo 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que Piracicaba possui 10.863 pessoas vivendo em favelas e comunidades urbanas.
De acordo com as estatísticas, existem 16 áreas com essas denominações na metrópole, que concentraram um total de 4.590 moradias.
Entre os moradores, 5.326 são mulheres e 5.537, homens. A idade mediana dessa população (indicador que divide uma população em dois grupos de tamanhos iguais) é de 26 anos.
Conforme o g1 mostrou em novembro, metade dos 649 moradores da Comunidade Renascer, formada em uma área particular que foi ocupada, em Piracicaba, são crianças, adolescentes, pessoas com deficiência (PCDs), gestantes, idosos ou doentes crônicos.
ARQUIVO: Moradores se reuniram em frente à Câmara durante manifestação para defender o projeto da Lei Despejo Zero — Foto: Caio Garcia Figueiredo