Maria Bethânia e Caetano Veloso surpreendem o público da Farmasi Arena ao incluírem ‘Fé’, música de Iza, no roteiro do show que estreou no Rio ontem, 3 de agosto — Foto: Rodrigo Goffredo
“Fé pra quem é forte / Fé pra quem é foda / Fé pra quem não foge à luta / Fé pra quem não perde o foco / Fé pra enfrentar esses filha da puta”
♪ Foi com misto de incredulidade e surpresa que o público da Farmasi Arena ouviu Caetano Veloso e Maria Bethânia cantarem na noite de ontem, 3 de agosto, toda a letra de Fé sem abafar o sonoro palavrão do refrão da música lançada por Iza em junho de 2022.
Fé foi a maior surpresa (mas não a única) do roteiro do show Caetano & Bethânia, cuja turnê parte do Rio de Janeiro (RJ) – cidade que abriga os dois ícones da MPB desde os anos 1960 – para outras capitais em rota que se estenderá até dezembro, totalizando 16 apresentações.
Embora alicerçado no cancioneiro de Caetano, como Bethânia já sinalizara, o roteiro abriu brechas imprevisíveis fora do arco autoral do compositor. Uma delas foi a inclusão de Deus cuida de mim, canção de louvor evangélico da lavra do pastor fluminense Kleber Lucas.
Cantor e compositor, Lucas apresentou Deus cuida de mim em 1999 e regravou a canção com Caetano em 2022. Um silêncio quase incômodo envolveu a maior parte da plateia quando Caetano entoou Deus cuida de mim em set solo após o cantor saudar a expansão da população de crença evangélica (“O fato de o número de evangélicos crescer enormemente no Brasil tem uma enorme importância para mim”).
Era como se a plateia pagã presenciasse um milagre na voz de quem já se proclamara ateu (“Deus não existe”), mas que, recentemente, pareceu já ter relativizado o ateísmo a ponto de ter se caracterizado em 2022 como “católico de axé, pós-ateu”.
O axé das religiões de matriz afro-brasileira também pontuou o roteiro, que incluiu Milagres do povo (Caetano Veloso, 1985), Filhos de Gandhi (1973) – saudação na batida do ijexá ao doce bárbaro Gilberto Gil, compositor do tema que celebra o bloco baiano de afoxé Filhos de Gandhi, um dos polos afros do povo da Bahia preta – e Dedicatória (1985), lembrança surpreendente dessa música composta por Caetano para o espetáculo Maria Bethânia 20 anos (1985) em louvor à ialorixá Maria Escolástica da Conceição Nazaré (1894 – 1986), imortalizada como Mãe Menininha.
A ialorixá Mãe Menininha foi um dos esteios de uma fé brasileira que, no roteiro do show Caetano & Bethânia, se espraia sincrética por outros terreiros e púlpitos sem deixar de priorizar os maiores sucessos dos cantores porque o espetáculo nasceu moldado para multidões.
Após exaltações à Mangueira, Caetano Veloso e Maria Bethânia explicitaram no fim do show a saudade de Gal Costa (1945 – 2022), de certa forma já lembrada silenciosamente antes com o canto de Não identificado (1969), a canção que Caetano fez para ela. “Gal para sempre. Gal foi o mais perfeito eco da bossa nova e a mais bela tradução do que tinha de mais rock’n’roll no tropicalismo”, saudou Caetano. “Gal para sempre”, reiterou Bethânia.
Juntos, os irmãos homenagearam Gal com a lembrança de Baby (1968) – canção que Caetano fez para Bethânia, mas que acabou imortalizada na voz cristalina de Gal – e de Vaca profana (Caetano Veloso, 1984), rock que tem o refrão cantado por Bethânia pela primeira vez em cena em mais um momento que, entre hits já esperados, o público sentiu misto de incredulidade e surpresa.
♪ Eis as 41 músicas do roteiro seguido por Caetano Veloso e Maria Bethânia em 3 de agosto de 2024 na estreia nacional da turnê do show Caetano & Bethânia na Farmasi Arena, na cidade do Rio de Janeiro (RJ):
Caetano Veloso e Maria Bethânia:
1. Alegria, alegria (Caetano Veloso, 1967)
2. Os mais doces bárbaros (Caetano Veloso, 1976)
3. Gente (Caetano Veloso, 1977)
4. Oração ao tempo (Caetano Veloso, 1979)
5. Motriz (Caetano Veloso, 1983)
6. Não identificado (Caetano Veloso, 1969)
7. A tua presença morena (Caetano Veloso, 1971)
8. 13 de maio (Caetano Veloso, 2000) /
9. Samba de dois-dois (Roque Ferreira e Paulo César Pinheiro, 2004) /
10. A donzela se casou (Moreno Veloso, 2022)
11. Milagres do povo (Caetano Veloso, 1985)
12. Filhos de Gandhi (Gilberto Gil, 1973)
13. Dedicatória (Caetano Veloso, 1985)
14. Eu e água (Caetano Veloso, 1988)
15. Tropicália (Caetano Veloso, 1967)
16. Marginália II (Gilberto Gil e Torquato Neto, 1968)
17. Um índio (Caetano Veloso, 1976)
18. Cajuína (Caetano Veloso, 1979)
Set Caetano Veloso
19. Sozinho (Peninha, 1996)
20. O leãozinho (Caetano Veloso, 1977)
21. Você não me ensinou a te esquecer (Fernando Mendes, José Wilson e Lucas, 1978)
22. Você é linda (Caetano Veloso, 1983)
23. Deus cuida de mim (Kleber Lucas, 1999)
Set Maria Bethânia
24. Brincar de viver (Guilherme Arantes e Jon Lucien, 1983)
25. Explode coração (Gonzaguinha, 1978)
26. As canções que você fez pra mim (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1966)
27. Negue (Adelino Moreira e Enzo Almeida Passos, 1960)
28. Vida (Chico Buarque, 1980)
Caetano Veloso e Maria Bethânia:
29. Sei lá, Mangueira (Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho, 1968) /
30. Atrás da verde-e-rosa só não vai quem já morreu (David Correia, Paulinho Carvalho, Carlos Senna e Bira do Ponto, 1993) /
31. A menina dos olhos de Oyá (Alemão do Cavaco, Almyr, Cadu, Lacyr D Mangueira, Paulinho Bandolim e Renan Brandão, 2016)
32. Exaltação à Mangueira (Enéas Brittes da Silva e Aloísio Augusto da Costa, 1955)
33. Onde o Rio é mais baiano (Caetano Veloso, 1994)
34. Baby (Caetano Veloso, 1968)
35. Vaca profana (Caetano Veloso, 1984)
36. Gita (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1974)
37. O quereres (Caetano Veloso, 1984)
38. Fé (Iza, Sérgio Santos, Pablo Bispo, Ruxell, Lukinhas, Henrique Bacellar, Junior Pierro e Fabinho Negramande, 2022)
39. Reconvexo (Caetano Veloso, 1989)
40. Tudo de novo (Caetano Veloso, 1978)
Bis:
41. Odara (Caetano Veloso, 1977)