Cena de 'Beasts of no nation', do Netflix
Como as assustadoras decorações de Natal dos shoppings que começam a pipocar cada vez mais cedo no ano - quer apostar que até o final deste mês você já viu uma ou duas na tua cidade? - os rumores sobre indicações para o Oscar são lançados cada vez com mais antecedência. Você que - como este que vos escreve - gosta do cinema americano e acompanha seus caminhos errantes - como os deste que vos escreve - já leu ou ouviu uma ou outra previsão ligeiramente prematura a esta altura do ano. A mais improvável delas, talvez, a de que o Abraham Attah, um garoto ganense de 15 anos, é uma aposta certa para concorrer à estatueta este ano.

Eu escrevi improvável? Bem, eu talvez esteja sendo conservador demais com o que a gente já conhece como a "máquina de promoção de Hollywood" - a mesma que, três anos atrás, conseguiu emplacar uma indicação para a (ainda mais jovem) Quvenzhané Wallis por sua participação em "Indomável sonhadora". Implicância minha - eu sei. Talvez eu tenha um problema com atores mirins - especialmente os que fazem papéis de oprimidos, algo que facilmente comove plateias. E é esse "problema" que ficou zunindo no meu ouvido durante as mais de duas horas do filme "Beasts of no nation" - uma das estreias mais esperadas do ano que conferi não numa sala de cinema, mas no conforto da minha sala, graças à Netflix (mais sobre isso daqui a pouco).

Já sabia que ia escrever sobre "Beasts" mesmo antes de ele estar disponível. Eu venero o livro de Uzodinma Iweala em que ele foi baseado (no Brasil ele ganhou o título de "Feras de lugar nenhum") - aliás, tenho um carinho especial porque ele foi tema de um dos meus primeiros posts deste blog que mês passado comemorou 9 anos! Foi então com muita expectativa - insuflada pelas críticas extraordinárias que o filme já vinha recebendo nos Estados Unidos - que dediquei minha tarde de domingo para ver a história de um garoto que é recrutado numa milícia depois de ter escapado da sua cidade onde seu pai, seu avô e seu irmão (sua mãe e sua irmã bebê tinham escapado já para a "capital") foram assassinados cruelmente em nome da guerra civil estúpida que assola um anônimo país africano - mas que possivelmente é o Congo.

A cada cena de Agu, o personagem interpretado por Attah, eu ficava pensando: será que este é mesmo um grande trabalho de ator, ou estamos mais uma vez diante de uma generosa crítica que, para diminuir sua culpa de uma vida tão opulenta, concede a uma história trágica (e ao menino que a interpreta) um passe-livre para o tapete vermelho das premiações hollywoodianas? Pode uma criança realmente interpretar, viver um sentimento que não conhece? Podemos ver, em suas expressões faciais ainda em formação, traços de angústia, terror, dor, eventual alegria, vergonha - e até alguma esperança? "Beasts of no nation" já estava quase terminando e eu não estava convencido de que esse rapaz - que não aparenta seus 15 anos, mesmo que o personagem que ele interpreta tenha aquela idade indefinida no filme, que pode ser qualquer coisa entre 7 e 14 anos - era mesmo um possível candidato a "grande ator". Aí vem o seu texto final.

Cena de 'Beasts of no nation', do Netflix

Seria uma confissão - se Agu tivesse tido a coragem de contar as coisas que fez para a educadora que está na sua frente. No lugar disso, ouvimos ele simplesmente dizer que fez coisas inimagináveis desde que foi recrutado como soldado mirim por uma milícia maluca que nem sabia direito pelo que estava lutando. E aí, como num daqueles socos finais que os grandes lutadores sabem dar para encerrar um embate no ringue, ele olha para a câmera e diz que um dia já teve um pai. Uma mãe. Um irmão e uma irmã. E eu não tive mais dúvidas: a não ser que se cometa uma grande injustiça, o Oscar é de Abraham Attah.

Dito isto, "Beasts fo no nation" é um filme que você tem que assistir - e não uso essa expressão como figura de linguagem. Ele fala sim de um dos aspectos mais horríveis da humanidade - esse aliciamento de menores, sobre o qual a gente ouve falar tanto nos noticiários internacionais, quando não mudamos de canal porque, afinal de contas, que chatice saber dessas coisas hediondas que acontecem do outro lado do Atlântico naquele que muitos preferem chamar de "continente perdido". Mas espere um pouco: será que esse processo cruel que o filme mostra é muito diferente daquele que a gente sabe que acontece no tráfico de drogas - que é uma inegável realidade das grandes cidades brasileiras?

Em mais de uma cena de "Beasts" - que é brilhantemente dirigido por Cary Joji Fukunaga, que assinou a primeira temporada de "True detective" - lembrei-me de cenas que já vi no próprio noticiário nacional: aquele bando de garotos avançando fortemente armados numa comunidade. Nossa realidade brasileira já está tão descaradamente desigual, que é num certo estado hipnótico que registramos imagens como essa, ainda que presenciadas ao vivo. Uma amiga que foi a um evento semana passada no Rio, chamado "Comida de favela", contava-me que quase não se espantou ao ver pelas mesmas calçadas em que ela experimentava delícias culinárias do morro, garotos empunhando fuzis.

A palavra-chave aí - e que o filme explora espertamente - é o "quase". Todos nós já estamos saturados de registros desse "mundo cão". Quase não nos importamos mais. Mas Fukunaga, inspirado pela história original e poderosa de Iweala (que aqui foi editado pela Nova Fronteira, mas está fora de catálogo - boa sorte!) - nos lembra que sempre é possível chamar nossa atenção para problemas como esses. Ainda que seja com uma estratégia de choque.

O trailer original que pega ligeiramente emprestado, na sua estrutura de "Sniper americano" ("será que ele vai matar ou não?") - já dá o tom do que vamos ver. As escolhas que Agu tem de fazer o tempo todo são brutais. Sua experiência - que, como logo percebemos, não é só sua, mas de todos os garotos quer estão sob a guarda do Comandante (assustadoramente perfeito na interpretação de Idris Elba) - é batizada no sangue, no ódio, num inexplicável desejo de vingança que é implantado na sua jovem cabeça sem que ele nem tenha noção ainda do que significa essa palavra.

O horror inicial de Agu logo é substituído por uma rotina. É isso que ele tem que fazer? Ok. Vamos em frente. A sequência de atrocidades que ele vê - e que nós acompanhamos - é tão atordoante que, já na segunda metade do filme é preciso que uma mãe e uma filha sejam sacrificadas de maneira mais horrorosa que já vi o cinema retratar uma crueldade (lembra de "Full metal jacket"? ... fichinha!) para que você saia do seu torpor e fique então indignado. Ou melhor, revoltado. Ou ainda, horrorizado de lembrar que coisas como essas - ou o sacrifício de pessoas com granadas grudadas nas suas bocas, que vemos numa outra cena chocante - acontecem no exato momento em que você está confortavelmente assistindo ao filme na sua casa.

Quero falar disso - dessa reviravolta que a Netflix está fazendo no mercado cinematográfico (depois de fazer coisa parecida com a televisão). Mas antes, deixe-me insistir: veja "Beasts of no nation". Na sua casa. Na casa de um amigo que tenha a assinatura. Dê um jeito e assista. Ponto. Você vai sair na rua de um jeito diferente, tenho certeza.

Aliás, as coisas estão mesmo mudando. Achei curioso que em nenhuma crítica que li sobre "Beasts" na imprensa americana eu vi uma linha sobre a sequência inicial do filme - que é uma referência ao mesmo tempo provocante, irônica e inesperada. Ou ainda, uma meta referência. Antes de a tragédia se abater sobre Agu e sua família, ele está brincando com seus amigos de "televisão". A primeira imagem do filme é a que ele é um colega fazem uma espécie de "casting": recrutando outras crianças para alguma coisa. Com uma caixa de TV antiga, Agu sai pela sua cidade tentando vender aquilo como se fosse uma televisão de verdade: ele coloca a carcaça na frente de alguém, gira os canais (sim, é das antigas), e dentro do "monitor" (na verdade, um "buraco mágico"), a ação se desenrola: pode ser um filme romântico, uma luta de kung-fu, ou até mesmo uma "imagem em 3D", como Agu anuncia - e seu elenco versátil interpreta. Nós mesmos, espectadores (ou telespectadores?) acompanhamos tudo por essa janela.

"TV da imaginação", é seu "slogan" - e não pude deixar de reparar na ironia de estar vendo o próprio futuro de Hollywood retratado ali naquele filme que, no lugar de estrear em milhares de salas de cinema nos EUA, foi apresentado ao público por um serviço de "streaming" de TV - a própria Netflix (este é o primeiro filme de longa metragem produzido por ela, disponível para seus assinantes desde sexta-feira passada). Com essa estratégia de lançamento, "Beast" provocou um boicote das empresas exibidoras de cinema americanas - e estreou apenas em algumas poucas salas em Nova York e Los Angeles, para poder qualificar ao Oscar. Mas o recado está dado: o futuro da telona talvez esteja na telinha. E eu diria que é um futuro interessante - mas eu divago...