Por Anderson Barbosa, G1 RN


Após as reformas realizadas em Alcaçuz, os presos voltaram a ficar atrás das grades — Foto: Anderson Barbosa/G1

O massacre de 26 presos dentro de Alcaçuz, o mais brutal e sangrento episódio da história do sistema prisional potiguar, completa 1 ano neste domingo (14). A penitenciária - a maior do Rio Grande do Norte - foi reformada e ganhou reforço na segurança. Mesmo assim, a superlotação é um problema persistente. Até agora ninguém foi punido pela matança. Também há 16 detentos sumidos e que o governo não diz quem são.

Durante a rebelião, presos se amotinaram nos telhados dos pavilhões — Foto: Andressa Anholete/AFP

Atualmente, Alcaçuz tem 2.100 detentos, quase o dobro de quando estourou a rebelião. Neste sábado (13), mulheres de alguns deles se reuniram na frente da unidade e participaram de um culto em memória dos mortos. A cerimônia foi acompanhada de longe por agentes da Força Tarefa de Intervenção Penitenciária, que vieram ao RN para comandar a retomada da penitenciária. Em outubro, o governo federal prorrogou a permanência do grupo por mais seis meses no estado.

Neste sábado (13), familiares de detentos se reuniram na frente da unidade e participaram de um culto em memória dos mortos — Foto: Juliana Melo

No dia 14 de novembro do ano passado, por meio do Portal da Transparência do governo do estado, o G1 solicitou à Secretaria de Justiça e da Cidadania (Sejuc) os nomes de todos os presos considerados fugitivos e/ou desaparecidos após o massacre. Também foram requeridos os nomes dos recapturados e/ou que morreram nas ruas após a fuga. Contudo, até a publicação desta reportagem, o órgão não havia enviado nenhuma resposta. De acordo com a Lei de Acesso à Informação, as respostas devem ser dadas em 20 dias, podendo este prazo ser estendido por mais 10.

Oficialmente, 26 corpos foram retirados de Alcaçuz após a matança — Foto: Divulgação/PM

Quanto aos indiciados pelas 26 mortes, a Polícia Civil disse que pediu ao Ministério Público um prazo maior para encerrar as investigações. “Não quero arriscar uma data, mas devemos concluir os trabalhos até o meio do ano”, afirmou o delegado Marcos Vinícius, titular da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).

O delegado explicou que os cinco indiciados foram apontados como chefes do PCC dentro de Alcaçuz. Eles foram retirados da unidade ainda nos primeiros dias da rebelião e transferidos de avião para o Presídio Federal de Porto Velho, em Rondônia, onde permanecem desde então. São eles:

Apontados como chefes do PCC foram retirados da unidade ainda em meio às rebeliões — Foto: G1/RN

José Francisco dos Santos, José Cláudio Cândido do Prado, Paulo Márcio Rodrigues de Araújo, Thiago de Souza Soares e Paulo da Silva Santos foram indiciados — Foto: Divulgação/Polícia Civil do RN

  • João Francisco dos Santos, ‘Dão’, 31 anos. Condenado a 39 anos de prisão por ter matado o radialista F. Gomes, em Caicó. É natural de Caicó/RN;
  • José Cláudio Cândido do Prado, ‘Doni’, 38 anos, natural de Campo Grande/MS. Condenado a 75 anos de prisão pela prática dos crimes de homicídio, roubo e tráfico de drogas;
  • Paulo Márcio Rodrigues de Araújo, 32 anos: É preso provisório, ainda não foi condenado. É da cidade de Ipanguaçu/RN;
  • Tiago de Souza Soares, ‘Decinho’, 31 anos, natural de Mossoró/RN. Condenado a 38 anos e seis meses de prisão pela prática dos crimes de homicídio e tráfico de drogas;
  • Paulo da Silva Santos, ‘Paulo Fuzil’, 42 anos, natural de Linhares/ES. Condenado a 32 anos de prisão pelos crimes de extorsão e tráfico de drogas.

Pavilhões foram destruídos durante as rebeliões, mas nenhum preso foi responsabilizado pelos danos ao patrimônio — Foto: Frankie Marcone/Futura Press/Estadão Conteúdo

Além dos cinco transferidos para Rondônia, outra medida adotada pela Sejuc como tentativa de reduzir a tensão em Alcaçuz foi a remoção de outros 220 presos, que foram levados para a Penitenciária Estadual de Parnamirim.

Ainda durante os dias de rebelião, 220 presos foram transferidos de Alcaçuz para a Penitenciária Estadual de Parnamirim (PEP) — Foto: Josemar Gonçalves/Reuters

Processos arquivados

Já os processos que tratavam dos danos causados ao patrimônio público – em razão da destruição quase que completa da penitenciária – estes acabaram arquivados. Segundo a Polícia Civil, 111 presos chegaram a ser indiciados pela quebradeira, mas o juiz Rainel Batista Pereira Filho decidiu por extinguir qualquer possibilidade de punição por considerar que faltaram elementos que atestassem a materialidade e indícios de autoria. A decisão do magistrado também mandou arquivar as acusações de associação criminosa, resistência, motim, apologia ao crime, porte ilegal de arma de fogo e tráfico de drogas.

Peritos do Itep durante as buscas por corpos dentro da penitenciária — Foto: Sejuc/Divulgação

Corpos sem identificação

Oficialmente, 26 corpos foram retirados de Alcaçuz. Destes, 15 decapitados. Outros foram encontrados esquartejados e quatro deles inteiramente carbonizados. Hoje, passados doze meses, um corpo continua oficialmente sem identificação e outro, cujo resultado de DNA realizado na semana passada deu positivo, ainda depende de uma certificação para que o nome possa ser divulgado. Segundo o Instituto Técnico-Científico de Perícia (Itep), esta confirmação deve acontecer nos próximos dias.

O morto que permanece sem qualquer identificação foi enterrado como indigente. Isso aconteceu porque nunca apareceu nenhum parente que reclamasse o corpo. "Também não apareceu ninguém para fornecer material genético", acrescentou o perito criminal Marcos Brandão, diretor-geral do Itep.

Desaparecido

Existe uma família que vive dias de intensa expectativa quanto à confirmação da identificação do corpo cujo resultado de DNA ainda aguarda certificação do Itep. É a família do ex-lutador de jiu-jitsu Guilherme Ely Figueiredo da Silva, de 36 anos. O pai dele, o técnico em educação Francisco Luiz, disse que o filho cumpria pena por tráfico de drogas no pavilhão 4 de Alcaçuz. Francisco acredita que o filho foi morto durante o massacre, mas precisa que o Estado diga isso a ele.

Ex-lutador de jiu-jitsu, Guilherme Ely Figueiredo da Silva, de 36 anos, estava preso no Pavilhão 4 de Alcaçuz quando estourou a rebelião — Foto: Arquivo da família

"Recebi uma ligação de dentro da penitenciária logo que estourou a rebelião. Um colega de cela do meu filho disse que tinham matado ele", revelou. Essa história, o pai de Guilherme contou ainda na época em que estavam sendo feitos os trabalhos de identificação dos corpos. Na ocasião, ele não conseguiu reconhecer o filho em meio aos mortos. Como quatro dos 26 corpos estavam carbonizados, ele precisou fornecer material genético para que fosse feito o exame de DNA.

O G1 tentou novo contato com Francisco, mas ele preferiu não falar mais sobre o caso.

Mesmo após a rebelião, penitenciária continua com pavilhões superlotados — Foto: G1/RN

Superlotação

A recuperação de Alcaçuz foi orçada em R$ 3,2 milhões, incluindo a construção de um muro de concreto que dividiu a penitenciária ao meio. Com os internos de volta às celas e sob constante vigilância, nenhuma tentativa de fuga foi registrada na unidade nestes últimos doze meses e também não ocorreram motins. Dominada, a penitenciária está em silêncio. Porém, a superlotação ainda é um fato.

Um muro de concreto foi erguido dividindo o complexo penal ao meio. De um lado, a Penitenciária Estadual de Alcaçuz, com os pavilhões 1, 2 e 3. Do outro, o Presídio Rogério Coutinho Madruga, com os pavilhões 4 e 5 — Foto: Anderson Barbosa/G1

Com capacidade para 620 internos, Alcaçuz tinha 1.200 presos no dia da matança. E isso quando a penitenciária tinha seus 5 pavilhões funcionando. Hoje, são 2.100 detentos distribuídos em três pavilhões.

Antes de acontecer o massacre, os pavilhões 1, 2, 3 e 4 pertenciam à Alcaçuz. Já o pavilhão 5, antes dominado por presos do Primeiro Comando da Capital, fazia parte do Presídio Rogério Coutinho Madruga, que é um anexo de Alcaçuz. Na época, apenas uma cerca de arame farpado separava as duas unidades.

Diante de tamanha fragilidade, isso somado à falta de vigilância, não foi difícil transpor o obstáculo. Armados, presos do PCC saíram do PV5 e invadiram o PV4, onde estavam parte dos presos do Sindicato do Crime do RN, facção rival que nasceu de membros desgarrados do próprio PCC. Dos 26 mortos, pelo menos 24 tombaram no pavilhão 4.

Presos trabalham na limpeza e recuperação do pavilhão 4, principal palco do massacre de Alcaçuz — Foto: Anderson Barbosa/G1

O PV4 é o único que ainda não foi recuperado. Na semana passada, o G1 foi ao palco da carnificina e encontrou presos trabalhando na limpeza do local. Segundo a Sejuc, o pavilhão também será reformado, assim como a extinta fábrica de bolas. O prédio também foi incendiado e depredado durante a batalha campal.

Os pavilhões 1, 3 e 5 estão ocupados. Já o pavilhão 2, apesar de já ter sido entregue, ainda não recebeu presos porque os agentes que trabalharão no local ainda precisam fazer um curso de tiro.

Assim, com o muro dividindo o complexo ao meio, os presos estão distribuídos na unidade da seguinte maneira:

— Foto: Infográfico: Igor Estrella/G1

Secretário de Justiça e da Cidadania fala sobre a atual situação de Alcaçuz

Secretário de Justiça e da Cidadania fala sobre a atual situação de Alcaçuz

'Contato Zero'

As mudanças, contudo, não foram apenas físicas. Mais que ferro e concreto, para o secretário da Sejuc foi preciso implantar uma nova doutrina. “Implantamos um procedimento padrão que chamamos de ‘Contato Zero’. Isso significa que os agentes, hoje, não têm contato algum com os presos”, ressaltou Mauro Albuquerque (veja entrevista com o secretário no vídeo acima).

Mauro, que é policial civil, assumiu a Secretaria de Justiça e da Cidadania em maio, após atuar como coordenador da força tarefa do Ministério da Justiça durante a retomada do controle de Alcaçuz.

Na quadra, o lazer ficou limitado ao banho de sol. Onde antes havia marcações para jogos de futebol, faixas foram pintadas para os presos saibam onde ficar quando houver revista — Foto: Anderson Barbosa/G1

Dentro dos pavilhões, a realidade também é outra. O piso, antes facilmente escavado para a construção de túneis, recebeu um revestimento de malha de ferro e concreto. As paredes também foram reforçadas e as grades recolocadas nas celas. As carceragens ganharam novas camas de alvenaria. Na maioria, treliches – o que possibilitou a acomodação de mais presos dentro de mesmo espaço.

Outra novidade é a ausência de tomadas. Sem elas, não há ventiladores, rádios ou aparelhos de TV dentro das celas. A ventilação é natural. Na quadra, o lazer ficou limitado ao banho de sol. Onde antes havia marcações para jogos de futebol, faixas foram pintadas para que os presos saibam onde ficar quando houver revista.

Assim como os demais, Pavilhão 2 de Alcaçuz também foi reformado. Mas, ele ainda aguarda a chegada de agentes para ser reocupado — Foto: Anderson Barbosa/G1

"Tudo com a maior humanidade possível. Preso tem que entender que aqui é um lugar que possui regras e procedimentos que devem ser cumpridos. Nem cigarro nós permitimos mais. Alcaçuz é um prédio que pertence ao poder público. E, como tal, não é permitido fumar", ressaltou Mauro.

Em Alcaçuz, agentes penitenciários vigiam os presos, que agora trabalham na limpeza da unidade — Foto: Anderson Barbosa/G1

Barril de pólvora

Se por um lado os problemas estruturais e físicos de Alcaçuz parecem estar resolvidos, do outro há questões humanitárias que continuam preocupando. Doutora em antropologia, Juliana Melo é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Desde 2010, quando ainda atuava em Brasília, ela vem estudando o universo prisional e seus efeitos. Para a especialista, Alcaçuz ainda é um barril de pólvora. E, segundo ela, “prestes a explodir”.

“Ali é um barril de pólvora prestes a estourar novamente. Humanamente, é impossível viver ali naquele contexto de superlotação, de insultos morais que os presos estão sendo vítimas"

Presos são vistos durante um confronto de facções na penitenciária de Alcaçuz, perto de Natal, no Rio Grande do Norte — Foto: Andressa Anholete/AFP

Em termos mais amplos, Juliana concorda que aconteceram mudanças positivas, como as reformas dos pavilhões e a instalação de celas. Contudo, ela acredita que o tratamento que é dado ao preso piorou. “O Estado mantém o controle, mas é um controle feito com mão de ferro, com uma perspectiva bastante ostensiva, policialesca, de humilhação aos presos, de contenção. O que vemos hoje é um quadro ainda maior de superlotação”.

Ainda de acordo com a antropóloga, tudo isso gera uma revolta muito forte. "Eles (os presos) valorizam muito a família. Preocupa muito o tratamento que é dado aos presos. E isso repercute muito na tensão que já existe dentro da prisão. Por que essa tensão é forte? Além da superlotação, tem as facções. O Estado nega a existência destas facções. Mas nós sabemos que elas existem. Isso está na boca das pessoas. Natal está divida por bairros que são dominados por facções. Sabemos que pessoas de um bairro não podem entrar em um outro e isso se reflete dentro do mundo prisional".

“As pessoas estão relatando que existe um sistema de tortura, de spray de pimenta, de bala de borracha, de privação alimentar, de privação à água. Eu vejo Alcaçuz como um grande problema. Eu tenho medo”

Juliana também chama a atenção para as famílias dos detentos mortos no massacre. “Existe um trauma muito grande. Esposas enterraram seus maridos sem cabeça. Essas mulheres não tiveram nenhum apoio do Estado, não receberam nenhuma indenização, nenhum apoio psicológico, nada. Eu vejo o que aconteceu em Alcaçuz como um fantasma que ainda ronda a cidade, um trauma. Foi um dos grandes massacres do país o que aconteceu. Em termos humanitários, a questão ainda é muito grave, muito dramática ainda. E nós vimos a repercussão disso nas ruas. Fechamos 2017 com 2.400 mortos”, ressaltou.

Professora de antropologia da UFRN diz ter recebido relatos de que os presos de Alcaçuz vêm sofrendo maus-tratos dentro da cadeia — Foto: G1/RN

Por fim, a especialista revela que vários relatos foram apresentados aos órgãos competentes e mecanismos internacionais, denunciando casos de tortura com choques elétricos, espancamento nas mãos e agressões verbais aos presos e seus familiares. Contudo, até agora nada foi feito. “É como se tivéssemos uma Justiça que não funciona, e isso abre margem para mais violência”.

“Antes de o massacre em Alcaçuz, os presos tinham feito uma greve de fome exigindo melhores condições de vida e melhor tratamento para as famílias. Isso não foi escutado. Será que estamos esperando um outro massacre para que estas questões humanitárias ganhem fôlego?”

Agentes penitenciários ergueram bandeiras do Brasil e do sistema prisional em Alcaçuz para simbilizar a retomada da unidade — Foto: Força Tarefa Penitenciária/Divulgação

Calamidade

O sistema prisional potiguar está em calamidade desde março de 2015, quando uma série de rebeliões destruiu 14 das 33 unidades que estado mantinha até então. O último decreto foi publicado em agosto e tem validade de 180 dias.

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