Por Eduardo Pierre, Túlio Mello, g1 Rio


Abre-alas da Grande Rio: a barca de Exus — Foto: Reprodução/TV Globo

Tranca Ruas é um exu, espírito cultuado nas religiões de matriz africanas. É diferente de Exu, um dos orixás mais conhecidos do candomblé.

A figura ficou no meio de uma polêmica depois que a frase “Só Jesus expulsa o Tranca Ruas das pessoas” foi exibida durante os shows de Ludmilla no Festival Coachella, nos Estados Unidos, neste mês.

Montagem - Cena de vídeo exibido no show 'Rainha da Favela', de Ludmilla, no Coachella — Foto: Montagem/g1

Quem é Tranca Ruas?

A Acadêmicos do Grande Rio, em seu desfile campeão de 2022, trouxe Tranca Ruas e outros espíritos da falange dos exus, que servem a diferentes propósitos e têm várias formas. Um exu não é o Exu, o orixá dos caminhos, mas ambos são erradamente associados ao demônio e a coisas ruins.

Um trecho do samba da Tricolor da Baixada canta:

Exu Caveira, Sete Saias, Catacumba
É no toque da macumba, saravá, Alafiá
Seu Zé, malandro da encruzilhada
Padilha da saia rodada, ê Mojubá

Sou Capa Preta, Tiriri
Sou
Tranca Rua, amei o Sol
Amei a Lua, Marabô, Alafiá
Eu sou do carteado e da quebrada
Sou do fogo e gargalhada, ê Mojubá

Todos esses nomes são de exus, inclusive na forma feminina, como a Maria Padilha.

Tranca Ruas é o guardião dos caminhos e responsável por limpá-los. É representado por um homem com uma capa e uma cartola, além de portar um tridente e fumar charuto.

Buscas por Ludmilla na internet disparam com show no Coachella

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O ator Demerson D'Alvaro, o Exu da comissão de frente da Grande Rio — Foto: Reprodução/TV Globo

Preconceitos

Na sinopse do enredo “Fala, Majeté! As 7 chaves de Exu”, os carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora explicam os preconceitos que as religiões afro-brasileiras sofrem.

“A associação de Exu com as ideias de ‘mal’, ‘atraso’, ‘perigo’ e ‘pecado’ (...) remonta, no Brasil, aos tempos coloniais e à escravização negra (...). A imposição de um Deus único, na sociedade cristã ocidental, gerou um grande questionamento a ser resolvido em termos práticos: se, afinal, só pode haver um Deus, o que fazer com os demais deuses louvados no restante da face da Terra?”, escreveram.

“Uma saída ‘eficaz’ (simplista e perversa) foi a demonização dos outros deuses, em privilégio do ‘verdadeiro’ — uma filosofia civilizacional a ser seguida, pré-julgando, condenando e tentando apagar quem ousava não professar a mesma fé”, prosseguiram.

“A figura do demônio, muito presente no imaginário popular do medievo europeu, passou a ser utilizada, em um jovem país que não sabia (hoje sabe?) o que é laicidade, enquanto peça importante para o girar de uma engrenagem de conversão, medo e controle”, emendaram.

“A questão ganhou novos contornos no século 20, quando intelectuais passaram a realizar pesquisas em terreiros e acabaram contribuindo para a difusão da ideia de que Exu era ‘sincretizado com o Diabo’, presos apenas à visão da materialidade de algumas imagens e à apropriação de alguns nomes”, continuaram.

“É fato que os próprios povos de terreiro, historicamente perseguidos, se apropriaram desse imaginário de ‘medo e perigo’ enquanto estratégia de sobrevivência: se os perseguidores dizem que Exu é o Diabo e o Diabo é perigoso porque faz coisas ruins, eles devem ter medo dele – e esse medo pode afastá-los daqui! É por isso que em lojas de produtos de Umbanda se veem imagens de Exus que se assemelham às imagens (cristalizadas no inconsciente coletivo) do que seriam as “caras” de diabinhos – apropriação que, nos terreiros, se dá de maneira natural (afinal, sabem que não se trata da mesma coisa).”

A polêmica

Nas duas apresentações que fez no Coachella, antes de cantar a música “Rainha da favela”, Ludmilla mostrou um clipe com diferentes imagens do cotidiano em comunidades do Rio, e a frase “Só Jesus expulsa o Tranca Ruas das pessoas” apareceu.

Religiões neopetencostais consideram demoníacas as entidades cultuadas pelas crenças afro-brasileiras e defendem que apenas Jesus tem poder para expulsá-las.

Em um texto nas redes sociais na manhã desta segunda-feira (22), Ludmilla comentou a frase sobre religião.

Veja o que Lud escreveu:

“Quando eu disse que vocês teriam que se esforçar pra falar mal de mim, eu não achei que iriam tão longe.

Hoje tiraram do contexto uma das imagens do vídeo do telão do show em Rainha da Favela, que traz diversos registros de espaços e realidades a qual eu cresci e vivi por muitos anos, querendo reescrever o significado dele, e me colocando em uma posição que é completamente contrária à minha.

Rainha da Favela apresenta a minha favela, uma favela real, nua e crua, onde cresci mas infelizmente se vivem muitas mazelas: genocídio preto, violência policial, miséria, intolerância religiosa e tantas outras vivências de uma gente que supera obstáculos, que vive em adversidades, mas que não desiste. Isso passa por conviver em um ambiente muitas vezes hostil, onde a cada esquina você precisa se deparar com as dificuldades da favela.

Meu show começa com uma mensagem muito explícita, que não deixa dúvida sobre nada! Na sequência eu apresento a realidade sobre a qual esse discurso precisa prevalecer! Sobre uma favela sem filtros, sem gourmetizações, sem representações caricatas, uma denúncia sobre o real. Estou aqui pelo que é real e não essa versão vitrine importada para gringo achar que esse é um espaço que se reduz a funk, bunda e cerveja!

Termino meu show com o céu tomado de pipas douradas, que representam a esperança que eu quero plantar no coração de todos que lidam com essa realidade!

Esse vídeo foi feito por uma fotógrafa/videomaker negra e periférica, para que tivesse um olhar de dentro para fora!

Não me coloquem nesse lugar, vocês sabem quem eu sou e de onde eu vim. Não tentem limitar para onde eu vou. Respeito todas as pessoas como elas são, e independente de qualquer fé, raça, gênero, sexualidade ou qualquer particularidade de que façam elas únicas.”

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