Cientista de Campinas estuda combate à Covid-19 em Havard após morte do pai pela doença
Uma pesquisadora brasileira transformou o luto pela perda do pai, por Covid-19, em luta para entender por que a doença pode afetar pessoas saudáveis de forma grave. O resultado desse trabalho, uma homenagem da pós-doutoranda Marcella Cardoso ao pai, foi publicado em uma das revistas científicas mais renomadas do mundo.
Praticante de atividades físicas e sem nenhuma comorbidade, Luiz Carlos Cardoso, de 67 anos, morreu por Covid-19 em março de 2021 em Campinas (SP). Marcella, que fazia doutorado em parceria com a Universidade de Harvard, mudou a área de estudo para entender o mecanismo que pode ter agravado a doença no pai.
"Meu pai estava em absolutamente tudo que eu pensava ,tudo o que eu falava, em todas as minhas ideias, em todas as hipóteses. Foi uma honra, ele estar comigo em todos os momentos dessa pesquisa. Então para mim realmente essa conquista tem um sabor excepcional. Acho que a mensagem que fica é não foi em vão, sabe?"
Luiz Carlos Cardoso, pai de Marcella — Foto: Arquivo pessoal
E deu certo. Em abril, a agora cientista contratada pela escola de medicina de Harvard do Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos, publicou um estudo, na renomada revista cientifica Cell, que revelou a proteína específica utilizada como ferramenta pelo vírus Sars-Cov-2 para driblar o sistema imunológico.
Na prática, a brasileira descobriu que o sistema imunológico tem dificuldade de combater o vírus da Covid-19 por conta de um mecanismo que "esconde" a presença do vírus no organismo. Com a descoberta, foi possível encontrar uma explicação para o agravamento repentino da Covid em pacientes que não apresentam comorbidades, como era o caso do pai de Marcella.
O trabalho também possibilitou a descoberta de um medicamento promissor. Uma imunoterapia viral que tem potencial para tratar formas graves de infecções virais, de modo a realizar um tratamento mais direcionado e efetivo, aumentando a chance de recuperação.
Motivação da pesquisa
Marcella Cardoso — Foto: Arquivo pessoal
A Covid-19 só entrou em pauta para a pesquisa de Marcella com a perda repentina de seu pai. Na época, a cientista estava nos Estado Unidos finalizando seu doutorado em oncologia ginecológica e mamária, em colaboração com a Universidade de Harvard, e teve que retornar as pressas para o Brasil. Sem tempo de processar tudo o que havia acontecido, o que sobrou para Marcella foram perguntas.
"Eu quis saber o porque um paciente que não tinha nenhuma comorbidade e que estava se recuperando muito bem, de repente desenvolve a fase aguda, tem um decaimento muito grande da infecção, que acaba evoluindo para a forma severa da doença e acaba também evoluindo ao óbito. Então por que que isso acontece? Qual que é esse mecanismo por trás de tudo isso? foram essas perguntas que viraram uma hipótese que norteou toda a nossa pesquisa"
Parceria com o Brasil
Retornando aos Estados Unidos e após defender sua tese de doutorado, Marcella foi convidada para desenvolver estudos sobre imunoterapia e câncer de mama na escola de medicina de Harvard do Hospital Geral de Massachusetts. Em meio a oportunidade e diante da realidade enfrentada, ela pediu para liderar uma pesquisa sobre a Covid-19.
Marcella foi convidada para trabalhar na escola de medicina de Harvard do Hospital Geral de Massachusetts, onde pediu para liderar uma pesquisa sobre a Covid-19 — Foto: Arquivo pessoal
Motivada pelo compromisso de usar seu espaço de influência para trazer o Brasil ao protagonismo, ela conseguiu que o estudo fosse realizado em parceria com o Hospital de Clínicas da Unicamp, que cedeu amostras de sangue coletadas durante a pandemia e que já haviam sido objeto de outras pesquisas. O material ajudou os pesquisadores a observar, em detalhes, como as células se comportam diante de um ataque viral.
"A partir de todas as amostras a gente fez todos os nossos experimentos com esses pacientes. Então para você ter uma ideia da magnitude, a gente tinha cerca de 30 amostras de pacientes americanos, já do Brasil a gente trouxe mais de 100".
Com grande parte de sua trajetória acadêmica realizada na Unicamp, Marcella compartilha sua satisfação em ter conseguido tornar sua pesquisa minimamente "verde e amarela" e chama a atenção para a importância de incentivar a pesquisa brasileira.
"Geralmente, as pesquisas relacionadas ao Brasil carregam o estigma da escassez e das doenças típicas do terceiro mundo. Mas eu queria que nosso país pudesse ser olhado de outra forma."
"Não tenho como deixar de exaltar o quanto que o nosso país forma cientistas brilhantes, com capacidades múltiplas interdisciplinares. A gente consegue, às vezes com pouco fazer muito, e quando a gente vem para um ecossistema mais favorável. Aí a gente voa né?"
Missão cumprida
Marcella conta que a lembrança de seu pai esteve presente a todo momento em seu estudo. Para ela a sensação final é de missão cumprida, não apenas por ter encontrado a motivação do óbito de seu pai, mas também pelo papel que sua pesquisa desempenhará no tratamento de outros pacientes com infecções virais.
*Reportagem sob supervisão de João Gabriel Alvarenga