O que eu cruzo quando eu cruzo a linha do tempo
Noves fora, o calendário está me devendo dois dias da minha vida. Não faço ideia se ainda ensinam "noves fora" na escola – eu mesmo nem me lembro como a gente chegava a uma conclusão dessas. Acho que tinha que ir somando todos os algarismos de um número e... Bom, talvez mais simples que isso – se eu conseguir explicar direito – é a própria conta desses dias que estão me faltando. Deixe–me tentar esclarecer...
Esta é minha quarta volta ao mundo – ou seja, eu já cruzei a linha internacional do tempo quatro vezes: três no sentido oeste e um no leste. Quando a gente cruza essa linha – que é imaginaria (e arbitrária) e fica bem ali, no meio do oceano Pacífico –, significa que estamos mudando de dia, independente do que está marcando no seu relógio. Se você está saindo dos Estados Unidos e chegando na Coreia do Sul (como acabei de fazer), indo para o Oeste hoje, você chega amanhã – mesmo tendo viajado menos de 24 horas (ou menos de 12 horas até). E se você está viajando no sentido leste – por exemplo, saindo da Mongólia para o Canadá, como eu também já fiz, você chega no mesmo dia, mesmo tendo viajado o tempo suficiente para seu calendário já ter avançado. Simples, não?
Reconheço que a ideia é meio estranha – um desafio para o bom senso. Umberto Ecco – um dos escritores contemporâneos mais respeitados – levou um livro inteiro para descrever esse fenômeno (o fascinante "A ilha do dia anterior"), mas mesmo quem o lê do começo ao fim não deixa de coçar a cabeça e se perguntar na última página: como é mesmo? Mas, para efeito de cálculo aqui, vamos ficar com essa regra básica: cruzou o Pacífico para a esquerda, perdeu um dia – cruzou para a direita, viveu o mesmo dia duas vezes.
Assim, como fiz o primeiro itinerário três vezes – a última vez, esta semana –, deixei de contar três dias no meu calendário (o mais recente deles: 23 de novembro de 2014). Em compensação, em 2008, quando viajava pelo mundo atrás de Patrimônios da Humanidade da Unesco, tive a grata surpresa de viver dois Dias da Criança (12 de outubro): um em Ulaan Bataar (Mongólia) e o outro em Vancouver (Canadá) – já imaginou que legal seria se eu fosse ciranda, poder ganhar dois presentes? (Preciso acrescentar que não ganhei nenhum?).
Para "recuperar" os outros dois dias que "perdi" eu deveria ter de cruzar o Pacífico no sentido leste mais duas vezes – o que não deve acontecer tão cedo. (Para explicar um pouco melhor – ou confundir ainda mais –, eu já cruzei a linha do tempo uma quinta vez, a caminho da Austrália e do Timor Leste, mas voltei pelo mesmo caminho, o que anulou o "efeito linha do tempo"). Onde foram parar então essas 48 horas "sequestradas"? Parece bobagem – afinal, a não ser que esses dias que eu perdi tivessem sido os do meu aniversário, que marcariam a passagem de um ano (imagine uma pessoa que nasceu num ano bissexto, bem no dia 29 de fevereiro, e que só conta "oficialmente" seu aniversário a cada quarto anos – uma situação paralela), um dia a mais ou um dia a menos na nossa vida não significa grande coisa. Ou significa?
Tudo tem a ver com o quanto você gosta de viver essa vida... E eu gosto muito da minha.
Desde que "perdi" meu último dia – o tal 23 de novembro de 2014 – tenho pensando bastante nisso, ao longo desta viagem que eu posso classificar como "intensa". É um privilégio enorme – e um sonho de milhares de pessoas – poder dar uma volta ao mundo. Imagine então a alegria que me inunda de lembrar que eu estou fazendo isso pela quarta vez! Este texto de hoje serve, em parte, para agradecer o que está acontecendo comigo agora.
Já fui bem direto na questão numa foto recente que postei no meu Instagram. (Aliás, aproveitando a brecha, devo informar você, caro leitor, cara leitora, de que finalmente resolvi abrir um Instagram oficial, para registrar está viagem e também pedir desculpa às milhares de pessoas que têm me seguido em "fakes" no Instagram. Não tenho controle sobre a perversão dessas pobres almas solitárias da internet que se passam por pessoas públicas para dar algum colorido à vida delas, aproveitando da ingenuidade das pessoas que, mais e mais, se confundem com o que é ou não "verdadeiro" neste nosso mundo virtual. Sei também que o tempo que levei para abrir um Instagram "meu mesmo" colaborou para que toda essa gente fosse enganada. Mas agora talvez as coisas fiquem mais claras com esse @zecacamargomundo – vou ter o maior prazer de receber você por lá! Em tempo: sigo sem Facebook e sem Twitter – ou seja, se você estiver me seguindo por lá, bem como por qualquer outra conta de Instagram que não seja @zecacamargomundo alguém está te enganado).
Enfim, quando coloquei os pés na Tailândia de novo, estava – totalmente por coincidência – usando uma camiseta que tinha a palavra "thankful" (agradecido, em inglês) estampada. Não pode deixar de registar minha alegria – e minha sintonia com a situação – e fotografei esse momento. Colocá–lo no Instagram foi uma ideia posterior – como sou "novato", ainda não tenho o "reflexo imediato" de colocar algo imediatamente na rede social. Mas veio bem a calhar para expressar a felicidade que está me atravessando agora.
Estou feliz de estar viajando de novo – quem não estaria? Mais ainda, estou feliz por esta viagem ter permitido que eu conhecesse meu centésimo país – a Coreia do Sul (#100paises – olha como estou ficando "esperto"!). Além, claro, estou em êxtase de poder visitar mais uma vez lugares que amo – como a própria Tailândia, de onde escrever hoje para você. Não apenas tenho o privilégio de passar por tudo isso, mas também, pela natureza do meu trabalho de jornalista, tenho a satisfação de poder mostrar tudo isso para muitas outras pessoas – multiplicando e ampliando as descobertas que faço em cada parada.
E faço isso de várias maneiras. Nas reportagens para o "Vídeo Show" – que começaram a ser exibidas esta semana. Na coluna sobre viagens que tenho no jornal "Folha de S.Paulo". No meu "novinho" Instagram. E neste humilde blog, onde você que me acompanha há um bom tempo já se acostumou a ver os registros das minhas viagens. Sempre da maneira mais generosa possível.
Quando escrevo sobre viagens, nunca é para simplesmente mostrar um lugar que eu fui – e você, que me lê ou me assiste, não. Até porque trabalho com isso, sou muito crítico com relação a um tipo de reportagem de turismo que "exclui" o leitor ou o telespectador – no que eu chamo de "jornalismo de cartão postal". Ir a um lugar diferente apenas para exibi–lo como uma coisa "exótica" – e meu leitores mais antigos sabem bem o quanto eu detesto este adjetivo – não faz o menor sentido. Uma boa reportagem sobre uma viagem tem a obrigação de ir além, de mostrar não apenas o que o olho é capaz de ver, mas o que sua cabeça pode assimilar e seu coração, sentir. E é assim que eu pretendo seguir viajando.
Se tudo der certo, vou passar por outros lugares incríveis – Mumbai (Índia), Istambul (Turquia), Tel Aviv (Israel), Copenhagen (Dinamarca). E vou sempre com esse espírito, mesmo por cidades que já conheço, entregando–me aberto, como se tudo fosse desconhecido de novo. Aqui em Banhcoc mesmo, onde já estive algumas vezes, só a sensação de sair pela Sathorn Road, respirar aquele bafo quente do inverno tailandês, virar numa rua de contornos improváveis, sentir aromas que seu nariz nem sabia que conhecia, ver o balé da ponta dos dedos de quem passa por você na calçada, sentir que você é dono da rua numa cidade do outro lado do mundo – tudo isso é o puro prazer de viajar.
Ter chegado à marca dos cem países visitados é sem dúvida uma conquista. Mas aí tem o país de número 101, o de número 102, 103... Certos desejos, certos impulso, não se aquietam só com um número redondo. Não me canso de dizer que este é um mundo maravilhoso – e não apenas pela sua natureza exuberante e diversa, ou pelas coisas incríveis que o ser humano construiu para interagir com ela (ou às vezes fugir dela). O mais legal desse mundo é justamente as pessoas que estão circulando por ele – que fazem ele ir em frente, que escrevem a história, nossa história, que deixam a marca da nossa presença aqui na Terra.
E é isso que eu cruzo, quando eu cruzo a linha do tempo: essa possibilidade infinita de me encantar de novo. Deixar o mundo me cruzar. E, com um pouco de sorte, levar você comigo nessa jornada.
O refrão nosso de cada dia: "La fiesta no es para feos", Peret – para dar o crédito certo, descobri essa preciosidade numa compilação de "rumba cigana" que achei por acaso – um dos álbuns que certamente você vai encontrar na já tradicional lista de "álbuns do ano que você não ouviu", a ser publicada em breve aqui neste espaço. Mas para ouvir a música, fui buscar um outro link. O caminho, na verdade, não importa, mas sim o fim: um porteiro (ou seria um segurança) comunica a quem estiver na porta para entrar na esperança de uma noite divertida que "a festa não é para feios". Não é exatamente isso que você está pensando: o recado não é para quem não foi agraciado com beleza física, mas para quem "não se faz bonito", não se veste bem, com uma roupa adequada para brilhar. Como se a letra já não fosse motivo suficiente para você ouvir a faixa umas 200 vezes seguidas, o ritmo – sim, uma "rumba cigana" dos anos 60! – é sensacional. Quero ver você não dançar – feio ou bonito...
*Foto: Arquivo pessoal/ Zeca Camargo