10/07/2013 22h55 - Atualizado em 11/07/2013 02h21

‘Nos prenderam sem perguntar nada’, diz réu do caso Kiss após audiência

Luciano Leão nega que era produtor da banda Gurizada Fandangueira.
Segundo denúncia, ele é responsável pelo artefato que provocou incêndio.

Felipe TrudaDo G1 RS, em Santa Maria

Réus do caso Kiss audiência Santa Maria (Foto: Felipe Truda/G1)Luciano (em pé, ao fundo) e Marcelo (em pé, à frente) chegam para audiência (Foto: Felipe Truda/G1)

Um dos acusados por homicídio doloso no caso do incêndio da boate Kiss, Luciano Bonilha Leão falou rapidamente ao G1 enquanto se preparava para deixar o Salão do Júri de Santa Maria após a audiência com vítimas realizada nesta quarta-feira (10). Acompanhado do advogado Gilberto Carlos Weber, ele disse que não era o produtor da banda Gurizada Fandangueira, ao contrário do que aponta a denúncia aceita pela Justiça.

“As pessoas falam que eu era o produtor da banda, mas nunca fui. Eu era funcionário, era ‘roadie’. Mas no dia em que aconteceu (a tragédia) disseram que eu era produtor e saíram prendendo todo mundo. Nos prenderam sem perguntar nada”, desabafou o réu, que vem comparecendo a todas as audiências do processo criminal.

Luciano Bonilha Leão (E, na foto) na audiência (Foto: Márcio Luiz/G1)Luciano Bonilha Leão (E) nega que era produtor da
banda Gurizada Fandangueira (Foto: Márcio Luiz/G1)

Responsável pela defesa de Leão, Weber diz que tem como estratégia provar à Justiça que seu cliente apenas cumpria ordens do gaiteiro Danilo Jaques, o único integrante do grupo a morrer na tragédia do dia 27 de janeiro, que resultou em 242 mortes. Ele acredita que todos os depoimentos de vítimas tomados até agora vêm comprovando a tese.

Segundo o advogado, o relato desta quarta-feira (10) do ex-operador de áudio da banda Venâncio da Silva Anschau prova que a decisão final não era de seu cliente. O funcionário da banda disse que o show com o artefato pirotécnico que causou o incêndio na casa noturna havia parado de ser realizado até a entrada Luciano na banda, quando voltou a ser utilizado.

“Outra pessoa fazia, mas a falta de pessoal impediu por algum tempo o uso do artefato pirotécnico. Com a entrada dele, o Danilo reativou isso e o Luciano cumpriu determinações”, declarou o advogado.

Um dos responsáveis pela acusação, no entanto, contesta a tese do advogado. Para o promotor Joel Dutra, tanto a defesa de Leão quanto a do vocalista Marcelo de Jesus dos Santos adotaram a estratégia de apontar Danilo como o responsável pelas decisões da banda, entre elas o uso de artefatos pirotécnicos durante as apresentações do grupo. 

“Nossa preocupação não era se ele era o gerente da banda ou coisa que o valha, mas está acontecendo algo que já imaginávamos. Uma das estratégias em relação aos músicos é de empurrar a responsabilidade a quem já morreu. A gerência da banda não implica que o gerente era o  responsável pelo artefato”, declarou a promotor.

No quinto dia de audiências sobre o caso na Justiça de Santa Maria (outras três foram realizadas no final de junho), cinco pessoas prestaram depoimentos. Uma ex-funcionária da casa, dois clientes e dois ex-integrantes da banda Gurizada Fandangueira. A ex-funcionária, Bruna Claussen da Silva, era uma das quatro caixas da boate. Ela disse que os ex-sócios Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr planejavam realizar uma obra na boate em fevereiro.

“Vi o Kiko e o Mauro conversando sobre uma reforma na entrada, que seria feita em fevereiro. Eles gesticulavam e um deles apontava para uma parede”, disse a menina.

Dutra entende que declaração indica a participação de Hoffmann na gerência da casa noturna. “A moça de hoje, por exemplo, mostra que o Mauro conversava com o Kiko a respeito uma reforma que haveria em fevereiro. Se isso não é ser sócio, não sei o que é”, declarou.

O advogado de Hoffmann, Mario Cipriani, destacou que Bruna não ouviu a conversa, e disse que o depoimento aponta que Elissandro Spohr, o Kiko, também acusado de homicídio doloso no processo, era o único responsável. “Ela imaginava que o teor seriam obras futuras. Poderia não ser uma obra, ser uma simples pintura. Logo após, ela confirmou que só o Kiko, com opinião de funcionários, tomava as decisões”, entende.

Bruna disse que tinha bom relacionamento com Kiko, e respondeu positivamente uma questão da defesa perguntando se ele tinha preocupação com o cliente. A jovem chorou quando precisou responder sobre os colegas que morreram no incêndio.

“Morreram as meninas dos caixas de cima, da chapelaria e do banheiro”, disse. O depoimento foi interrompido por alguns minutos para que ela bebesse água e enxugasse as lágrimas. “Uma das meninas do caixa sempre se trancava quando havia um tumulto”, recordou, após a pausa.

O baixista da Gurizada Fandangueira, Rodrigo Souza da Silveira, disse que o artefato pirotécnico também foi usado na boate Absinto, de propriedade de Hoffmann. “Usaram no Absinto duas ou três vezes”, disse.

Ele afirmou que, pouco antes do incêndio, o vocalista Marcelo Jesus dos Santos, também réu do processo, tentou apagar o fogo na boate com uma garrafa de água, e depois com um extintor de incêndio que não funcionava. Ele disse ter deixado rapidamente o local, ainda com o instrumento preso ao corpo, porque havia um caminho ligando o palco à entrada da boate.

Segundo o músico, a banda não ensaiava, e havia contato entre os integrantes somente nas apresentações. O repertório era encaminhado por e-mail por Danilo Jaques. “Não sei se (Danilo) era o proprietário da banda, mas ele era o responsável pelo repertório e pelas datas dos shows”, declarou, acrescentando que a função específica de Leão era lidar com instrumentos.

O cliente da casa noturna Matheus da Rosa Abaide disse em seu depoimento que acredita ter sido um dos 20 primeiros a deixar a casa noturna. Ao sair, disse ter visto Kiko “transtornado” e que o empresário pediu a outros sobreviventes na noite do incêndio que fosse aberto um buraco na parede para que a fumaça saísse.

“Ele estava desesperado, se jogava nas paredes e gritava ‘minha boate, minha boate’”, declarou. O jovem confirmou que alguns seguranças bloquearam a saída na porta interna da boate, “até que o Kiko chegou e disse para nos deixarem sair”.

Também consumidora da casa noturna, Luciene Louzeiro da Silva afirmou que a porta da casa noturna estava fechada logo após o início do incêndio. Ao contrário de Matheus, ela afirmou que não foi uma ordem de Kiko que fez com que a porta fosse aberta. “Acho que o segurança não sabia do incêndio. Ele disse que ninguém sairia sem pagar a comanda. Um rapaz deu um soco no rosto do segurança quando ele liberou a saída”, contou a jovem.

Luciene foi a única depoente nas audiências desta semana ao responder positivamente a uma pergunta feita tanto pela defesa de Spohr quanto pela assistência de acusação, se o acusado tentou matá-la. “Ele tentou matar todos os que estavam ali quando não ofereceu segurança”, declarou.

Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul, na madrugada de domingo, dia 27 de janeiro, resultou em 242 mortes. O fogo teve início durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, que fez uso de artefatos pirotécnicos no palco.

O inquérito policial indiciou 16 pessoas criminalmente e responsabilizou outras 12. Já o MP denunciou oito pessoas, sendo quatro por homicídio, duas por fraude processual e duas por falso testemunho. A Justiça aceitou a denúncia. Com isso, os envolvidos no caso viram réus e serão julgados. Dois proprietários da casa noturna e dois integrantes da banda foram presos nos dias seguintes à tragédia, mas a Justiça concedeu liberdade provisória aos quatro em 29 de maio.

As primeiras audiências do processo criminal foram marcadas para o fim de junho. Paralelamente, outras investigações apuram o caso. Na Câmara dos Vereadores da Santa Maria, uma CPI analisa o papel da prefeitura e tem prazo para ser concluída até 1º de julho. O Ministério Público ainda realiza um inquérito civil para verificar se houve improbidade administrativa na concessão de alvará e na fiscalização da boate Kiss.

Veja as conclusões da investigação
- O vocalista segurou um artefato pirotécnico aceso no palco
- As faíscas atingiram a espuma do teto e deram início ao fogo
- O extintor de incêndio do lado do palco não funcionou
- A Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás
- Havia superlotação no dia da tragédia, com no mínimo 864 pessoas
- A espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular
- As grades de contenção (guarda-corpos) obstruíram a saída de vítimas
- A casa noturna tinha apenas uma porta de entrada e saída
- Não havia rotas adequadas e sinalizadas de saída em casos de emergência
- As portas tinham menos unidades de passagem do que o necessário
- Não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas

 

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