'Heal the pain'
“I went back home, got a brand new face, for the boys on MTV”. Eu era um deles – um dos caras da MTV. O ano era 1991, George Michael estava no palco do Maracanã naquela segunda (e não menos histórica) edição do Rock in Rio. E eu cantava aquela música tão forte que era como se fizesse parte do “backing vocal” – o coral que sempre acompanham grandes artistas em grandes shows. E esse era um grande show, de um grande artista – uma memória estupenda da passagem pelo Brasil da estrela maior que perdemos ontem, em pleno Natal.
Vou poupar você do triste balanço musical de 2016 – outros obituários certamente já terão feito isso. Bowie, Prince, Cohen, George Michael – uma lista dolorosa (e que é ainda maior do que essa), um testamento musical de um ano que foi terrível de mais de uma maneira... Mas enfim, deixe-me concentrar no ídolo que se despediu ontem – ao que tudo indica, pelas notícias que foram liberadas, morreu de maneira tranquila, em sua casa em Londres, a cidade onde eu tive o privilégio de entrevistar George Michael uma vez.
Como já contei aqui mesmo neste espaço, foi encontro no outono (londrino) de 1998. George, que depois do sucesso estratosférico no final dos anos 80 da sua carreira solo (que já vinha de outro sucesso estratosférico com o Wham! ao longo daquela década) e início dos 90, desapareceu da mídia – muito em função do “escândalo” de ter sido preso num banheiro público em Los Angeles. A entrevista, concedida a apenas três televisões no mundo – Reino Unido, Japão e Brasil –, seria uma espécie de retorno do cantor.
A essa altura ele já estava preparado para discutir abertamente sua homossexualidade – e o Brasil certamente foi escolhido para ser um dos países com os quais George Michael queria falar em consideração a seu companheiro brasileiro, com quem ele viveu um forte romance, que terminou em 1993 quando ele morreu por complicações relacionadas à Aids. Mas sobretudo ele queria falar de música, da vida sobre os holofotes, de família e de amor. E eu, claro, mal podia acreditar que estava finalmente diante de um ídolo.
Enquanto esperava por ele, inevitavelmente me lembrei da minha primeira tentativa de entrevistá-lo – justamente em 1991, quando era então um dos “garotos da MTV”. Nada havia sido marcado. George Michael era sim um dos maiores artistas do planeta e nem a MTV americana – que muito nos ajudou naquele festival (foi por conta dela que conseguimos falar com vários superstars da época, como Axl Rose, por exemplo) – estava conseguindo falar com ele.
Lá fui eu então, naquela manhã, fazer uma tímida tentativa na piscina do hotel Copacabana Palace. Visivelmente tímido, tentei me aproximar de George Michael – que tomava seu sol ali na pérgola – com uma modesta camiseta da nossa MTV para presenteá-lo e quem sabe assim convencê-lo de falar com a gente. Preciso dizer que não cheguei nem a dez metros de distância dele? Dois – talvez três – seguranças vieram em minha direção e me interceptaram sem cerimônia, dizendo que “Mr. Michael” não gostaria de ser incomodado, mas que eles certamente fariam com que aquela camiseta – hoje, um clássico a ser resgatado: branca com a bandeira do Brasil inserida no logo da MTV – chegaria até as mãos do cantor. Até parece...
Sete anos passariam até que finalmente eu pudesse encontrá-lo – e ter o prazer de conhecer de perto a mente fascinante que criou tantos sucesso. Eu não era mais um “garoto da MTV”, claro, mas “o cara do ‘Fantástico’ ” – um dos programas mais populares da TV no Brasil, o país do grande amor de sua vida.
Num hotel que era um dos mais caros e bonitos de Londres na época (The Hempel), tínhamos uma suíte enorme toda montada para o “circo” da mídia. Câmeras, luzes, diretores, assessores de imprensa – todo aquela parafernália com a qual eu me acostumei ao longo de tantos anos cobrindo show businesses. O tamanho de todo o aparato, porém, contrastou drasticamente com a simplicidade do cantor – a ponto de deixar este experimentado repórter que vos escreve ligeiramente desarmado.
Seu romance com o brasileiro foi um dos primeiros assuntos – como se ele quisesse falar logo sobre isso, mostrar o quanto sentia saudades de seu companheiro, quanto era grato pela família dele que o acolheu, o quanto toda essa história significou para ele. Assim, ele poderia abrir caminho para que a conversa se concentrasse sobre o que realmente o interessava: a música e o bizarro mundo da celebridade.
Esta entrevista está em algum lugar dos arquivos do “Fant” – e espero um dia poder revê-la aqui na internet (minhas buscas para encontrá-la até o momento em que escrevo isso foram em vão). Mas sentei-me hoje cedo para escrever este texto – quem nem é exatamente um obituário – não para lembrar de tudo que falamos “verbatim”, ou seja, palavra por palavra. O que quero que fique registrado é o fascínio de ter estado perto de um artista que... bom, desculpe o clichê, daqueles que parece que não surgem mais hoje em dia: daqueles capazes de jorrar músicas originais e brilhantes, imediatamente reconhecíveis em qualquer lugar do mundo, com um dom de produzir letra e canção que se alojam de maneira “indeletável” da sua memória. Quantos artistas que apareceram no século 20 são capazes disso – não apenas de cantar sucessos, mas de compor cada um deles, com a precisão de um joalheiro?
Sim, Lady Gaga – é a resposta óbvia. Mais de uma vez citei essa artista maior (em vários textos) como a verdadeira sucessora de astros como Elton John e George Michael. Outros intérpretes brilhantes – de Beyoncé a Justin Timberlake – explodem em sucessos, mas que são, muitas vezes, esforços coletivos, um subproduto do fragmentado universo pop que habitamos hoje (o que não diminui nem um pouco o valor desses “hits”, mas são, você há de reconhecer, uma outra espécie de composição).
Mas com essa despedida de George Michael – e, sim, de Bowie, de Prince, de Cohen – a gente fica sem mais um artista daqueles verdadeiramente originais. Que estava tranquilo com sua trajetória – nem parecia que estava a fim de estender sua carreira muito além daquele período áureo. Naquela entrevista de 98, ele me disse que talvez só tivesse mais um ou dois álbuns originais para oferecer – antes que encerrasse sua carreira, numa modéstia rara de se ver no show business... Ao mesmo tempo, parece que ele estava trabalhando em cima de algum material inédito para ser lançado em 2017... Quem sabe?
Fato é que, com um conjunto da obra como a de George Michael, nada praticamente precisa ser acrescentado. O “garoto da MTV” sabe quase todas de cor – como milhões de pessoas no mundo todo (você inclusive). E de tantos versos e coros sensacionais que ele então deixou, eu resgato este da música que dá título ao post de hoje, pra encerrar não sem uma nota de tristeza essa homenagem:
“Do something for me
Listen to my simple story
And maybe we'll have something to show”
Sim, está no primeiro verso de “Heal the pain” – uma das minhas músicas favoritas de George Michael. Que, tenho certeza, não vai sair da minha cabeça pelas próximas horas, num passeio gelado que vou dar pelas ruas da cidade fria que estou agora – longe do Brasil, mas perto de uma comunidade muito maior que a gente geralmente se refere apenas como “pop”, mas que hoje, sei lá por qual motivo, eu quero chamar de “música dos anjos”…