BTS se apresenta no Billboard Music Awards 2019 — Foto: Chris Pizzello/Invision/AP
Atrás dos cabelos coloridos, da mistureba de ritmos e da gritaria em torno de ídolos do k-pop, existe um projeto organizadinho. Os dois shows do BTS em São Paulo nesta semana vão ser tudo na vida de milhares de fãs brasileiros, mas só uma etapa de um longo plano sul-coreano.
Com a expansão global, a indústria musical do país do BTS cresceu 17,9% só em 2018. O k-pop rende mais de US$ 4,7 bilhões ao ano, liderado por empresas privadas, com ações na bolsa e tudo. Mas também é resultado de uma aposta de 20 anos do governo da Coreia do Sul em cultura:
- Em 1998, para ajudar a espantar a crise asiática do ano anterior, o governo passou a turbinar sua indústria criativa
- O Ministério da Cultura teve verba reforçada e ganhou setor dedicado à cultura popular, depois apelidado “departamento de k-pop”
- De uma visão moralista, que tinha até censura de músicas, passou a apoiar a nova música pop com subsídios e promoção de festivais
- O país passou de 30º a 6º maior mercado de música do mundo de 2007 a 2017 - superando o Brasil. A explosão no ocidente foi em 2012, com o fenômeno “Gangnam style”, de Psy
- Em 2005, o governo criou fundo de US$ 1 bilhão voltado ao k-pop. Estima-se que só o BTS movimente, direta e indiretamente, US$ 3,7 billhões ao ano na economia do país
- 1 a cada 13 turistas citou o BTS como motivo de escolher visitar a Coreia do Sul, diz o Instituto Hyundai. O turismo total no país triplicou nos últimos 15 anos
- A música ajuda até na sensível relação entre as Coreias. Em 2018, uma rara parceria permitiu vários shows de k-pop no Norte. O ditador Kim Jong-Un curtiu
- O governo incentiva o distrito de Changdong, em Seul, a virar o "bairro do k-pop": há casas de shows, estúdios, lojas e arena para 20 mil pessoas, prevista para 2021.
K-pop não é bagunça
Uma turma de adolescentes treina coreografias ao som de músicas do BTS no primeiro andar de uma casa no Centro de São Paulo. Logo em cima, fica uma sala cheia de livros de arte e negócios em coreano, um quadro de eventos e uma mesa bagunçada com pastas e relatórios.
As adolescentes se aproveitam do espaço aberto no Centro Cultural Coreano no Brasil (CCCB), inaugurado em 2013. Às sextas, há aulas de k-pop. Mas era uma quarta-feira. Os funcionários explicam que há sempre gente usando o salão livre e amplo do centro para treinar as coreografias.
A sala no 2º andar é de Young Sang Kwon, 50 anos, diretor do centro. Ele é, oficialmente, um diplomata coreano, e comanda uma equipe de oito pessoas. Eles planejam eventos e produzem relatórios, sempre enviados ao Ministério da Cultura da Coreia do Sul, que banca o CCCB.
A criação de centros de cultura em outros países faz parte da tal política lá de 1998. Já são 33 pelo mundo. Claro que o salto econômico da Coreia nos últimos 20 anos ajuda nessa expansão. Mas não se trata de gastar dinheiro que está sobrando. É investimento com retorno.
Em agosto de 2018, a revista "Forbes" noticiou que as ações das três maiores empresas de k-pop subiam, mesmo em um trimestre difícil nas bolsas de Seul. Investidores estavam animados com o sucesso dos grupos de k-pop na América do Norte e do Sul, disse a revista.
A verba total do governo sul-coreano para a cultura em 2019 é de R$ 6,4 bilhões (1,89 trilhão de wons). No Brasil, o orçamento para o setor cultural foi de R$ 1,9 bilhão - valor previsto em 2018, no final da gestão de Michel Temer, antes da extinção do Ministério da Cultura no atual governo.
Apoio grande, mas bem planejado
"A Coreia investe na área cultural, porque achou que era um mercado de futuro, que vai trazer resultado. Nos próximos anos, o mercado cultural vai crescer mais que os de Tecnologia da Informação e de automóveis", diz Sang Kwon.
Ele explica que apoio não é financiamento total. A maioria de subsídios é para grupos iniciantes ou projetos específicos. Há mais de 3 mil produtoras musicais na Coreia hoje, ele conta. As três grandes empresas do ramo (SM, JYP e YG) já andam muito bem com as próprias pernas.
A turnê do BTS no Brasil, por exemplo, tem verbas 100% privadas. Mesmo assim, os centros ficam de olho em dados e oportunidades escolhidas a dedo para parcerias, Sang Kwon explica. Ele dá o exemplo de apoio um festival de k-pop em um país onde o fenômeno crescia.
"A SM (dona de grupos como Girls' Generation, SHINee e EXO) estava interessada em fazer um evento na França. Mas o custo seria grande, pois o cachê dos artistas deles são altos. O governo coreano estudou, pesquisou, e viu que havia sim um potencial de ampliar muito o público francês. Então, houve um apoio direto e o evento foi um sucesso", ele conta.
Pop adolescente, negócio de gente grande
No Brasil, ainda não houve festival de grande porte com financiamento direto do governo coreano. O CCCB promove aqui aulas de dança, de culinária, concursos de k-pop, e apoia shows e eventos menores. Além dos 60 eventos por ano, eles ainda mantêm o governo de lá informado.
"Em um show como o do BTS, nosso papel é de levantar pesquisas, estudos, cobertura de imprensa, e passar os dados de reação do público ao governo da Coreia", explica Sang Kwon.
Sang Kwon não tem dúvida do impulso do k-pop para seu país natal. Ele cita dados de turismo. Mesmo sendo um destino distante e caro, o número de visitantes brasileiros lá subiu de 4,8 mil em 2003 a 19,7 mil em 2018.
"Cada vez mais gente nos procura para cursos de língua, também", ele diz. Não precisa ir longe para saber o perfil de um público cada vez mais interessado na Coreia: são as meninas adolescentes treinando as coreografias do BTS lá no primeiro andar.
O diretor não é o público alvo do k-pop. Ele é mais fã da dança contemporânea e do cinema do seu país. Ele admite que o fenômeno do k-pop pode tirar o foco de outros setores tradicionais da cultura. "Por outro lado, ele pode ser uma porta de entrada para outros conteúdos nossos."
Sang Kwon tem jeito de intelectual e fica sem graça ao ser perguntado sobre seu integrante preferido do BTS. No fim das contas, declara: Jimin. Ele diz que estará na plateia do Allianz Parque no dia 25, claro. Trabalho é trabalho.
'Soft power'
O k-pop está longe de ser um caso isolado de sucesso atual da Coreia do Sul . O país triplicou seu Produto Interno Bruto (PIB) entre 2000 e 2018 - de US$ 500 bilhões a 1,5 trilhão. A música está em um contexto de inovação em cultura e tecnologia que ajudou neste salto.
O estalo para o investimento público no setor nem foi musical. Foi a explosão de audiência de uma novela sul-coreana na China, "What is love", em 1997, que fez o governo pensar em globalizar sua cultura pop. É o que contam os pesquisadores Tae Young Kim e Dal Yong Kim.
Foi nesta época que o Ministério da Cultura, que havia sido criado em 1990, começou a receber mais investimentos e modernizar seus programas. A atenção não era apenas às manifestações tradicionais coreanas, mas também à cultura pop, com o tal “departamento de k-pop”.
Os pesquisadores analisam o "soft power" no artigo "Política cultural na Onda Coreana", publicado no "International Journal of Communication". "Soft power" (poder brando) é o termo para falar da influência que um país exerce através do seus produtos culturais, como o cinema dos EUA.
A tal "onda coreana" (ou "hallyu", na língua local) é o nome usado para a explosão da arte e cultura do país pelo mundo, da qual o k-pop é ponta de lança. O artigo mostra como os discursos presidenciais na Coreia incorporam este "soft power" trazido pela música.
K-pop salvou o planeta?
A influência aponta para todo o planeta. É comum que lançamentos de k-pop tenham versões com letras e até clipes específicos para fãs da China. Por outro lado, eles chegam cada vez mais ao mercado dos EUA, vide o show do BTS que emulou a 'beatlemania' no programa de Stephen Colbert.
BTS imita Beatles no programa de TV dos EUA "The Late Show with Stephen Colbert" — Foto: Reprodução/Youtube
Um discurso histórico analisado no artigo de Tae Young Kim e Dal Yong Kim foi da ex-presidente Park Geun-hye na abertura do Mnet Asian Music Awards (MAMA) em 2014.
É como se o presidente do Brasil discursasse na abertura de uma premiação pop, para atingir tanto os fãs daqui quanto uma audiência global da música brasileira.
"O MAMA começou com o k-pop e agora se tornou cosmopolita, disponível para 2,4 bilhões de pessoas pelo mundo. Também representa o sucesso da economia criativa", ela disse no artigo.
No mesmo ano, a ex-presidente disse na Conferência de Lideranças Asiáticas que "a 'onda coreana' se tornou uma tendência internacional" que permitiu ao país "compartilhar corações e amizades".
O exemplo mais espetacular de ajuda do k-pop à Coreia (e ao planeta) foi em abril de 2018, já no governo de Moon Jae-in. Dois meses antes, o ditador do norte, Kim Jong-Un, encerrou a reunião histórica com o presidente dos EUA, Donald Trump, sem um acordo nuclear para dissipar a tensão.
O governo mais moderado de Moon Jae-in continuou empenhado em se aproximar dos norte-coreanos para amenizar a situação. Todo mundo ficou surpreso, mas aliviado, quando Kim Jong-Un aceitou receber shows de k-pop na Coreia do Norte como um gesto de aproximação.
Quem era o representante do sul ao lado de Kim Jong-Un durante um show, ajudando a tirar uma bomba nuclear das preocupações de todo mundo? O ministro da cultura da Coreia do Sul, Do Jong-hwan. Não foi um acordo nuclear, mas virou amizade musical.
O ministro disse na época que Kim Jong-Un parecia saber da influência cultural que o k-pop poderia exercer na Coreia do Norte, estava disposto a aceitar a troca cultural, e que ele ainda parecia bem humorado e até "cabeça aberta" durante a apresentação.
Ditador norte-coreano assiste a um concerto da Coreia do Sul
Nem tudo são flores
Mesmo surfando na onda coreana, dois casos recentes mostram riscos na relação do Estado com produtores de k-pop. Ele investe e colhe os louros desse mercado. Mas as empresas são privadas, e os interesses podem ser diferentes.
O governo tem que achar a distância certa da indústria criativa para que o apoio tenha resultado positivo, mas sem se intrometer na criatividade dos produtores. Mas nem sempre é claro o que é positivo e o que é interferência.
Em fevereiro de 2019, o governo voltou atrás em uma crítica à "aparência muito similar" dos cantores. O Ministério da Igualdade de Gênero e Família mandou diretrizes a redes de TV dizendo que a semelhança "podia levar a audiência a desenvolver padrões de beleza não-saudáveis".
"A beleza padronizada dos espetáculos musicais é um problema sério. A maioria deles são membros das 'idol bands', mas não representam as várias aparências da sociedade", dizia a mensagem. "A maioria tem aparência similar, como cor de pele, cabelos, roupas e maquiagem."
Fãs e políticos de oposição acusaram o ministério de censura. "Qual é a diferença para uma ditadura militar que controla os cortes de cabelo dos homens e tamanho das saias das mulheres", criticou o deputado da oposição Ha Tae-keung.
O ministério cancelou a diretriz e publicou no Twitter que "interpretar essas propostas como censura... é uma distorção da proposta do guia" e negou a "intenção de regular a produção de TV."
Astro do K-Pop Jung Joon-young foi preso após escândalo sexual — Foto: JUNG Yeon-Je/AFP
A segunda rusga, essa mais explícita para os fãs, foi a série de escândalos sexuais que arranham a imagem limpinha dos artistas ídolos do k-pop. Neste caso, o tal objetivo da nação de "compartilhar corações e amizades" através da música pode virar só problema mesmo.
Em março, o astro Jung Joon-young foi preso após acusação de ter filmado mulheres praticando sexo sem o seu consentimento. Ele não só gravou, como compartilhou as imagens em grupos de mensagens, que incluía outros artistas da Coreia do Sul.
Dias antes, o cantor Seungri, do grupo de K-pop Big Bang, anunciou aposentadoria após acusação de suborno sexual.
As ações da YG, uma das três maiores do k-pop, caíram 15,6% em um dia e até hoje não se recuperaram. Neste caso, o k-pop mostrou que seu grande poder também pode ser negativo.