Boyhood
Quando começamos a acompanhar a história de Mason, ele tem sete anos de idade - e parece um garoto americano normal. Passados 12 anos, quando nos despedimos dele - depois de quase três horas de filme - Mason parece também um garoto americano normal, só que agora com 18 anos. O que acontece entre esses dois limites foi registrado pelo diretor Richard Linklater em "Boyhood: da infância à juventude" - que, com um pouco de sorte, ainda sobrevive em cartaz ao ataque dos "blockbusters" de fim de ano ("Interestelar", "Jogos vorazes" e quejandos).

É um trabalho impressionante, captado ao longo de mais de uma década - uma prova de o cinema ainda se presta a projetos épicos que não envolvam animação digital. "Boyhood", que foi sendo visto (e aplaudido) em festivais ao longo do último ano, chega em cada país que está estreando cheio de elogios e com uma bela expectativa. Quem não ficaria curioso para ver um trabalho desses? Eu mesmo ensaiei de conferi-lo em várias cidades por onde passei em 2014 - mas devido a sua duração, nunca sobrou tempo para que eu pudesse me dedicar a ele. Até que na semana passada consegui vê-lo aqui mesmo no Brasil.

Minha própria excitação era alta. Sobretudo porque o foco é o desenvolvimento de um menino - um processo com o qual eu poderia me identificar muito bem -, saí de casa já praticamente gostando de "Boyhood". Sou "presa fácil" para esse tipo de narrativa. Leitores mais assíduos certamente se lembram de um texto que escrevi aqui mesmo neste espaço - talvez um dos meus favoritos  - sobre o filme "A árvore da vida", de Terrence Malick: entre tantas coisas que mexeram comigo nesse trabalho exuberante, a relação entre o pai (Brad Pitt) e seus três filhos enquanto eles estão crescendo é um de seus aspectos mais fascinantes. Assim, pensando que no projeto hercúleo de Linklater achei que ia encontrar uma trajetória semelhante - que pudesse jogar uma luz na minha própria história (e na de tantos outros espectadores).

Toda essa antecipação, porém, acabou me fazendo esquecer de que o que eu estava prestes a assistir não era um documentário. Apesar de seu caráter de "reality" - que capta os atores numa evolução cronológica natural -, "Boyhood" é um trabalho de ficção, com um roteiro que era escrito - ou reescrito - praticamente a cada ano em que era filmado. Havia sim, pelo que li sobre o filme, um "arco" geral que o diretor queria mostrar. Mas a passagem de tempo e todos os acontecimentos em volta fizeram com que, inevitavelmente, esse roteiro fosse sendo adaptado. O que talvez tenha tornado todo o projeto ainda mais rico - mas de qualquer maneira, nem assim era possível esquecer que aquilo era um trabalho de ficção.

"Boyhood" não tem uma história incrível, daquelas de reviravoltas, que faz a gente ficar grudado na cadeira. Mason sofre sim com as mazelas do destino: seus pais se separam (logo de início já somos informados que o personagem de Ethan Hawke - que conhecemos apenas por "pai" - saiu de casa); o segundo marido de sua mãe (Patricia Arquette) é um bêbado agressivo; há uma sombra de bullying no colégio; o silêncio da adolescência; a sensação de não pertencer; o desafio sexual dos colegas mais velhos etc. Mas tudo muito dentro do esperado - não há surpresas.

E é justamente esta ausência que me fez pensar: será que eu estava gostando do filme porque estava assistindo a uma história que já conhecia - a de todos nós?

O mérito de Linklater vai muito além da bravura do projeto de filmar durante 12 anos. Com pouquíssimos elementos dramáticos, ele é capaz de nos conectar com um garoto que está "simplesmente" crescendo. Não tem gente que se projeta nos super-heróis que vê na grande tela? Qual o problema então de fazer essa conexão com um personagem comum?

Claro que a história de Mason não é tão simples assim a ponto de tornar-se desinteressante. Há um fascínio extra em acompanharmos um garoto crescer "diante dos nossos olhos" - as passagens de ano são assinaladas discretamente por diferentes cortes de cabelo. É como se a cada visual, a expectativa de que tudo mude na vida de Mason aumentasse. Mas nem toda vida é tão fascinante como as coisas que a gente vê no cinema... Num requintado exercício de ironia, Linklater parece estar nos desafiando: Quer uma biografia fascinante? Que tal a sua?

Essa sensação de que estamos vendo a própria vida se desenrolar à nossa frente é um blefe. Como já assinalei acima, eu era obrigado a me lembrar constantemente de que aquilo era uma história escrita - que tinha uma interferência autoral. Nem por isso, eu deixei de aproveitá-la como se fosse documental. E, por isso mesmo, saí do cinema pensando nesse nosso fascínio atual pela vida dos outros.

Livro Minha Luta 2 - um outro amorPotencializada hoje pelas redes sociais, parece que estamos cada vez mais encantados em ver a vida se desenrolar diante de nós, sem muito drama - ou melhor, com o simples drama do cotidiano. "Boyhood" é um sofisticado exemplo disso, assim como um livro que estou lendo agora - a segunda parte de uma saga de seis volumes que é uma sensação literária: "Minha luta 2 - um outro amor", do norueguês Karl Ove Knausgård.

comentei aqui sobre o primeiro volume dessa obra monumental (mais de 6 mil páginas no total!): "A morte do pai". Com um tom que não é nem confessional nem documental - apenas transparente - Knausgård nos acostuma logo de cara a ler longas descrições (ou mesmo longos diálogos) onde pouca coisa acontece "dramaticamente". Naquele primeiro volume, onde somos apresentados à família do narrador e personagem principal - chamado Karl Ove -, a intimidade com que entramos na sua vida é instantânea. Sua memória escorre como a mais natural das narrativas, como se muitas vezes, fosse nosso próprio pensamento que estivesse no comando.

Agora, em "Um outro amor", algumas coisas mudaram na vida do Karl Ove personagem - exatamente como mudaram na vida do autor Knausgård: ele sai de Oslo e vai morar em Estocolmo; despede-se do primeiro casamento e vê numa antiga paixão a possibilidade de um novo recomeço; torna-se pai; mesmo distante, problemas antigos com sua família voltam a aparecer. Mas tudo isso, como espera quem já se apaixonou por seu estilo desde o primeiro livro (eu!), vem naquele ritmo natural, de vida que passa.

Por exemplo, veja esse parágrafo sobre um episódio que acontece depois que Karl Ove chega a Estocolmo:

"No dia seguinte todo mundo se reuniu para jogar futebol, Ingmar Lemhagen arranjou uma bola para nós, a partida durou uma hora, e depois, quando me senti na grama ao lado de Linda, com uma Coca-Cola na mão, ela disse que eu andava como um jogador de futebol. Ela tinha um irmão que jogava futebol e hóquei e disse que nós dois parávamos de pé e caminhávamos mais ou menos do mesmo jeito. Mas é Arve, perguntou ela, você já viu como ele anda? Não, eu disse. Ele ainda anda como um bailarino. Com passos leves e etéreos. Você não percebeu? Não, eu disse, abrindo um sorriso para ela. Ela sorriu de volta para mim, se levantou. Estendi todo o meu corpo na grama e fiquei olhando para as nuvens brancas que deslizavam lentamente nas profundezas do céu."

Nada demais, não é? Só que quando você lê isso, já está totalmente absorvido pela trajetória de Karl Ove - e se a cena descrita tem muita ação ou não, pouco importa. Quem nunca ficou "olhando para as nuvens brancas que deslizavam lentamente nas profundezas do céu"? Tão banal que chega a ser patético. Mas felizmente Knausgård tem o dom de transcender o ordinário e transformar isso em literatura.

Como a vida de qualquer um, a de Karl Ove tem pequenas surpresas, reviravoltas e incidentes inesperados. Mas mesmo em situações assim, Knausgård não perde seu tom. Como neste outro parágrafo, que vem logo após ele testemunhar uma cena constrangedora em que o pai de Linda, seu amor reencontrado, a convida para que ela - então com 32 anos - venha sentar-se no seu colo. Toda a situação é de um enorme constrangimento. Mas Knausgård segue impávido nos contando tudo:

"Dei alguns passos para trás, evitando que a situação se complicasse ainda mais para ela como uma testemunha. Quando Linda apareceu no corredor eu estava olhando para os quadros pendurados ao longo da parede. Ela vestiu o casaco. O pai veio se despedir de nós, ele me deu um abraço como na vez anterior, ficou olhando para Vanja no carrinho de bebê, deu um abraço em Linda, ficou parado na soleira da porta e nos seguiu com o olhar quando entramos no elevador com o carrinho, ergueu a mão uma última vez e fechou a porta atrás de si ao mesmo tempo em que a porta do elevador se fechou e nós começamos a descer."

Estou exatamente neste momento do livro - ainda quero terminá-lo antes da grande viagem na qual vou embarcar na próxima semana (detalhes aqui na sexta-feira, lembrando que excepcionalmente nesta semana, você encontra um texto aqui por dia). E o maior indício de que fui "fisgado" novamente por Knausgård é que, mesmo sendo esse "tijolão" de 592 páginas, eu o levo comigo para todo o lugar - sempre encontro uma brecha para ler mais um pouquinho...

O autor americano Jeffrey Eugenides ("Middlesex", entre outros) chamou o estilo de Knausgård de "autoficção" - uma curiosa variação sobre o tema "biografia". Se essa definição te parece estranha, é porque ela é mesmo nova. Ou melhor, escrever sobre episódios pessoas transformando-os em literatura está longe de ser novidade - como um artigo que li recentemente numa ótima nova revista literária online, Public Books, Charles Dickens fez exatamente isso em "David Copperfield". Mas o que Knausgård traz é um certo frescor ao gênero, e com isso nos ajuda a redescobrir como a vida ordinária pode ser interessante.

Desde que, claro, você tenha - como Richard Linklater e Karl Ove Knausgård  - o dom de interferir nesse cotidiano, para apresentá-lo como arte. Tipo vida. Só que não.

O refrão nosso de cada dia: "Uva de caminhão", Wanderléa - como disse acima, basta olhar para a vida para transformá-la em arte. Mas é preciso ter o dom... Com era o caso de Assis Valente - meu homenageado nesta seção nos posts desta semana. Valente era um "sambista cronista": o que estava acontecendo a sua volta virava música. Um de seus sambas mais conhecidos é "E o mundo não se acabou" - sobre um boato, em 1938, de que cometas se chocariam com a Terra. Na música que indiquei ontem, "Recenseamento", o assunto era o censo que Getúlio Vargas havia encomendado em 1940. Na canção que você vai encontrar aqui amanhã ele brinca, veja só, com a "falta d'água"... "Uva de caminhão" é bem mais prosaica: comenta o antigo hábito de vender uva a preços baixos em caminhões no meio da rua - e para isso, mistura nomes de samba bem populares da época ("Flauta de bambu", "Pensão da dona Estela") com imagens cotidianas deliciosamente "no sense". Muita gente conhece a versão de Carmem Miranda, mas aqui, sugiro "Uva de caminhão" na voz de Wanderléa - para deixar as coisas ainda mais absurdas...

Fotos: Divulgação