Investigação da Polícia Civil e MP aponta envolvimento de PMs em assassinatos
Ao menos 100 policiais militares de Roraima são investigados por suspeita de fazerem parte de milícia, trabalhar para garimpeiros, roubar garimpeiros, tortura, sequestro, tráfico e homicídios. A estimativa é do promotor Antonio Carlos Scheffer, do Ministério Público do estado, e foi informada à Rede Amazônica. As investigações reúnem processos que policiais respondem em várias promotorias criminais.
Parte das investigações iniciaram em 2021, quando o ex-policial militar Gilson Viana, de 43 anos, suspeito de matar ao menos 12 pessoas, foi preso, e se intensificaram quando o soldado Ismael Palmeira da Silva, morreu durante um roubo de avião numa área de acesso a garimpos ilegais na Terra Yanomami.
No curso das apurações contra Gilson, a Polícia Civil identificou que tinham policiais militares envolvidos em vários outros crimes. Todos os casos são acompanhados pelo Ministério Público.
Ainda de acordo com o promotor, que é titular da promotoria de Execução Penal, Controle Externo da Atividade Policial e de Crimes Militares, há casos em que os policiais faziam segurança armada para garimpeiros e roubavam os invasores concorrentes, e também roubavam os próprios patrões garimpeiros, segundo o promotor.
O MP não tem qual seria a dimensão da atuação dos policiais à serviço do crime, o que configura milícia. Mas, as investigações indicam que grande parte tenha relação direta com garimpos ilegais, de acordo com o promotor.
"Aproximadamente são 100 policiais que estão sendo analisados, não só por esta promotoria, mas por outras promotorias, inclusive a de crimes dolosos contra a vida. Dentre os delitos que são praticados por esses investigados nós temos homicídios, tráfico de drogas, organização criminosa e envolvimento com garimpo", afirmou o promotor.
Em nota, a Polícia Militar informou que "tem cooperado integralmente e fornecido todas as informações, até aqui solicitadas, para garantir total transparência e esclarecimento no que diz respeito às investigações em curso" (leia a nota na íntegra ao fim da reportagem).
Material encontrado pela Polícia Civil durante operação contra milícia em fevereiro de 2023 em Roraima — Foto: PCRR/Divulgação/Arquivo
Em abril deste ano, a Polícia Civil deflagrou operação para desarticular um grupo de policiais militares suspeitos de integrar milícia e grupo de extermínio em Roraima. Foram presos o sargento da PM Arnaldo Cinsinho Melville e os soldados Lucas Araruna e André Galúcio.
Por meio de nota, a defesa do sargento Melville chamou "investigação tendenciosa" a ação contra ele e disse que policiais "estão sujeitos a morrer ou a matar quando estão de serviço".
Já a defesa dos soldados Lucas Araruna e André Galúcio informou que "as acusações são frágeis e não se sustentam nos indícios informativos contidos no Inquérito policial". Pontuou ainda que "as testemunhas ouvidas até o momento apresentam inúmeras contradições, mas insistem em realizar acusação com um único intuito de desqualificar os excelentes policiais militares que se desempenham a combater as organizações criminosas que assombram a sociedade. Por fim, destacamos que a inocência dos policiais militares será comprovada no curso processual."
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Crimes em cadeia
O promotor de Justiça acredita que a atuação de policiais como seguranças privados de garimpeiros desencadeia outros crimes graves, como o de homicídio e de tráfico.
"Aqui no nosso estado tem uma situação muito complexa. Aqui tornou-se meio que aceito socialmente essa questão do garimpo. isso é um absurdo. O garimpeiro, como eu havia falado antes, ele vai necessitar de um segurança com autorização legal para portar uma arma, que é um policial. Além disso, o que acontece: esse policial se vê imiscuído não apenas naquela atividade de segurança, mas, também envolvido com todas as outras atividades delituosas desse garimpeiro, desde tráfico de drogas até a eliminação de algozes."
Comandantes pressionam a tropa
Em entrevista à Rede Amazônica, um policial militar que não quis se identificar, afirmou que há casos em que comandantes da corporação pressionam a tropa para não abordar garimpeiros, principalmente os que transportam combustíveis para garimpos, sob o pretexto de que "se tratam de pessoas trabalhadoras."
"Quando a gente aborda os caroteiros [pessoas que levam combustíveis para garimpo] e leva para o destacamento, logo após, no decorrer da ocorrência ou até mesmo na delegacia, a gente recebe telefonemas de superiores questionando o porquê da apreensão", disse, acrescentando que:
"Temos aparato para combater os ilícitos, mas, nós somos, de certa forma, impedidos, por que temos ordens para não abordar. Se for garimpeiro, você não pode, 'deixa os caras trabalharem'".
Tortura em rota de garimpo
Um dos casos mais recentes foi o de um homem agredido por policiais militares quando trafegava pela RR-205, uma das estradas de Roraima usadas como rotas para garimpos ilegais na Terra Yanomami, em janeiro deste ano. Inicialmente, ele foi abordado por quatro policiais em uma viatura, e depois chegaram mais oito - quatro do Choque e quatro da Força Táticas, todos integrantes do Bope.
Em entrevista à Rede Amazônica, ele disse teve o cordão de ouro roubado pelos PMs - um deles era o sargento Melville, um dos investigados por integrar milícia e grupos de extermínio no estado.
Um relatório da Polícia Civil indicou que o homem foi agredido pelos policiais "com tapas, pancadas na cabeça, pancadas nos braços, pés, tórax, rosto, além de usarem métodos de enforcamento e continuaram agredindo-o, utilizando métodos como, chutes e sufocamento com água."
Segundo o homem agredido, os policiais queriam saber se ele era envolvido com o tráfico de drogas e como ele negou, foi agredido.
"Praticamente eu vi a morte. Pensei que eu ia morrer naquela noite. Porque se mandaram eu me despedir, se mandaram eu orar, pedir perdão a Deus, eles iam me matar. Enrolaram toalha no meu pescoço. Deram um nó, com a toalha no meu pescoço e apertaram esse nó e eu comecei a me sufocar", contou à Rede Amazônica.
Depois disso, os policiais roubaram o cordão de ouro e saíram do local. O homem foi encontrado pela esposa, que foi atrás dele após demorar a chegar em casa. No mesmo dia ele registrou um boletim de ocorrência na Polícia Civil. O caso é investigado como tortura, lesão corporal, roubo, abuso de autoridade, constrangimento ilegal e falsidade ideológica.
Além disso, o relatório da Polícia Civil, mencionou que "vários integrantes das guarnições envolvidas nesta ocorrência estão relacionados a outras ocorrências policiais com desfecho em confrontos armados e resistência com resultado morte e "com fortes indicativos de fraudes e ocorrências manipuladas/forjadas."
Vítima teve que mudar de bairro
Uma outra vítima, um homem que também não quis se identificar, afirmou à Rede Amazônica ter sido abordado por policiais militares quando voltava do trabalho para a casa da mãe.
Ao ser parado no meio da rua, segundo ele, os agentes pediram para ele dizer se sabia onde estava um foragido da Justiça que estavam atrás. Ao afirmar que não sabia de nada, começou uma série de agressões e furaram o pneu da bicicleta que andava.
"Começaram a me mostrar a foto de um cara lá que era foragido da Justiça, eu falei que não sabia. Me imprensaram num canto, falaram para eu informar", disse, acrescentando que tentou olhar para a viatura, na tentativa de identificar algo para denunciar depois, mas foi agredido.
"Me deram a cacetada nas costas [...] Não vi porque eles me deixaram com a mão na cabeça e diziam 'não olha pra trás, não olha pra trás'. Na hora que eu ia olhar, eles viam com agressão pro meu rumo", contou.
Todos estes casos são investigados pela Polícia Civil e pelo Ministério Público. O promotor que atua no caso considera preocupante que policiais militares de Roraima tenham se se envolvido em crimes, quando deveria combatê-los.
"Esse tipo de policial, na realidade, não é um policial. É um bandido travestido de policial. Então, junto com este tipo de delito [trabalhar para garimpeiros], eles acabam praticando muitos delitos. Porque a partir do momento que um policial desiste da farda para se esconder atrás dela e praticar delitos, ele está aberto a qualquer tipo de crime".
Nota da Polícia Militar na íntegra
A corporação tem cooperado integralmente e fornecido todas as informações, até aqui solicitadas, para garantir total transparência e esclarecimento no que diz respeito às investigações em curso.
Nenhuma ocorrência que envolva policiais militares deixa de ser investigada em nossa Corporação, sendo instaurado procedimento administrativo para investigar os fatos e levar o devido esclarecimento à população. Este é um trabalho da nossa Corregedoria, que tem buscado sempre esclarecer, com o menor tempo possível, toda denúncia que chegue ao conhecimento do setor.
Ressalta que a PMRR preza e sempre prezou pela boa conduta social e respeito às leis, e da mesma forma todos os seus integrantes, inclusive o próprio Estatuto e ao Código de Ética da Polícia Militar, no artigo 21, que diz que “ao militar da ativa é vedado exercer a atividade de segurança particular e atividade comercial ou industrial (...)”.
Esclarece veementemente que não há orientação ou nenhuma ordem por parte da Polícia Militar que incentive nossos integrantes a cometerem irregularidades ou práticas não condizentes com os princípios que norteiam a nossa atuação, a preservação da ordem pública e o policiamento ostensivo.
A Polícia Militar é uma instituição séria e comprometida com a segurança pública de Roraima, e reafirma seu compromisso sempre com a legalidade em sua atuação, e todo tempo tem colaborado com as investigações e plena apuração dos fatos, sempre assegurando o direito de plena defesa dos citados, de modo que a verdade seja estabelecida.