A morte de Spock, a ascensão de Chacrinha e o fim do tempos
Não há morte que chegue em hora boa – que dirá em hora certa. Mas a despedida de Leonard Nimoy deste mundo (quem garante que ele não sobrevive em outra galáxia?) teve, no mínimo, um timing interessante. Nimoy, como qualquer terráqueo com uma queda básica por viagens espaciais – ou séries surreais de TV – sabe, interpretou o inesquecível Dr. Spock de "Jornada nas estrelas", aquela viagem por onde nenhum homem jamais ousou ir antes (ou algo assim). Entre tantas qualidades que Spock tinha, ele era acima de tudo um "vulcano mestiço", que, apesar do seu sangue misturado, primava por agir como todas as pessoas do seu planeta: movido pela razão. Spock, como você pode imaginar, se sentiria um pouco deslocado num mundo como o de hoje, em que a razão parece ter definitivamente nos abandonado.
Talvez você não tenha se dado conta que Nimoy/Spock tenha morrido – afinal, esse triste acontecimento teve a infelicidade de chegar num dia onde o mundo descobria algo muito mais importante: um vestido que muda de cor. O próprio Spock talvez encarasse essa loucura de informação que estamos vivendo com a naturalidade de sempre: "Humanos", desabafaria. Mas nem o ser mais racional é capaz de explicar o que está acontecendo...
Como você talvez tenha acompanhado no meu Instagram (este sim assinado por mim: @zecacamargomundo), estive viajando por uns 4 meses longe do Brasil. Tentava me manter relativamente informado sobre o que acontecia no país, mas as notícias que garimpava ora me faziam sentir feliz de estar longe, ora me recordavam daquele velho bordão de Jô Soares e seu personagem que era um exilado político indeciso sobre se devia ou não abraçar a nossa então "abertura política": "Não querem que eu volte", dizia ao saber de cada barbaridade que lhe contavam sobre sua terra natal.
Vou poupar você com exemplos – resumindo, apenas no mais recente, o absurdo que virou a nossa cultura e nosso caráter: sabe a história do médico que entregou a paciente que foi pedir ajuda a ele por conta de um aborto mal sucedido? Pois é... Mas hoje não escrevo sobre esse caso especificamente. Aliás, não escrevo sobre caso nenhum especificamente.
Não quero me alongar. Estou voltando aos poucos para este espaço e estou tentando ser mais conciso (ahahahhahahahaah). Se citei essa aberração é apenas para reforçar que nosso vulcano mais querido – e eu sei diálogos daquele primeiro "Jornada nas estrelas" de cor até hoje – nos deixou no exato momento em que a lógica, a razão, o bom senso – enfim, nossa capacidade de exercitar o cérebro com um mínimo de sabedoria – parece nos abandonar de vez.
Passei o fim de semana todo pensando nisso, até que ontem à noite fui convidado para ver a última apresentação no Rio de "Chacrinha, o musical". O espetáculo encerrava uma temporada de enorme sucesso, consagrando não só Stepan Nercessian como o Velho Guerreiro – um caso não só de excelente interpretação, mas de "reencarnação"! – como Leo Bahia, fazendo o "jovem Abelardo". (Vai para São Paulo agora e tomara que viaje por todo o Brasil!). Muita gente já tinha me recomendado o musical, mas só tive tempo de ver agora – e novamente acho que o timing foi perfeito: justamente quando eu ruminava sobre o cotidiano de maluco que estamos vivendo, eu vejo num palco uma lição de sanidade de um animador relativamente são que era chamado de louco...
Sim, ele que apresentava "o programa que acaba quando termina"!
O sucesso da montagem também diz muito sobre esses nossos dias. Afinal, Chacrinha era um oásis de insanidade com a qual nossa TV hoje só pode sonhar. Talvez as pessoas estão precisando um pouco mais disso. A explosão criativa – e de brasilidade – do Velho Guerreiro faz sombra não só aos comportados formatos de hoje (entre os quais alguns que eu mesmo participei e participo) como aos supostos transgressores e transgressoras que confundem liberdade com ignorância.
Ao longo das quase três horas de musical, peguei-me não apenas cantando todas – todas! – as músicas que desfilavam pelo palco daquele Cassino, como sentindo uma enorme saudade de alguém que de fato provocava não só nosso decoro como nossa cultura. Se hoje os programas sobrevivem com um cardápio de artistas de pagode comportados, derramando seus versos que não cabem em frases musicais, cantando sobre tudo menos o que está acontecendo à nossa volta (e não vamos nem falar de outros gêneros musicais), "Chacrinha" nos lembra que houve um tempo onde um certo Odair José pedia para a mulher parar de tomar a pílula e um certo Ultraje a Rigor nos lembrava de nossa característica maior como brasileiros – de que "a gente somos inútil"! Para todo o Brasil...
Alô! Atenção!
Tinha Magal, Pedro de Lara também e outros personagens que, como salienta muito bem o texto (assinado por Pedro Bial e Rodrigo Nogueira), nós mentíamos que conhecíamos porque víamos "sem querer" quando passávamos em frente à TV que a empregada assistia. Baixos e altos – ou altos e baixos – de um programa realmente anárquico. Mas que tinha vida. Aliás, vida na loucura. Uma loucura que já não cabe mais hoje, onde a realidade supera qualquer ficção que a TV queira botar no ar.
O fim dos tempos? Como otimista inveterado, prefiro sempre achar que estamos nos preparando para algo melhor. Mas para isso precisamos que esses dois ícones da cultura pop ressuscitem de alguma forma, reencarnem em algumas pessoas – e tragam de volta a razão e a loucura andando juntas e em harmonia. Longa vida Spock, longa vida Chacrinha!
O refrão nosso de cada dia: "La charrette", Florent Marchet – no meu passeio pelo Instagram, passo agora por Paris, e portanto vem de lá a inspiração para a indicação de hoje. Um bom clima, aliás, para começar a semana...
Fotos: Leonard Nimoy como Dr. Spock (Divulgação); cena original de Abelardo Barbosa no programa da Globo 'Cassino do Chacrinha' (Site Memória Globo / Divulgação)