Pare o que estiver fazendo e vá ler o novo livro de Marcelo Rubens Paiva
Passamos por um longo hiato - e, de repente, tanta coisa boa para escrever. Ontem fui à pré-estreia do novo filme de Woody Allen, "Homem irracional" (uma espécie de biografia alternativa de todos nós), que é tão genial que eu queria ter escrito sobre ele ontem mesmo, tarde na noite quando cheguei em casa. Na música, uma estranha coincidência fez com que eu ouvisse, na mesma semana, os novos álbuns de Emicida e de Dr. Dre - e meus dedos já começaram a tamborilar... Na TV, entusiasmei-me com "O Hipnotizador" e estou começando a gostar de "Show me a hero". Mas mesmo diante de assuntos tão suculentos, acho que temos que estabelecer prioridades - e a minha agora é te convencer a ler "Ainda estou aqui", o livro mais recente de Marcelo Rubens Paiva.
Não será uma tarefa árdua, uma vez que o trabalho já é elogiado por todo mundo que cruza com ele. Raras vezes vi um "boca a boca" tão forte - e, como sabemos bem, essa é a melhor "rede social" quando queremos divulgar algum produto cultural. Tal fenômeno aliás nem deveria ser recebido com tanto espanto. Ao longo de mais de três décadas, Marcelo colecionou um público cativo, fruto de um romance de estreia estupendo que praticamente marcou uma geração - se não duas (ou três).
Falo, claro, de "Feliz ano velho", livro de 1982 - uma brutal biografia relâmpago, de uma juventude interrompida por um acidente que, em 1979, que deixaria Marcelo tetraplégico. Curiosamente, porém, essa tragédia pessoal, que sempre emociona, não é o único elemento de sucesso do livro. Com uma franqueza às vezes chocante, ele nos leva à cena universitária daquele período, ao seu envolvimento com movimentos políticos estudantis - um talvez inevitável desdobramento da história de seu pai, preso e assassinado pela ditadura militar em 1971 (outro enredo paralelo bem explorado nas suas páginas) -, e sobretudo é um guia emocional para uma geração que estava saindo de uma repressão política e substituindo modelos de família que não cabiam mais no Brasil.
Tudo isso ressoou forte com a moçada dos anos 80. Fenômeno de vendas, "Feliz ano velho" catapultou Paiva para um patamar de autor admirado. O livro foi adaptado espertamente para o cinema, sob a direção de Roberto Gervitz, e ainda ganhou uma aclamada montagem teatral "histórica", com Lilia Cabral, Paulo Betti e Marcos Frota no elenco. Eu mesmo fui conferir mais de uma vez...
A onda "Feliz ano velho" foi tão forte que criou uma enorme expectativa: a de que Marcelo continuasse sua saga no livro seguinte. Saudavelmente teimoso, ele veio, muitos anos depois, com uma ficção chamada "Blecaute". Os fãs estranharam - muitos elogiaram. Mas Marcelo foi em frente, na sua missão velada de provocar com as letras - algo raro naquela década, ainda mais raro hoje em dia. Seguiu na sua missão de escrever segundo apenas seu próprio instinto. Até que...
Eu ia escrever "até que finalmente ele achou que seria hora de publicar uma continuação do seu livro de estreia" - mas se fizesse isso, estaria cometendo uma injustiça. "Ainda estou aqui", o volume que acaba de sair pela Alfaguara, é menos um "Feliz ano velho - parte 2" do que um revigorante olhar sobre a mesma geração com quem ele havia estabelecido diálogo mais de trinta anos atrás, com uma nova variável: sua mãe, de quem ele empresta a frase para o título da obra, está com Alzheimer.
Assim como seu acidente de 1979, a doença da mãe é um evento trágico de onde Marcelo parte para fazer inúmeras observações sobre sua vida - e sobre nossa vida. Além disso, munido de bem mais informações sobre a atrocidade que a repressão do nossos governantes de então impôs sobre seu pai - e sobre toda sua família - somos expostos a bastidores ainda mais constrangedores e sórdidos do nosso cenário político dos anos 70.
O toque de mestre de Marcelo, no entanto, é transformar esses momentos grotescos em uma narrativa não apenas lúcida como acessível. Com uma fluência invejável, o escritor divide seus problemas pessoas com o leitor, jamais para se colocar como vítima, mas para convidar para uma reflexão sobre a vida, o amor, a família - e essa praga que se abateu tanto tempo sobre nosso país: a ditadura militar. Seu tom nunca é de rancor. Talvez de leve indignação. Mas a ideia não é chocar - é dialogar. Uma sábia proposta de quem aprendeu com a paciência dos anos que olhar para a vida com revolta só gera mais ignorância - e que o melhor caminho para tudo é sempre o da investigação (seja pessoal ou universal), o da pergunta e o da resposta.
Escrevendo assim, talvez eu passe a impressão de que "Ainda estou aqui" não é um livro emocionante. Se fiz você achar isso, aqui vai um trecho para derrubar essa ideia, um parágrafo já quase no final, quando o Alzheimer da sua mãe já está em estágio bem avançado:
"No entanto, enquanto seu raciocínio está confuso, ela pega minha mão esquerda, mais fechada que a direita, e abre com carinho, dedo a dedo, para alongá-la. Como faz há trinta e cinco anos, desde os primeiros dias em que viu numa UTI paralisado. Seguindo uma recomendação da fisioterapeuta: alongar sempre que der a mão do filho tetraplégico, para não atrofiá-la. Um instinto materno poderoso atravessa o choque e o caos em que vive, e ela faz aquilo que rotineiramente foi parte da vida, cuida do filho."
O tempo em "Ainda estou aqui" é elástico. Marcelo abre com o relato (quase cômico) do dia em que legalmente passou a ser responsável por sua mãe - já que a doença estava interferindo demais no seu poder de decisão. Vem para o presente em emocionantes registros de sua relativamente recente paternidade. Volta ao Rio de Janeiro da sua infância privilegiada. Passeia pelas incertezas e descobertas dessa fase da vida. Apresenta o pai primeiro como tal - o homem que é tudo na vida de uma criança - e depois como figura política. Avança para seu acidente quase casualmente (raras são as vezes onde sua paralisia é mencionada nas mais de 250 páginas), mas tudo é sempre para fazer um pano de fundo para a trajetória fulgurante de sua mãe.
Eunice Paiva não é um exemplo de relação afetiva "mãe e filho". Num divertido capítulo, "Mãe-protocolo", Marcelo define com poesia dura o relacionamento entre eles:
"Minha mãe era assim: não me deu uma dura por engravidar a namorada, me deu uma força para resolver o problema. Minha mãe não era minha amiga. Não saíamos juntos. Não bebíamos ou fumávamos juntos. Eu não falava pra ela do que eu vi e vivi. Era minha mãe."
No entanto, é essa mãe que sai adorada de todas as histórias que Marcelo conta no livro. E como não admirá-la? Criou o autor e suas quatro irmãs enfrentando dificuldades - principalmente emocionais - inimagináveis para o brasileiro comum de hoje (suas dificuldades legais, bem descritas por Marcelo, por não ter um marido "oficialmente morto" são surreais!). Reinventou-se como profissional, como mulher - até como mãe. E, acima de tudo, serviu de inspiração para um livro maravilhoso.
Aos poucos, lendo "Ainda estou aqui", fui percebendo como estamos longe do Brasil que Marcelo descreve no livro. Não apenas na política - vivemos um momento de crise ideológica, mas nada que se compare às trevas daquela época. O Brasil do qual Marcelo nos faz sentir saudades é aquele que tem, em seus jovens, alguma coisa para dizer.
Quatro anos nos separam - Marcelo é de 1959, eu sou de 1963 - mas acho que posso falar em nome da "nossa" geração. Vivemos, nesses nossos cinquenta e poucos anos, uma abundância de referências culturais, de vozes criativas que mexiam com nossa cabeça e nossos corações. E, mais importante que isso, essas eram as mensagens que dominavam nossa vida, nossa comunicação - rádios, programas de TV, cinema, jornais e revistas.
Não havia internet na nossa juventude, claro, mas não faltavam ideias e provocações. E como gostávamos de ser provocados e de provocar! Aliás, ainda gostamos - é por isso que fico tão maluco quando vejo-me diante de tantas coisas legais para escrever, como citei logo no primeiro parágrafo do texto de hoje. E é só por isso que nos decepcionamos diante de uma geração que insiste em gostar da mesma coisa, de músicas que não dizem nada, de modelos culturais que só reforçam os limites de sua fragilidade.
"Ainda estou aqui" é oposto de tudo isso. É pura inteligência, sensibilidade e provocação. É também um livro - um artefato meio fora de moda, e imensamente menos popular do que twitter, que com seus 140 caracteres (se é que tem gente que usa "tudo isso" para expressar sua infelicidade e projetar sua bile hoje em dia). Mas é exatamente um livro como esse que faz a diferença.
É um livro como esse que alguém lê aqui, recomenda para uma amiga ali, que passa para um colega lá, que discute com sua classe mais adiante, que leva para suas casas novas ideias. E de repente, quando a gente nem percebe, estamos todos pensando de um jeito diferente.
Se hoje tudo parece muito medíocre, basta lembrar que o mundo muda sempre. E muda por causa de coisas como as que Marcelo Rubens Paiva escreve.
(FOTO: Marcelo Rubens Paiva CRÉDITO: FLÁVIO MORAES/G1)