Conheça o melodrama de Kwai
"Temos duas notícias, uma ruim e uma boa. A ruim é que a senhora está com câncer no coração e vai morrer em duas semanas. A boa é que a gente conseguiu o senhor Kauan. Ele é o único voluntário a sacrificar sua vida para doar para a senhora."
Ao som de "Love by grace", de Lara Fabian, Markelly deixa cair uma lágrima ao sentir o peso de ter desprezado, minutos antes, as roupas sujas do pobre desconhecido que ia doar nada menos do que o coração para ela.
Produções amadoras como essa, com dois minutos em que cabem reviravoltas, atuações carregadas e sempre uma lição de moral, fazem sucesso no app de vídeos curtos Kwai. A empresa ficou gigante na China com estes conteúdos populares e exagerados, e replica a estratégia no Brasil.
Os vídeos são exclusivos para o Kwai, mas acabaram caindo em outras redes. Foram republicados sem autorização por perfis no TikTok e chegaram ao Twitter, onde causaram espanto com os exageros de roteiro e atuação.
Marcelo Adnet, por exemplo, passou horas compartilhando as histórias cheias de humilhados que acabam exaltados ou pessoas generosas recompensadas pelo destino.
A reação é diferente no Kwai, onde eles geram milhares de comentários sérios, positivos e emocionados. "Gente, eu fui a única pessoa que chorou junto com ela?", diz um dos comentários mais curtidos no vídeo do doador de coração, visto mais de 4 milhões de vezes no canal "Markelly em ação".
Cenas das 'novelinhas' do Kwai — Foto: Reprodução / Kwai
Não é novela mexicana, é China profunda
À primeira vista, a chave parece ser o gosto latino pelo melodrama. Mas a estratégia é chinesa. O Kwai cresceu em cidades menores e rurais da China. Nas metrópoles ele é considerado pouco refinado. Em vez de celebridades, mirou pessoas comuns. Hoje a empresa vale US$ 220 bilhões.
Eles vão pelo mundo atrás de criadores menos visados, passam o modelo de vídeos chineses, dão apoio, pagam por resultado de audiência e buscam um retorno massivo. A mecânica do app é bem parecida à do rival chinês TikTok, mas o público é diferente. A estratégia é aberta:
"Nos países de língua hispânica da América Latina foi lançado em 2021 o projeto TeleKwai, em parceria com pequenos e médios produtores de conteúdo audiovisual da região, para incentivar a produção roteirizada de histórias, sequenciais ou não, em um novo formato de dramas curtos", diz o comunicado enviado pela empresa ao g1.
Quem se impressionou com as dezenas de vídeos com roteiros semelhantes que circularam no Twitter precisa ver a página do projeto TeleKwai. São mais de 30 mil vídeos, todos com este formato de reviravoltas, aprendizados e trilhas sentimentais.
"No Brasil, o projeto foi iniciado no final do ano passado com o objetivo de construir uma comunidade de criadores de conteúdo especializados nesse formato inovador, o de adaptar as tão amadas novelas e séries para vídeos curtos e verticais", diz a empresa.
'È que a senhora tá com câncer no coração': momento forte dos melodramas de 2 minutos do Kwai — Foto: Reprodução / Kwai
Há outros formatos no Kwai, de dancinhas como as do TikTok, piadas e muitas pegadinhas ao estilo youtuber. Mas a linha é sempre essa, com um apelo popular do tipo que seus tios curtiriam no grupo da família no WhatsApp.
Se a dramaturgia não é refinada, o resultado é um luxo: no Brasil, o Kwai tem média de 45,4 milhões de usuários ativos e foi o 3º aplicativo mais baixado do país em 2021, segundo o relatório do App Annie.
No projeto do TeleKwai, os maiores produtores ganham tanto um pagamento fixo quanto bônus por visualizações.
'As pessoas se envolvem muito'
"Tem apelo emocional, a pessoa ajudando outra financeiramente. É como se fosse uma novelinha", diz Yasmin Moreira, de 22 anos, dona do canal Atentação. Ela nasceu em Rondônia, mora em São Paulo e também investe na carreira de cantora, com o nome artístico Yas.
"A gente entende a audiência do Kwai. Fizemos um estudo e vimos que é um público um pouco mais velho e daí pensamos em roteiros que prendam essas pessoas. Elas se envolvem muito com vídeos de superação, de traição. É como ver uma série, só que você pode comentar", diz Yas.
Ela faz parte de uma rede de donos de canais, que colaboram nos roteiros e aparecem nos vídeos um do outro. Os canais têm nomes igualmente dramáticos: "A escolha", "O preço do amanhã', "O destino" e "Suas faces".
Yasmin Moreira, 22 anos, é cantora e também dona do canal 'Atentação' com 'novelinhas' no Kwai — Foto: Divulgação
Markelly Oliveira, 27 anos, do vídeo do câncer no coração, conta a mesma história dos outros criadores: foi procurada para criar conteúdo para o Kwai neste formato de novelinha. "Posso dizer pagam bem por visualizações", diz a atriz e ex-dançarina do "Domingão", sem revelar os valores.
Os namorados Cauê Fantin, 23 anos, e Alicia Marchi, 21, faziam sucesso no TikTok quando foram procurados por uma agência parceira do Kwai.
O pedido era adaptar o estilo dos vídeos da Ásia para o Brasil. "Tem esse estilo de vídeo lá, mas os roteiros somos nós mesmos que criamos. Adaptamos as historinhas e as cenas de reviravolta, e a gente mesmo edita", diz Cauê.
"O público é bem diferente. O TikTok eu sinto que são muito mais jovens. Até na rua, quando me reconhecem pelo TikTok são sempre crianças, e quando é pelo Kwai são sempre pessoas mais velhas."
O canal dele, "Fora das telas", foi um dos primeiros no Brasil a entrar no projeto. Cauê diz que é remunerado através da agência, e agora também produz conteúdo para outras contas. "Gravo de 12 a 15 vídeos por dia", ele diz.
"A gente treina pessoas que entra na campanha para a agência. Estou hoje no Rio aqui treinando um pessoal", ele conta, empolgado com novos recursos de filmagem e edição, usados em um vídeo gravado na praia, ainda no modelo de reviravolta e lição.
Cauê Fantin e Alicia Marchi já têm quase 1 milhão de seguidores no canal 'Fora das telas' no Kwai — Foto: Divulgação
Assim como Cauê, Yas diz que a rotina é pesada. "Hoje a gente passou o dia inteiro gravando. É sempre uma sacada nossa, porque entendemos o que toca as pessoas no Kwai".
O papo de Yas é técnico, mas ela complementa com um toque de aprendizado tocante que poderia ser de um personagem do TeleKwai:
"Além de serem coisas em que a gente acredita. Falamos contra a violência doméstica, contra a homofobia. São vídeos que podem ajudar", ela diz.