Por Emily Costa e Valéria Oliveira*, G1 RR


Vestido de Árely Cardoso, executada por integrantes do PCC: 'sinto muita falta dela, choro todos os dias há quatro meses', diz a mãe — Foto: Emily Costa/G1 RR

O vestido roxo de botões prateados é quase infantil. É a única lembrança de Árely Dayana Cardoso, 19, na casa da família em um bairro pobre na periferia de Boa Vista. “Dei tudo que era dela, não queria ver, não queria lembrar. Choro todos os dias”, conta, aos soluços, a mãe, uma dona de casa de 48 anos.

A menina gostava de ir à igreja com os pais e as irmãs e sonhava em ser cantora gospel. Mas esse era só um lado de sua personalidade impulsiva. Desde a pré-adolescência, costumava ficar dias sumida de casa, faltava à escola. Era encontrada sob efeito de drogas na rua, em balneários. Às vezes ficava jogada na sarjeta até ser buscada por parentes.

A verdade, segundo os pais, é que ela usava drogas desde os 10 anos de idade. Era viciada em pasta base de cocaína. Quis sair disso, mas nunca conseguiu. Engravidou e sofreu aborto espontâneo aos 17 anos. Tinha 1,55cm de altura e pesava 45 quilos quando foi brutalmente assassinada.

“Às vezes ela me olhava e dizia: mãe, eu vou me libertar das drogas, eu vou ser uma cantora famosa. Mas ela não conseguia parar de usar. Fugia de casa, pulava o muro para se drogar. O que mais dói é que gente não tinha dinheiro e queria interná-la”.

Foi na manhã do dia 12 de dezembro, uma terça-feira, que o corpo da garota foi encontrado pela Polícia Militar no Anel Viário, uma região de lavrado na periferia da cidade. O cadáver estava todo marcado. Tinha sido esfaqueada, espancada. Levou oito tiros de pistola 9 milímetros, um fatal na mandíbula. Os cabelos, que eram longos, foram cortados à força. Nas costas, uma inscrição brutal e feita à faca, a sigla PCC.

Menos de 48h depois, no dia 14, outro corpo foi achado na mesma região. Era o de Rayane Silva Pereira, 25, amiga de Árely. O cadáver estava deteriorado e foi preciso fazer uma análise da arcada dentária para identificá-lo com precisão. Rayane estava de resguardo quando foi morta. Sofreu um aborto espontâneo aos cinco meses de gravidez. Tinha dois filhos. Fez só até a 5ª série. Foi usuária de drogas.

“Chocou muito o que aconteceu com ela. A gente não quer nem mais falar sobre isso”, resume uma familiar.

As duas foram sequestradas, torturadas e executadas no dia 11 de dezembro. As investigações da Polícia Civil revelaram que as mortes foram ordenadas por presidiários ligados ao Primeiro Comando da Capital, o PCC, por traição. Os líderes do bando acusavam-nas de serem informantes do grupo rival, o Comando Vermelho, CV.

A execução sumária da dupla chocou pelos detalhes brutais, mas não é um caso isolado. Há, pelo menos, oito meses, assassinatos semelhantes – que incluem sequestro, cárcere e tortura – têm ocorrido em todo o estado, mas principalmente em Boa Vista. É a guerra entre as duas facções criminosas que disputam o controle do tráfico de drogas e faz disparar os índices de homicídios na capital que também vive o aumento do fluxo migratório da Venezuela.

A guerra em números

Nos primeiros três meses de 2018, a Delegacia Geral de Homicídios (DGH) de Boa Vista registrou 35 assassinatos, um aumento de 218% em relação ao registrado no mesmo período de 2017, quando apenas 11 mortes foram notificadas na cidade.

O índice do primeiro trimestre deste ano também é equivalente à metade dos registros de homicídios da DGH durante todo ano de 2017, quando foram notificados 70 assassinatos só na capital.

— Foto: Igor Estrella/G1

Segundo o delegado Cristiano Camapum, titular da Homicídios, mais de 50% dos 35 assassinatos registrados na cidade neste ano estão relacionados à guerra entre o PCC e o CV. O número pode ser bem maior porque muitos casos ainda estão sob investigação.

“Houve um aumento considerável nas mortes e em muitas delas verificamos que tanto vítimas quanto os autores são integrantes de facções, o que revela que há uma guerra entre os dois grupos rivais. Não é nem possível saber qual grupo mais mata ou morre, porque estão morrendo pessoas dos dois lados".

Outra estátistica sombria chama a atenção. A rivalidade está matando, principalmente, jovens. Das 35 vítimas de homicídios na capital nos primeiros três meses deste ano, 22 tinham entre 13 e 30 anos. De acordo com o delegado, a maioria das vítimas também mora na periferia e é usuária de drogas, o que torna a guerra ainda mais letal.

“As facções são muito recentes aqui. Então, tem casos de pessoas que eram amigas de infância e hoje são jovens e de facções rivais, o que causa ainda mais mortes porque todos se conhecem e convivem num mesmo meio. Há crimes que, por exemplo, são motivados por inveja. Uma garota que tem inveja da outra vai lá e diz para os integrantes de determinada facção que ela é do grupo rival. Daí ela vai lá, monta tudo e acabam assassinando a garota”.

O delegado explica que desde o final de 2017 têm crescido o número de assassinatos envolvendo pessoas ligadas a grupos criminosos. Dos 70 homicídios registrados pela DGH na capital naquele ano, 18 foram cometidos por membros de facções e 15 tiveram integrantes de grupos criminosos como vítimas. Até então, a delegacia não tinha registros de casos como esses.

“Antes nós tínhamos casos bem pulverizados. Eram latrocínios, homicídios relacionados à violência doméstica, a conflitos familiares. Agora não. Agora temos essa guerra declarada entre as facções e execuções brutais para eliminação de rivais”.

O aumento no índice de assassinatos, no entanto, não se restringe só à capital. De janeiro a 13 de abril, a Polícia Civil registrou 93 homicídios nos 15 municípios do estado - 23 foram só nos primeiros dois meses de 2018, como mostra o índice nacional de homicídios criado pelo G1, uma ferramenta que permite o acompanhamento dos dados de vítimas de crimes violentos mês a mês no país. O mapa faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

As causas do conflito

As principais causas da guerra são pelo menos duas, de acordo com investigações da Polícia Civil. Além de serem rivais desde 2016, os grupos disputam em Boa Vista o controle do tráfico de drogas. As duas facções querem dominar o maior número possível de bocas de fumo para garantir arrecadação financeira, e por isso se enfrentam.

Os dois grupos criminosos abriram filiais em Roraima em 2014. Nesse mesmo ano, a Polícia Federal fez uma mega-operação para tentar conter o avanço do PCC no sistema prisional local.

A ação, no entanto, não conseguiu desarticular o grupo, e o número de membros cresceu abruptamente. Neste ano, até um vereador foi preso suspeito de envolvimento com a facção. O Comando Vermelho também se instalou no estado no mesmo período e com o passar do tempo só ganhou adeptos.

Palco de dois massacres, a Penitenciária Agrícola de Monte Cristo abriga desde 2016 presos ligados ao PCC; integrantes do CV ficam na Cadeia Pública de Boa Vista — Foto: Inaê Brandão/G1 RR/Arquivo

Um levantamento da Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejuc) aponta que o PCC, facção de São Paulo, tem, atualmente, pelo menos 1,2 mil integrantes dentro e fora das unidades prisionais do estado. O grupo rival, o CV, originário do Rio de Janeiro, tem cerca de 350 membros.

Quando as duas facções racharam nacionalmente, em 2016, os assassinatos começaram. Os primeiros reflexos após a ruptura entre os grupos foram na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (Pamc), a maior unidade prisional de Roraima, e palco de dois massacres.

Em outubro de 2016, 10 detentos do CV foram mortos por integrantes do PCC. As execuções, que ocorreram dentro da unidade, foram brutais. Meses depois, em janeiro 2017, 33 homens que não pertenciam à nenhuma facção foram sumariamente executados no mesmo presídio.

"Com o passar do tempo, a disputa entre os dois grupos cruzou os muros das unidades prisionais e agora acontece nas ruas", pontua o delegado Camapum.

A rivalidade entre as duas facções e seu impacto no índice de homicídios também deve ser observada por uma perspectiva nacional, explica o pesquisador do Núcleo de Estudos de Violência da USP, Bruno Paes Manso. Os grupos também disputam territórios em outros estados. O Rio Grande do Norte, Acre, Ceará, Amazonas e Rio de Janeiro, que enfrentam uma onda de violência, são exemplos disso.

"A disputa pelo controle do tráfico é como uma engrenagem que produz mortes que levam a outras mortes, porque há sempre o objetivo de vingar. São ciclos de vingança", esclarece.

No dia 5 de abril, dois corpos foram achados no Anel Viário, área de lavrado na periferia de Boa Vista; um dos cadáveres foi encontrado por crianças — Foto: Emily Costa/G1 RR

Outra explicação para a rivalidade entre as facções em Roraima é a importância das fronteiras da Amazônia para o crime organizado. O Norte do Brasil é cada vez mais visado como rota para o tráfico internacional de drogas.

"As grandes quadrilhas sempre estão em busca de novas rotas para a expansão do mercado e Roraima é mais um canal para o tráfico, para a exportação de droga para outros países", explica Paes.

Em Boa Vista, os assassinatos têm ocorrido principalmente nas áreas mais pobres da capital, segundo os registros da polícia. É na periferia que corpos com sinais de tortura têm sido encontrados dia após dia.

Em dezembro, uma cabeça humana foi achada em frente a um parque aquático na periferia da cidade. Dias depois, o corpo foi encontrado. Era de um adolescente. No dia 5 de abril, crianças acharam o corpo de um homem no Anel Viário à luz do dia. Foi o segundo a ser encontrado no local num intervalo de apenas quatro horas.

As mortes relacionadas à disputa, no entanto, não ocorrem só na capital. Em São Luiz, no interior do estado, um garoto evadido do Centro Socioeducativo (CSE) - onde há menores ligados a facções criminosas - foi decapitado e teve o coração arrancado. As investigações indicam que o crime, ocorrido no dia 12 de janeiro, foi motivado pelo conflito entre os grupos que também se espalham e ganham adeptos no interior do estado.

Tráfico de armas da Venezuela

O tráfico de armas pela fronteira com a Venezuela também está potencializando o aumento da taxa de assassinatos, afirma a delegada geral do estado, Giuliana Castro. O estado tem cerca de 2 mil quilômetros de fronteira com o país.

Para a delegada, é impossível dissociar os índices de criminalidade em Roraima da imigração venezuela, porque armas estão entrando pela fronteira e indo parar direito nas mãos de integrantes de grupos criminosos. Por dia, pelo menos 800 venezuelanos cruzam a fronteira do estado, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).

"A gente tem que ter cuidado para não estimular uma possível xenofobia, porque não é o caso, mas não se pode separar uma coisa da outra. A imigração e o aumento na criminalidade estão relacionados. Pela fronteira da Venezuela estão entrando muitas armas".

Delegada Giuliana Castro diz que aumento nas taxas de homicídios também tem relação com a imigração venezuelana: 'muitas armas estão entrando pela fronteira' — Foto: Emily Costa/G1 RR

Em 2015, 81 armas de fogo foram apreendidas pelas polícias Civil e Militar no estado, 69 no ano seguinte e 176 em 2017, mesmo ano em que um venezuelano, que já estava preso, foi acusado de fornecer armamento de guerra vindo da Venezuela ao PCC.

Só nos primeiros dois meses deste ano já foram 30 armas apreendidas no estado. O dado não diferencia as armas por sua procedência, mas a delegada garante que muitas vieram do país vizinho.

Em março, um brasileiro foi detido na fronteira com uma pistola calibre 380. Ele disse à polícia que havia comprado o armamento na Venezuela e iria entregá-la a uma organização criminosa. Menos de um mês depois, dois irmãos venezuelanos foram pegos com uma pistola do mesmo calibre e confessaram que iriam vender a arma em Boa Vista.

"Nós temos apreendido em Roraima armamentos que não são fabricados no Brasil. Os criminosos estão tendo acesso a armas que nem nós, que somos da polícia, temos".

A delegada defende que em razão disso o fechamento temporário da fronteira pedido pela governadora Suely Campos (PP) ao STF pode ser uma saída. Ainda não há resposta ao pedido.

"A fronteira é de responsabilidade do governo federal e ele precisa assumir seu papel tanto na segurança e gestão da imigração quanto no aparelhamento da polícia para combate ao crime organizado".

Dentre as medidas já tomadas para conter o avanço das facções e dos assassinatos, ela cita o reforço no efetivo das delegacias de homicídios e de repressão a entorpecentes.

"Lotamos mais 10 agentes, dois delegados e três escrivãos na DGH e mais cinco agentes da DRE. Além disso, estamos aguardando para receber mais veículos, munições e armas para a Polícia Civil".

O G1 também tentou contato com o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de Roraima para saber quais medidas têm sido tomadas em relação ao aumento do número de mortes relacionadas à disputa entre PCC e CV, mas a instituição não quis se pronunciar.

"Todas as investigações que tramitam do âmbito do MPRR acerca dos fatos, para bem instruir os processos e preservar as investigações, correm em sigilo", informou em nota.

Sequestro, tortura e execução

Antes de serem mortas, as amigas Árely e Rayane foram levadas a um cativeiro na periferia da cidade por volta das 14h do dia 11 de dezembro. Teriam confessado envolvimento com integrantes da facção rival, o que as levou a serem condenadas à morte. A ordem final para a execução chegou por Whatsapp e partiu de dentro da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo.

Horas depois, um vídeo viralizou na web. As imagens mostram o assassinato de Rayane. O vídeo da execução brutal tem 46 segundos e choca. A jovem tem a boca tapada, depois é esfaqueada dezenas de vezes e morre. Quatro mulheres, uma adolescente de 17 anos grávida e quatro presidiários da Penitenciária Agrícola foram indiciados pelas execuções.

O caso Árely e Rayane, que já teve o inquérito encerrado, retrata como os assassinatos relacionados à guerra entre as duas facções têm ocorrido em Roraima. Primeiro, as vítimas são sequestradas e depois torturadas. Em seguida, são julgadas numa espécie de tribunal do crime, e mortas com requintes de crueldade. Há ainda os casos em que as execuções são filmadas.

Árely Dayana Cardoso e Rayane Silva Pereira foram sequestradas, torturadas e executadas no dia 11 de dezembro — Foto: Aquivo pessoal

“É um tribunal do crime e a execução só ocorre com o aval do chefe da faccção. Quando isso acontece, o assassinato é feito com crueldade, inclui decapitação e até a retirada de órgãos do corpo", relata o delegado Camapum.

Vácuo do estado

Para Francilene dos Santos Rodrigues, pesquisadora da Universidade Federal de Roraima (UFRR), o aumento dos índices de homicídio é reflexo de um ‘vácuo’ deixado pelo estado.

“As condições sociais que o Brasil passa, que são o desemprego, falta de segurança, educação, saúde, e a crise como um todo, geram um vácuo que o estado não consegue preencher. Esse espaço acaba propício para a expansão do crime organizado, inclusive, entre os jovens que têm o desejo de se auto-afirmar”.

A professora avalia os assassinatos brutais e até as execuções filmadas, como a de Rayane, como uma espetacularização da vida baseada na crença de que “quem faz o mais absurdo, é mais visto, mais forte”.

“É a banalização da vida, do outro. E isso não está apenas restrito ao mundo do crime. Hoje as pessoas têm o costume de expôr, de espetacularizar a vida. Isso se vê em programas de auditório, por exemplo, quando uma pessoa concorda em revelar aspectos íntimos da vida para milhões de outras pessoas, tudo por audiência”.

Ela acredita que para conter o avanço das facções e seus reflexos nas taxas de homicídio seria necessário mudar radicalmente a atuação do estado.

“É preciso ampliar o alcance em várias frentes como na educação, segurança, saúde, emprego e renda principalmente para os mais pobres. Do contrário, a tendência é a criminalidade só aumentar”.

'A família é quem mais sofre'

Árely foi enterrada às 8h45 do dia 13 de dezembro de 2017. Tudo foi muito simples. O pai e a mãe não tinham os R$ 2 mil para o sepultamento e precisaram dos parentes para conseguir enterrar a filha.

“Quando você vê a sua filha morta, toda judiada como ela foi, você sofre muito. Nisso tudo, a família é quem mais sofre”, diz a mãe da menina.

A mãe conta que, desde que Árely foi assassinada, tem medo de sair de casa e se assusta quando ouve falar de mais jovens sendo achados mortos. O pai da garota concorda. “A gente vê no noticiário um caso atrás do outro. Isso não para”, descreve o aposentado de 54 anos.

Eles têm razão. Na último dia 20, dois corpos foram achados na mesma noite. Um deles era de uma menina de 14 anos. Foi decapitada, esquartejada e colocada em uma sacola enterrada no Anel Viário. A mãe disse que ela estava sumida há cinco dias. Foi mais uma vítima da disputa entre as facções.

Enquanto a guerra avança, os mortos silenciam. Um dos inúmeros jazigos do Cemitério Campo da Saudade, na periferia de Boa Vista, não tem foto, identificação e nem mesmo flores de plástico como tantos outros.

É só uma caixa cinza de cimento com um remendo nas bordas. É a única pista de que o túmulo foi fechado recentemente. E lá que está o corpo torturado de Árely, a garota da periferia que queria ser cantora. A menina que não morreu anônima, mas pode ter virado apenas mais uma entre tantas na estatística.

"Eu me pergunto quantos outros pais ainda vão ver seus filhos morrerem? Quando é que isso vai parar?", pergunta a mãe, ainda aos soluços, e com o vestido roxo nas mãos.

*Colaborou Marcelo Marques, do G1 RR

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