Kleber Mendonça Filho nunca escondeu seu amor pelo cinema. Em seu novo documentário, "Retratos fantasmas", o diretor brasileiro costura lembranças de sua própria vida e obra com as grandes salas clássicas de rua de Recife (PE).
O filme, que estreia nesta quinta-feira (24) no Brasil após exibições nos festivais de Cannes e Gramado, explora a história e o atual estado dos cinemas do centro da cidade natal do cineasta — mas vai além.
Com imagens do apartamento comprado por sua mãe, usado em "O som ao redor" (2013), Mendonça Filho leva o tema para um lado mais pessoal. Mesmo que não seja algo consciente.
"Eu acho que eu acho que ele é, obviamente, muito pessoal, mas não mais do que os outros que eu já fiz", diz o diretor de "Aquarius" (2016) e "Bacurau" (2019), em entrevista ao g1.
Na longa conversa, ele falou mais sobre suas motivações para gravar o documentário, a importância dos cinemas de rua, recomendou a participação como membro do júri em Cannes (algo que fez em 2021), e explicou por que acha que "o pior filme de boneca sempre será melhor do que dez filmes de bonecos".
"A lógica é muito simples. O filme de boneco virou um pouco como uma praga, né?"
Leia, abaixo, a entrevista (editada para clareza):
Imagem em 'Retratos fantasmas' — Foto: Divulgação
G1 - Parece ser uma coisa muito pessoal para você esse filme. Tem essa diferenciação na sua cabeça enquanto faz um filme, algo ser mais para você ou mais para o público?
Kleber Mendonça Filho - A pergunta é totalmente justa, mas eu francamente não sinto diferença em minha relação com "Retratos fantasmas" e "Vinil verde", "O som ao redor", "Recife frio" ou "Bacurau". Eu dedico a mesma quantidade de energia e entusiasmo por uma ideia de filme, de cinema, na qual eu estou trabalhando.
Eu já li a respeito, eu sei que acontece, faz parte da história do cinema, pessoas que eu conheço entram às vezes em uma maré de desânimo em relação a um projeto. Alguns não conseguem se recuperar. Eu tive a sorte de até agora não ter (passado por isso).
Eu sempre tive muito entusiasmo pelos filmes que fiz. O "Retratos fantasmas" é um filme que está sendo visto, interpretado como mais pessoal do que os outros por questões muito claras, né? Eu coloco minha voz. Eu mostro a minha sala de estar na casa da onde eu morei muitos anos e eu sou muito franco em relação a isso.
Não há muita coisa, na verdade. Se você parar para pensar, eu dedico alguma atenção à base amorosa da minha família, de onde eu venho basicamente, mas depois o filme (fala) sobre muitas coisas.
Mas eu acho que essa honestidade é muito importante para qualquer filme, né? "Aquarius", por exemplo, eu acho que é um filme muito honesto. Fala muito sobre relações humanas, e isso vem de relações pessoais mesmo, de experiência pessoal.
"Retratos fantasmas" escancara isso, porque, quando eu resgato uma imagem no acervo da Globo de minha mãe falando sobre história oral, é claro que a coisa fica muito pessoal. Para mim é muito bonito e é muito importante.
Mas o filme, na verdade, vai para a cidade, vai para as ruas, vai para o cinema, vai para o arquivo público estadual onde eu sou visto de lá para cá com os volumes de jornais antigos. (risos)
Eu acho que eu acho que ele é, obviamente, muito pessoal, mas não mais do que os outros que eu já fiz.
Engraçado, nos anos 90, eu fui pago por Alcymar Monteiro, que é uma estrela do forró do Recife, para fazer um vídeo clipe.
Supostamente seria um job, né? Pago, o clipe. Na verdade, tem muita coisa dele que poderia inclusive estar no "Retrato fantasmas". Porque é basicamente um monte de planos, alguns deles até muito bem feitos, dele nas ruas da cidade. Então, nem em um job assim eu consegui chutar o pau e fazer qualquer coisa (risos).
G1 - (risos) Mas é que, quando o documentário foi divulgado, muito se falou sobre ser um filme sobre cinemas de rua, sobre o estado deles no centro de Recife, sobre a história deles. Daí, eu me surpreendi quando vi aquela primeira parte sobre o apartamento da sua mãe, que foi muito legal de acompanhar. Acho que por isso que ficou essa impressão de que é algo muito pessoal.
Kleber Mendonça Filho - E acho que a vida, as histórias que você conta, elas são compostas por pessoas, né. Pessoas importantes que moldaram de alguma maneira a sua vida, né?
Esse filme tem duas pessoas que são muito importantes para mim. Tem muitas pessoas, mas a minha mãe e Seu Alexandre são pessoas que eu queria compartilhar. Eu gosto disso.
Gosto dessa possibilidade de alguém conhecer essas pessoas que inclusive já não estão mais aqui, mas elas fazem parte de um círculo de ideias, de uma certa lógica, que meio que me influenciou de muitas formas, eu diria.
Mas, ao mesmo tempo, se você pensa no cachorro do vizinho, Nico.
G1 - Nossa, é verdade.
Kleber Mendonça Filho - Nico virou um grande problema para mim para Emilie (Lesclaux, mulher do cineasta e produtora de seus filmes), porque ele é o que eu falo no filme.
Ele latia muito. Coitado. Então, você imagina um casal que em um determinado momento do domingo prefere sair de casa do que ficar, porque o cachorro não para de latir. E você não é o tipo de gente que vai matar o cachorro, envenenar o cachorro.
G1 - Claro.
Kleber Mendonça Filho - Então, mas aí o tempo passa, ele morre e fica um drama muito forte na minha cabeça. O drama do som. O drama de finais de semana que eu achei que estava abandonado, né? Achei que ele não deveria estar sozinho no final de semana inteiro.
Nico virou uma presença muito dramática na minha cabeça, até que ele entrou no "O som ao redor". Ele entrou de maneira muito natural. Eu nem pensei. Quando eu vi, estava escrevendo sobre Nico.
E aí, ele entrou também no filme ("Retratos"), porque aconteceu aquele incidente muito interessante de "O som ao redor" passar na Globo e eu, durante alguns segundos, não entender o que estava acontecendo. Porque eu sabia que ele já tinha morrido, mas ele estava latindo de novo.
Então, são coisas que fazem parte da textura, né? Que você tem como artista, como observador das coisas. E essas histórias foram se sedimentando na montagem, né?
Eu contava para Matheus (Farias), o montador (de "Retratos"): E o que é que tu acha? De eu contar a história de Nico? Você acha você acha interessante?".
E ele: "O que? É muito interessante". (risos)
Mateus era tipo um psiquiatra, né? Eu falava uma ideia assim, e às vezes eu mesmo estava tentando detonar a própria ideia, e ele estava defendendo, entendeu? Mas eu fazia isso meio como para testar a ideia, né?
Como alguém que, para testar um uma prancha, tenta quebrar a prancha para ver se ela segura.
O filme foi todo construído em cima dessas ideias que vão surgindo. Como a casa que virou um bunker. É muito triste. Ela foi quase que implodindo.
Então, tudo isso foi fazendo parte daquela primeira parte que, eu concordo, é muito forte. Boa primeira parte.
Imagem de 'Retratos fantasmas' — Foto: Divulgação
G1 - Não. É excelente. E aí as outras duas partes do filme focam muito nessa questão dos cinemas de rua. Inclusive, primeiro gostaria de agradecer por isso, porque também me trouxe lembranças da minha infância. Obviamente você sempre gostou do cinema de rua. Qual é a importância que você vê neles para o cinema em si e para quem faz cinema?
Kleber Mendonça Filho - Existem duas maneiras de responder. Uma, a que eu acho que não é muito produtiva, é que os cinemas de rua no passado atendiam às demandas do passado. Essas demandas mudaram completamente.
Então, eu espero que quem veja o filme entenda que eu não estou defendendo a volta dos cinemas na rua, porque para isso acontecer, eu diria que muita coisa tem de ser alterada no próprio sistema capitalista. Isso não vai acontecer, né?
Eu não tenho essa ilusão de que nós teremos de volta do jeito clássico dos anos 30, 40, 50, 60. Mas o que é interessante, que o filme mostra e defende, é, por exemplo, esse cinema de 1952. Ele foi até 2006 como sala comercial. Quando fechou, ele foi comprado pelo governo de Pernambuco.
É aí que entra o que eu tô querendo dizer. Ele reabriu como uma sala de formação de público e de cultura. Não é fácil fazer isso. É preciso ter um investimento muito grande e uma inteligência política de entender que esse cinema não é algo que vai dar lucro.
O lucro dele vem em uma outra moeda, que é da cultura da formação.
O São Luís, do governo de Pernambuco, abriu em 2010. Ele reconstruiu-se como sala especial. É uma sala que recebe no segundo semestre nove festivais muito diversos e ele dedica muita atenção a clássicos, a cinema de repertório, a um cinema brasileiro menos comercial e ele ainda tem ousadia de às vezes colocar um blockbuster.
Que, aliás, eu não sou contra, principalmente porque não toma a programação inteira.
E ele é equipado com um projetor 4K antes, inclusive antes do 4K virar o padrão. Ele é mais bem equipado do que muitas salas de multiplexes. Ele criou um microclima.
Para você ter uma ideia, o "Bacurau" fez 33 mil espectadores no São Luís. Ele só perdeu, com acho que mil espectadores de diferença, do (Espaço) Itaú na Augusta, em São Paulo.
É um caso muito particular de você ver filmes pernambucanos com fila às cinco da tarde na rua, como eu lembro quando eu fui ver "Apertem os cintos, o piloto sumiu", o "Crocodilo Dundee", "Os aventureiros do bairro proibido" quando era criança.
Agora, é fácil? Não. É um investimento grande. Você não pode ficar chocado quando vai ver um filme numa terça às 3 da tarde e nos mil lugares tem 14 pessoas, porque é normal. Isso faz parte.
G1 - E em multiplex acontece também.
Kleber Mendonça Filho - Multiplex acontece a mesma coisa. Mas tem muita gente com olhar meio neoliberal e que acredita que as coisas só podem existir se darem lucro, que dizem: "não tinha ninguém. Isso não pode dar certo não".
Claro que dá certo. Por exemplo, aquela sessão do (diretor italiano) Dario Argento, que está no filme. Se eu não me engano, tinham 700 pessoas naquela sessão e tinham mais de mil pessoas do lado de fora esperando para ver "Tubarão" em 4K, que era a sessão que veio depois.
Então, quando você tem 700 dentro e mil fora, a Rua da Aurora ganha uma outra energia, né? Ela ganha energia da cidadania, da segurança. Dizem assim: "caralho. Esse lugar é incrível. Eu nem acredito que estou aqui".
Isso é a reação de muita gente jovem, entendeu? Que nunca tinha ido lá. Foi, porque soube que ia passar o filme. É esse tipo de movimentação que faz valer o esforço.
Mas muita gente tem me perguntando se eu acho que vão voltar os cinemas de rua. Eu não acho que vão voltar aos sistemas de rua. A única maneira de voltar é como um instrumento de cultura.
E isso é um investimento muito particular, porque precisa de material humano e de dinheiro, né? E também de um trabalho da própria cidade. O entorno. O cinema não pode ser um uma jaula isolada com uma programação incrível. O entorno tem que fazer sentido também.
G1 - Aproveitando que o documentário fala sobre e a conversa é cinema, como foi lá em Cannes, como parte do júri, em 2021?
Kleber Mendonça Filho - Em primeiro lugar, foi uma experiência muito feliz. Eu sei que algumas dessas experiências podem ser bem desagradáveis. Já ouvi muita história de discordância, assim, mas foi uma experiência muito boa.
Eu já vi o festival de vários ângulos. Como crítico, muito jovem e novato, depois como crítico mais experiente, com o credenciamento que foi melhorando ao longo dos anos, dentro de um estilo meio meritocrático que eles têm. Quanto mais você vem, quanto mais você produz, mais você vai virando, sua credencial vai abrindo mais e mais portas.
Depois eu fui com "Vinil verde", na (mostra) Quinzena, como jovem realizador de curtas. E depois eu saí da crítica e fui como programador. E, finalmente, eu fui com "Aquarius", na competição, "Bacurau" na competição, e finalmente depois como júri, né?
E também estava no júri da Semana da Crítica em 2017, eu acho.
Mas é incrível, porque é como se você estivesse tendo acesso à história do próprio festival enquanto é construída. Por exemplo, a deliberação no domingo. Todos os celulares foram deixados fora, de maneira isolada, porque há um medo muito grande de vazar informações.
Vimos muitos filmes. Acho que a gente discutia no final de cada dia. A gente se reunia numa sala especial, um terraço muito agradável, com comida, bebida, com muito espaço para quem fuma fumar. Um tratamento muito bom.
Foi também muito especial, porque foi a primeira vez que eu voltei ao cinema depois da pandemia. Meu primeiro filme foi a "Annette", que começou com a tela preta e a voz do Leos Carax falando: "A partir de agora, não respire". Eu achei muito curioso ver depois da pandemia.
Mas foi incrível. Recomendo (risos).
Mylene Farmer, Kleber Mendonca Filho, Maggie Gyllenhaal, Jessica Hausner, Mati Diop, Melanie Laurent, Tahar Rahim e Kang-Ho Song formam o júri do Festival de Cinema de Cannes de 2021 — Foto: Vianney Le Caer/Invision/AP
G1 - (risos) E em Hollywood, qual a sua avaliação das greves dos roteiristas, dos atores? Você acha que talvez o cinema vai sair disso mais forte?
Kleber Mendonça Filho - Eu apoio completamente a greve. Acho que é um alerta. Acho que o pessoal está ligado no que pode acontecer a partir de agora, e acho que o que eles estão questionando é muito importante de se ligar no âmbito brasileiro. Porque nós temos grandes produtores de conteúdo, né.
Netflix, que produz para o Brasil. A Amazon, que produz para o Brasil. A Globo é uma grande produtora.
De repente, você é um diretor de arte que faz um filme cuja arte é uma referência e essa arte pode ser copiada e colada em várias séries e filmes e você fica a ver navios. Eu acho isso bem preocupante.
Estou dando um exemplo absurdo, mas pode acontecer com atores também. Já tem histórias de figurante que são copiados e colados, vozes que já estão contratualmente permitidas a serem usadas até o fim da eternidade.
Então, acho que a gente precisa se ligar muito nisso. Eu também, como autor, como artista, preciso entender que meus filmes serão protegidos no futuro. Eu quero que eles permaneçam os filmes que eu fiz.
Essa discussão pode ser muito útil. E engraçado como aqui no Brasil trata-se como se fosse só algo que está acontecendo em Hollywood, nos Estados Unidos, mas eu acho que pode ser um trailer do que a gente pode estar lidando em breve aqui.
Imagem de 'Retratos fantasmas' — Foto: Wilson Carneiro da Cunha/Divulgação
G1 - Para finalizar, no Twitter (agora, X), você brincou que "o pior filme de boneca sempre será melhor do que dez filmes de bonecos". Discorra um pouco a respeito.
Kleber Mendonça Filho - (risos) A lógica é muito simples. O filme de boneco virou um pouco como uma praga, né?
A princípio eu nunca teria nada contra os filmes de super-herói. Inclusive, revi há pouco tempo com meus meninos o filme do Richard Donner, "Superman", que eu gosto muito.
Eu gosto de um filme que ninguém gosta, o "Hulk", do Ang Lee. Gostei do "Pantera Negra". Gosto do primeiro "Homem-Aranha", do Sam Raimi. Um bom filme.
Mas o problema é que virou um uma fórmula de sucesso. O filme de boneco vira uma receita, né? E eles são filmados de uma maneira que eu simplesmente não entendo. Eu não sei se tem tanta pressão e eles filmam tudo com 14 câmeras em todas as cenas.
Não há nenhum estilo que você consiga perceber que foi um ser humano que fez aquilo. Todos eles têm o mesmo som, a mesma imagem. É uma coisa meio como se tivesse sido tudo se transformado em uma linha de montagem mecânica.
E eu acho que muita gente sente isso. Um filme de super-herói como uma coisa em que você está dormente. Sei lá. "Shazam!", "Guardiões da Galáxia 3". Todos têm o mesmo tipo de música e os mesmos tipos de efeitos especiais.
Mas, assim, de repente eu vou ver o novo "Aranhaverso" – e eu achei muito bom, entendeu? Mas é uma outra coisa, né? Eu eu estou aberto para ver, mas são muitas decepções, uma atrás da outra. Isso gera um cansaço. Você fica dormente.
E aí aparece um filme de boneca, que (risos) realmente tentou puxar o tapete de várias expectativas. Eu gostei disso. Achei isso interessante.
Agora, se daqui a 10 anos tiver só filme de boneca, boneca, boneca, boneca, boneca, boneca, boneca, boneca, aí vai ser a mesma coisa.