Por Célio Silva, g1 — Rio de Janeiro

À primeira vista, “Anatomia de uma queda”, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (25), poderia ser apenas mais um desses dramas de tribunal que existe aos montes em canais de TV por assinatura ou nas plataformas de streaming da vida. Mas isso é apenas na superfície.

O filme dirigido por Justine Triet (“Sybil”) apresenta uma obra muito mais elaborada do que a maioria vista no gênero, que instiga e prende a atenção durante os seus 151 minutos de duração. Isso se deve a um grande cuidado para contar bem sua história e desenvolver seus personagens de maneira profunda e, ao mesmo tempo, bastante satisfatória.

“Anatomia de uma queda” se consagrou como um dos melhores filmes de 2023 desde que conquistou a Palma de Ouro em Cannes e conseguiu cinco indicações ao Oscar 2024 — mesmo sem ter sido a escolha da França para representar o país na categoria de produções internacionais.

Com isso, aparece nas listas de melhor filme, melhor direção (Justine Triet), melhor atriz (Sandra Hüller), melhor roteiro original e melhor edição. Todas merecidas.

No Globo de Ouro 2024, levou ainda os prêmios de melhor roteiro e melhor filme de língua estrangeira.

Assista ao trailer de 'Anatomia de uma queda'

Assista ao trailer de 'Anatomia de uma queda'

Logo nos primeiros minutos, o público é apresentado aos três personagens essenciais da trama: a escritora Sandra Voyter (Sandra Hüller, de “Zona de Interesse” e “As faces de Toni Erdmann”), seu marido, Samuel (Samuel Theis) e o filho do casal, Daniel (Milo Machado Graner), que vivem em uma casa isolada nos Alpes franceses.

Um dia, Samuel cai do alto de uma das janelas da casa e morre. A tragédia é investigada pelas autoridades da França e o caso vai parar nos tribunais. Durante o julgamento que acusa Sandra da morte do marido, certos fatos sobre a vida do casal são revelados, o que faz com que Daniel entre em conflito.

O menino, que depôs como testemunha, não tem certeza do que realmente aconteceu, já que é deficiente visual, nem se a mãe é realmente inocente, o que abala a relação dos dois.

Sandra (Sandra Hüller) é julgada pela morte do marido em 'Anatomia de uma queda' — Foto: Divulgação

Culpada ou inocente?

O grande destaque de “Anatomia de uma queda” é a forma com que Triet desenvolve sua história, na qual mostra pulso firme para contá-la da melhor maneira possível. Assim, a cineasta francesa consegue construir um drama familiar sólido e intenso, sem se descuidar dos momentos ocorridos no tribunal.

Triet, que também assina o roteiro ao lado de Arthur Harari (que escreveu “Sybil” com ela), é muito bem-sucedida ao fazer com que as reviravoltas da trama funcionem de forma contundente, brincando com a possível culpa ou inocência da protagonista.

Sandra (Sandra Hüller) pede ajuda ao amigo e advogado Vincent (Swann Arlaud), em 'Anatomia de uma queda' — Foto: Divulgação

Essa ambiguidade é essencial para deixar o espectador intrigado sobre a personalidade de Sandra, que é mostrada de forma bem profunda e densa, tornando-a bastante tridimensional. Isso ajuda a fazer o espectador refletir se ela é uma boa pessoa ou não, inclusive em relação a seu filho. Esse dilema só engrandece o filme.

Além disso, a diretora trabalha com temas atuais, como a influência das redes sociais para “cancelar” ou não a reputação das pessoas. À medida que o julgamento avança, os fatos divulgados na internet ora ajudam, ora prejudicam a situação da escritora. Ela ainda tem que lidar com a desconfiança dos franceses por ser uma alemã criada na Inglaterra, e nunca ter sentido confortável naquele país. De forma sutil, a cineasta trata os efeitos que a xenofobia, cada vez mais discutida na Europa, podem causar na vida das pessoas.

Triet também se destaca na condução de cenas bem impactantes. Com ótimos diálogos, a diretora cria momentos memoráveis, como a sequência em que Sandra e Samuel discutem e colocam para fora todas as suas frustrações. Assim como um envolvendo Snoop, o cãozinho de Daniel, que pode chocar principalmente quem tem um bicho de estimação. Nessas duas cenas, ficam bons exemplos de quão excelente é seu trabalho na direção.

Sandra Hüller foi indicada ao Oscar por sua atuação em 'Anatomia de uma queda' — Foto: Divulgação

Mãe e filho de ouro

O outro grande mérito de “Anatomia de uma queda” está em seu incrível elenco, em que os maiores destaques são Sandra Hüller e Milo Machado Graner. A atriz, que já havia trabalhado com Triet em “Sybil” (2019), domina a tela com uma atuação fascinante e complexa.

Isso se deve ao fato de que sua personagem apresenta um comportamento contraditório, seja com as pessoas que estão ajudando em sua defesa, como o amigo e advogado Vincent (Swann Arlaud), seja com seu próprio filho. A interpretação de Hüller ajuda a plantar a dúvida no espectador se Sandra é realmente inocente da morte do marido como diz, ou se tem alguma culpa pela tragédia. Talvez outra atriz não conseguiria um resultado tão bom.

Milo Machado Graner impressiona ao construir um personagem difícil. Seu Daniel é um garoto com problemas pessoais ainda mais complicados com a suspeita que passa a pairar sobre sua mãe. Ele não tem um relacionamento tão bom com ela quanto tinha com o pai falecido.

O ator passa muita verdade nas cenas com as inseguranças e medos de Daniel, o que ajuda a tornar o filme uma experiência e tanto.

Daniel (Milo Machado Graner) vive um grande conflito interno em 'Anatomia de uma queda' — Foto: Divulgação

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