sense8 - netflix - blog legendado

"Matrix". Tudo começou ali, no filme - que tenho certeza de que você já viu, apesar de nossa cultura pop já ter rodado pelo menos uma geração (ou talvez um geração e meia) desde a sua estreia em 1999. Se você só conferiu este marco do cinema moderno na TV (ou na tela de um computador ou num tablet), perdeu um dos grandes espetáculos da grande tela do finalzinho do século passado. Eu diria até do começo deste século...
 
Numa curiosa ironia, porém, o próprio título do filme parecer ter batizado o estilo da própria dupla de irmãos, Andy e Lana (que naquele tempo ainda atendia pelo nome de Larry - já falamos mais sobre isso daqui a pouco): uma visão quase sempre apocalíptica do mundo, não sem uma adorável (e quase sempre complicadíssima) "teoria da conspiração" por trás de toda história. Essa acabou sendo a "matriz" deles...
 
O que era genial em "Matrix" - o filme original - tornou-se mirabolante nos filmes que se seguiram: "Matrix reloaded" e "Matrix revolutions". As tramas, embora em última análise coerentes, iam se complicando num nível que beirava o incompreensível. Não incompreensível nível "Vingadores: era de Ultron", mas mesmo assim, os trabalhos que vieram depois do primeiro pareciam privilegiar mais a própria "conspiração" do que a "explicação", numa espiral de "mistérios" que pareciam não apenas insolúveis, mas... messiânicos. E esse era o problema.
 
Veja bem, nunca deixei de acompanhar o que eles faziam - e eventualmente até de gostar (se bem que nunca tanto quanto o primeiro "Matrix"...). Tive sim um choque com "V de vingança" (2005) - de tão pretensioso e mal resolvido que me saiu o roteiro final. Fui talvez dos poucos que tenha me divertido (pelo menos um bocadinho) com "Speed Racer" (2008). Como grande fã do livro em que o filme foi inspirado ("Cloud atlas", de David Mitchell, que segue misteriosamente inédito no Brasil), fui ver "A viagem" com uma enorme expectativa - e saí ligeiramente decepcionado.
 
Dou esse pequeno histórico para dizer que fui então de mente e braços abertos conferir "Sense8" recentemente. Este é, claro, o último projeto da dupla - uma produção exclusiva da Netflix, que há pouco ficou disponível para "streaming" no canal de assinaturas. De cara, antes mesmo de me importar com o nome dos Wachowski nos créditos, me entusiasmei com o fato de a série ter seu pivô (pelo menos no início da história) em torno de Daryl Hannah!
 
Os mais jovens certamente não registram esse nome - sequer se lembram de que ela foi a musa de incontáveis "Sessões da tarde". Se eu escrever "Splash: uma sereia em minha vida" - ajuda? Pois então... Sou fã mesmo da atriz  - a ponto de achar que uma de suas melhores aparições na tela foi num ponta (que nem está creditada) num dos melhores filmes de Woody Allen, "Crimes e pecados", onde ela participa de uma cena junto com um diretor de cinema que está procurando alguém tipo Daryl Hannah para fazer um filme (e no final ele olha para ela e decide que ela não é "tipo Daryl Hannah" o suficiente para o papel...).
Por isso tudo, me proponho a ver qualquer coisa com a atriz - e quando, já lendo as primeiras críticas, soube que ela, no episódio inicial de "Sense8", "dava à luz" a oito, hum, "criaturas" em todo o mundo, achei que ia gostar. Mesmo sabendo que a série vinha com a "marca" do Wachowski: uma conspiração mundial - no caso, seres humanos "evoluídos", com superpoderes mentais, que têm de lutar contra uma espécie de "polícia supra-humana" que não quer que eles se espalhem pela Terra.

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Lendo assim parece que o argumento de "Sense8" é bastante tolo. E é mesmo. Nessa breve definição, toda a série dá a impressão de não ter uma história para contar muito diferente do que todos esses filmes de super-heróis que estão cada vez mais genéricos (e presentes) nas nossas salas de cinema (nesta temporada de férias então, fale aqui para mim, você tem conseguido ver alguma coisa "decente"? - eu até estou com uma pequena vontade de ver "Homem Formiga", mas... eu divago...). Mas ela é mais que isso. E ao mesmo tempo menos - como vou tentar explicar agora.
 
As "crias" de Daryl Hannah (que na série chama-se, hum, Angel) foram escolhidas aleatoriamente em várias partes do globo - a saber: Chicago, São Francisco, Londres (que reveza com Reykjavík, na Islândia), Berlim, Mumbai, Nairóbi, Seoul e Cidade do México. Só isso já dá um colorido bem interessante em todas as histórias - sem falar numa oportunidade única de imagens para a sequência de abertura (com os créditos) que é talvez a mais bonita que já vi na TV nos últimos tempos (apesar de o tema musical ter emprestado um pouco demais da trilha de outra série de própria Netflix, "House of cards").
 
O elenco é quase todo bom, com destaques para Tina Desai (a exuberante atriz indiana que faz Kala), Tuppence Middleton (no papel da islandesa Riley), Miguel Ángel Silvestre (que vive um ator mexicano canastrão), e Jamie Clayton, a atriz transexual que faz o papel da lésbica Nomi (e eu hesitei muito em contar aqui esse detalhe, porque eu mesmo levei uns quatro ou cinco episódios para entender o que estava acontecendo, mas parece que a maioria das coisas que se escreve sobre a série já revela isso logo de cara) - esse personagem, aliás, mesmo a escalação da atriz, é uma "piscadela" para a história da própria Lana Wachowski, que, como já lembramos acima, começou sua carreira como, Larry.
 
Os outros atores principais são adequados, mas não chegam a brilhar: Doona Bae é a sul-coreana durona Sun Bak; Max Rielmelt faz o estereotipado alemão Wolfgang; Brian J. Smith é um policial americano bem convencional, Will Gorski; e Ami Ameen é o "sofrido" queniano Chapeus. Apesar de essas performances serem bem aquém do brilhante, elas acabam funcionando na engrenagem da trama. E tudo seria uma maravilha, não fosse...
 
Bem, deixe-me reforçar aqui mais algumas coisas positivas. O cenário "apocalíptico" é quase um clichê - mas no contexto geral, ele é bem resgatado. A conexão dos oito personagens principais é bem bolada: um aparece na vida do outro, mostrando um talento seu que pode ajudar o companheiro ou companheira justo na hora que ele/ela mais precisa. Mas isso só acontece lá pelo quinto capítulo, quando as histórias das pessoas já estão bem desenvolvidas - e elas são ótimas. (Atenção "brigada do spoiler": avance com cautela pelos próximos dois parágrafos!).
 
Minha favorita talvez é a da indiana, que tem um casamento marcado com um magnata da indústria farmacêutica, mas, além de não ser muito apaixonada por ele, descobre que seu futuro sogro quer derrubar um templo de Ganesha - exatamente o que ela vai rezar todos os dias... Nomi, que fugiu de sua família porque ela não aceitava sua troca de sexo (a mãe, sempre que aparece, insiste em chamá-la de Michael), e que é um gênio da informática, é um dos personagens mais bem construídos. O mistério por trás de Riley é tão bem guardado que só vem à tona no final desta primeira temporada (o que só a torna mais interessante). E o dilema da estrela do showbizz mexicano que é gay, ganha tons extras de humor com a ótima/péssima atuação de Miguel Ángel.
 
Mesmo os atores mais fracos têm boas histórias de vida. O queniano dirige uma van popular (batizada de Van Damme, e, homenagem ao seu ídolo) e vê-se obrigado a entrar no mundo do crime para comprar remédios para sua mãe, que tem Aids. Sun Bak, em sacrifício à memória da mãe, honra a palavra de proteger a família - e até vai para a cadeia por conta disso! O policial americano tem uma dívida no passado com o pai. E mesmo a trama de Wolfgang - que envolve uma vingança de família e roubo de diamantes - não é de todo ruim...
 
O que une todas essas histórias - e aí que entra o tal "problema dos Wachowski" - é uma "conspiração maior". Alguém - o malévolo Mr. Whispers (em português, "Sr. Sussuros", interpretado por Terrence Mann) - quer acabar com os "filhos" de Daryl Hannah, e eles têm que se unir para combater o inimigo. É então que as coisas começam a ficar complicadas...
 
No roteiro, começam a acontecer coincidências demais - mas isso não chega a ser um obstáculo grave. Qualquer pessoa que goste minimamente de fantasia pode acatar esses exageros. Meu problema é com os diálogos - que do meio para o final dessa primeira temporada começam a ficar incomodamente pretensiosos. É como se os criadores se "Sense8" se sentissem na obrigação de colocar alta filosofia - e grandes preocupações existências - na boca de personagens que, pelo menos até terem "renascidos" com a ajuda de Angel, não passavam de pessoas ordinárias. E, pior, com atores que não tem muito gabarito para isso.
 
A ideia é até interessante - e funcionou muito bem, repito, em "Matrix". Mas em "Sense8", esses diálogos não soam mais do que banalidades, deslocadas em momentos de ação (quando o roteiro pede rapidez, alguém para falar uma platitude), desnecessárias em sequências de conversa (quando acabam atravancando o desenvolvimento da história). Entendo que o tom tem a ver com a curva geral da história de "Sense8". Mas essas coisas não podiam ser ditas de uma maneira um pouco menos "empolada"?
 
Faço essa reclamação porque, de maneira geral, adorei a série. Mas toda vez que um personagem vinha com uma fala na linha "o mal não pode vencer a beleza dos corações de uma nova espécie que está surgindo entre os seres humanos" (esta não é uma frase que tirei literalmente da série, mas ela dá o tom do que estou sugerindo), minha vontade era de não ir até o décimo-segundo episódio - que fecha esta temporada de estreia.
 
Felizmente eu não desisti! No balanço geral, senti-me recompensado de ver "Sense8" - e mais feliz ainda de imaginar que a gente vive uma era onde é possível um canal de "streaming" apostar num projeto tão ousado. Acabei até me envolvendo mesmo com as histórias pessoais que menos me atraiam - como a de Sun Bak. E, no final - que é muito bem resolvido, não só como conclusão da temporada, mas como gancho para a gente querer assistir à próxima - eu saí satisfeito.
 
Apesar do meu problema com os Wachowski...