Biscoito Dalonga é uma das brincadeiras infantis mostradas em Round 6. — Foto: Divulgação
Se hoje o mundo não consegue tirar a "batatinha frita, 1, 2, 3" de "Round 6" da cabeça, é porque a Coreia do Sul trabalhou por mais de duas décadas para transformar sua produção cultural em lucro e poder.
Em 1994, o país queria se modernizar após anos de censura e governos militares. Kim Young Sam, primeiro presidente civil eleito em 30 anos, achou um dado curioso: o filme americano “Parque dos dinossauros” superou o lucro de 60 mil carros coreanos da Hyundai.
O caso está em uma reportagem do jornal “Los Angeles Times” de 1996, que explicava o interesse dos sul-coreanos na indústria audiovisual dos EUA. Vinte e cinco anos depois, o país que apostou no entretenimento exporta sucessos como o filme “Parasita” e a série “Round 6”.
Os brasileiros podem ficar surpresos com a vitória do Oscar em 2020 e, agora, com o fenômeno popular da nova série em 2021. A história de terror baseada em brincadeiras infantis coreanas se tornou a série mais vista da história do serviço de streaming.
A face mais conhecida dessa onda até hoje no Brasil era a musical. O G1 já contou como o k-pop do BTS e outros ídolos da música é fruto de investimento, rende bilhões de dólares e impulsiona a economia, o turismo e a diplomacia sul-coreana.
Mas tal "onda coreana" (ou "hallyu", na língua local), semeada nos anos 90, cultivada no início dos anos 2000 e colhida agora, também fez brilhar o k-drama, as produções de TV da Coreia do Sul. Exportar essas histórias foi um projeto de início improvável e hoje bilionário.
Assista ao trailer de 'Round 6'
Negócio na China
A primeira façanha do “hallyu” aconteceu bem antes de o BTS existir. Em 1997, o k-drama “What Is Love” virou um sucesso na TV chinesa, a CCTV. A emissora controlada pelo estado, de conteúdo restrito e público gigantesco, se abriu para o k-drama.
No meio da crise asiática do final dos anos 90, era um sinal de que entretenimento é coisa séria. A Coreia do Sul, antes considerada atrasada e fechada, se jogou de vez no mundo.
Foi nesta época que o Ministério da Cultura, que havia sido criado em 1990, começou a receber mais investimentos e modernizar seus programas. A atenção não era apenas às manifestações tradicionais coreanas, mas também à cultura pop.
"A Coreia investe na área cultural porque achou que era um mercado de futuro, que vai trazer resultado. Nos próximos anos, o mercado cultural vai crescer mais que os de Tecnologia da Informação e de automóveis", disse Sang Kwon, diretor do Centro Cultural Coreano no Brasil.
'Round 6' — Foto: Divulgação
A onda coreana rende ao país o chamado "soft power" (poder brando), termo que descreve influência de uma nação através dos seus produtos culturais. Os k-dramas ganharam o coração até dos vizinhos coreanos do norte, que pirateiam e contrabandeiam fitas dos programas.
Música e TV estão longe de serem casos isolados de sucesso da Coreia do Sul. O país triplicou seu Produto Interno Bruto (PIB) entre 2000 e 2018 - de US$ 500 bilhões a 1,5 trilhão. O “hallyu” faz parte da inovação em cultura e tecnologia que ajudou neste salto.
O orçamento do Ministério do Turismo, Cultura e Esportes da Coreia do Sul em 2021 foi de 6,8 trilhões de yuons - cerca de R$ 31 bilhões, mais de dez vezes maior do que o do Brasil, que foi de 2,2 bilhões para as três áreas.
Em 2019, a exportação de produtos culturais da Coreia do Sul cresceu 22,4% e chegou a US$ 12,3 bilhões. O objetivo é incentivar artistas e empresas para somar investimento público e privado. Agora, até a americana Netflix entrou na roda, e planeja investir US$ 500 milhões em dramas coreanos.
Em 2017, uma pesquisa do Ministério do Turismo da Coreia do Sul indicou que metade dos visitantes estrangeiros decidiu fazer a viagem após ver o país em alguma série de TV ou filme.
Histórias de família... e dívidas familiares
O k-drama ganha a América duas décadas após conquistar a China, baseado em histórias românticas de conteúdo familiar (palatáveis ao temido governo chinês), e se expandir para o resto da Ásia, inclusive o Japão, que antes ditava o que era “cool" no continente.
“É preciso quebrar a barreira do preconceito para assistir um k-drama, mais do que para ouvir o k-pop. Mas, para divulgar a cultura, o k-drama consegue fazer melhor, porque mostra coisas do dia a dia da cultura coreana que só por uma música você não vai saber”, conta Manu Gerino, dona do canal do YouTube Coreanismo, especializado em k-dramas.
Durante um tempo, os k-dramas foram estereotipados pelo conteúdo familiar e água-com-açúcar. Mas "Round 6" mostra, com doses intensas de terror e crítica social, que o cardápio é diverso. “Hoje temos acesso a mais gêneros, porque antes vinham ao Brasil só romances e comédia romântica, então a gente tinha uma visão idealizada do que é o coreano", diz Manu.
Ela aponta uma característica dos roteiros que pode ter ajudado no sucesso do k-drama: contar histórias sobre a cultura local com um pano de fundo de dilemas universais - seja amor, família ou, no caso de "Round 6" e "Parasita", a pobreza e a desigualdade econômica.
Série coreana 'Round 6' estreou em 17 de setembro e lidera entre os programas mais vistos da Netflix em diversos lugares do mundo — Foto: Divulgação/Netflix
"Há um encontro do global com o local, um misto entre ser da Ásia e ser internacional. Tem algumas coisas nos dramas coreanos que se relacionam muito facilmente com produções dos EUA, da Europa e do Brasil", diz Manu.
Um exemplo: os brasileiros podem não conhecer os jogos infantis do folclore sul-coreano, mas não devem ter dificuldade para entender o drama da pobreza e das dívidas dos personagens de "Round 6", que os leva a participar do jogo violento.
A atuação dos sul-coreanos costuma causar menos estranhamento do que dos japoneses, por se aproximar mais do estilo ocidental, explica Manu. Para quem gostou de "Round 6", ela recomenda os k-dramas "Black", "Strangers from Hell" e "Além do Mal".
"Eles sempre conseguem fazer produções muito comerciais e, ao mesmo tempo, ter uma crítica social ou fazer refletir sobre algo da vida", diz a dona do canal Coreanismo.