E a música do Carnaval de 2016 é…
Melhor começar tentando descrevê-la, para ver se você reconhece. Tem um toque de Soul II Soul, mas muito também de Lulu Santos. Na contramão da onda atual de divas (supremas!), quem canta é um cara - eu arriscaria um baixo, na classificação da sua voz. Na batida e na levada, bebe da fonte de D2 - nas letras, de Marcelo Camelo (com escala em Emicida). Eu acrescentaria uma pitada de Simonal na malícia e um toque do maestro Érlon Chaves e sua banda Veneno no tempero. A música conecta com a intimidade instantânea de um dos sucessos de Ivete e a discrição preciosa de Adriana Calcanhoto. E sobretudo tem uma letra de Caetano com flow do Racionais.
Sim, com essa ultima pista, você já adivinhou: falo de “Ela só quer paz”, de Projota - a música que escolhi pro meu Carnaval e... provavelmente a música pop mais perfeita que nossa riquíssima MPB conseguiu oferecer neste século 21 que ainda engatinha.
Já penso nessa questão há algum tempo. Enquanto o pop mundial nos oferece pequenas obras-primas - como “Happy”, “Crazy” e “Get Lucky”, para citar apenas alguns - nós aqui, apesar da inegável bagagem musical que temos, somos obrigados a nos contentar com canções de refrões que são meras junções de sílabas que nem sempre fazem sentido - e quando fazem, mal conseguem caber nas frases musicais (quase sempre resultando em hilários - e ao mesmo tempo tristes - prejuízos à métrica, além do esquecimento total de um princípio gramatical tão simples quanto uma sílaba tônica…).
Já tem uns dois ou três anos que me senti mais especificamente provocado a procurar por uma música pop nacional que pudesse trazer para cá a tocha da criatividade, originalidade e identificação popular que sucessos como os que citei acima. E, nessa busca, não faltaram bons candidatos ao título.
Gaby Amarantos, por exemplo - cuja inigualável “Xirley” eu cheguei um dia a comparar com “Camisa listrada” (e paguei um preço caro por isso) - foi uma das minhas primeiras opções. Gaby tem o dom de fazer do regional, universal - e com humor. Suas músicas são de uma inteligência sutil (pensa que é fácil rimar “ex-my love” com “um e noventa e nove”?) e de um colorido exuberante - que muito nos falta numa parada musical quase sempre ocre. Por mim seu lugar já está garantido no panteão do pop brasileiro do século 20. Mas será dela a música “mais perfeita do século” que eu venho procurando? Vejamos as outras possibilidades.
Sempre tenho vontade de chorar quando ouço “Mais ninguém”, da Banda do Mar. Não é uma música de separação ou de amor ferido - aquilo que em inglês eles chamam de “torch song”. Pelo contrário: é uma canção de celebração, do amor, do prazer de estar junto, de estar com a vida e o coração resolvidos. As lágrimas chegam porque eu queria entender de onde vem a capacidade, num ser humano, de compor algo tão perfeito assim. A rigor a música não tem um refrão - talvez tenha dois, mas eu prefiro acreditar que ela é um refrão do começo ao fim. Ah, sim, com um grande interlúdio instrumental - que não poderia ser menos adequado para uma canção pop, mas que acaba sendo a coisa mais fantástica que poderia ter acontecido para unir as duas partes da música. E ainda tem o clipe - certamente uns dos 10 melhores deste mesmo século (mas eu me alongaria demais falando dele aqui, e o Carnaval tá chamando!). Infelizmente a Banda do Mar não teve a sorte de florescer numa época em que suas altas qualidades sejam inteiramente apreciadas pelo grande público, que hoje prefere repetir aqueles descarrilamentos de sílabas duras como se fossem realmente canções - e por isso, apesar de eles estarem no mesmo panteão de Gaby, seu sucesso foi (injustamente) moderado, e o grande título de melhor música pop nacional do século 21 segue vago.
Então chegou Ludmilla. Imagino que você esteja pensando que eu deveria pagar meus respeitos a Anitta, antes de sequer eu balbuciar o nome de Lud - mas calma lá! Concordo que Anitta chegou - já tem bem uns 3 anos (passa rápido né?) - sacudindo bastante as bases do nosso pop. Era funk? Era “dance”? Era o quê? Era Anitta inventando alguma coisa - e ela é boa nisso! (Tão boa que seu último sucesso, “Essa mina é louca” - a ótima parceira com Jhama - é uma reinvenção muito esperta de pagode… mas eu divago…). Suas músicas são sucessos estrondosos - e me ajoelho diante de seu talento para fazer todo mundo cantar, dançar, e se apaixonar por ela - e por seus refrões. Mas será que algum de seus “hits” poderia ser a melhor música pop nacional do século 21?
Sem entrar em rixas - não sou disso, já que admiro as duas na mesma proporção -, Ludmilla e sua “Hoje” teriam mais chances de levar o título. Não só pela sua incrível pegada (basta ouvir uma vez, e nem precisa ser inteira, para você entender perfeitamente a música), mas também pelas peripécias sonoras, brincando com a escala musical como se fosse uma boa ária de ópera - pense no trecho que começa com “E faz assim…”, só que interpretado por uma contralto lírica! A letra - se não das mais originais - pega elementos ultra populares e faz malabarismos. E acima de tudo, claro, tem a voz de Lud. Depois de ter ouvido “Hoje” inúmeras vezes no rádio - sempre aos retalhos -, finalmente tive o prazer de escutá-la por inteiro na gravação do especial de fim de ano de 2015 de Roberto Carlos. Como você talvez tenha reparado, até o Rei pirou na voz de Lud - e por isso faço meus os elogios dele: essa canta!
Estava então bem tentado a dar o título para Lud - cheguei a ensaiar escrever sobre isso aqui. Mas então, na última terça-feira, estava ouvindo a Metropolitana FM, em SP - uma das programações mais ecléticas (e por isso mesmo mais pops) das nossas ondas sonoras - quando tocou “Ela só quer paz”. Estava indo gravar uma reportagem - uma matéria simples, que me tomou menos de uma hora. Quando voltei para o carro, no primeiro sinal que parei, lá estava ela de novo - “Ela só quer paz”. E foi então que prestei atenção na letra daquela música que já tinha roubado minha atenção pela manhã.
Para minha agradável surpresa, o que eu estava ouvindo era pura poesia. E não era barata - pelo contrário. Havia, em cada verso, uma disfarçada preocupação com a originalidade - que já se anunciava logo no primeiro canto: “Ela é um filme de ação, com vários finais”. Que espécie de gênio sai com uma abertura dessas? (Aos maldosos de plantão, não há um pingo de ironia na minha frase anterior - nem em nenhum outro momento que eu eventualmente usar a palavra “gênio” no texto de hoje). E ainda: que gênio era esse que cantava com a boca cheia - e um sotaque que não tem vergonha de ser paulistano (muito paulistano!) - uma frase como “Ela é o 'barco' mais bolado que aportou no seu cais”?
Cada verso de “Ela só quer paz” pode ser celebrado por si só, mas quando você percebe a cadência deles, a maneira como Projota (gênio!) costura um no outro, fica ainda mais encantado com sua habilidade como letrista. Olhe o verso a seguir - da segunda parte da música (que, é bom lembrar, leva menos de três minutos pra te conquistar):
“Ela vai te enlouquecer pra ver do que é capaz
Vai fazer você sentir inveja de outros casais
E você vai ver que as outras eram todas iguais
Vai querer comprar um sítio lá em Minas Gerais”
Talvez você nunca tenha se dado conta, mas já sentiu “inveja de outros casais” - e provavelmente já pensou até em comprar um sítio em Minas Gerais”. Só que coube a Projota colocar essas duas coisas juntas, num efeito que é transcendental. E aí temos o tal do refrão…
Ainda não consegui ouvir ele cantar “Ela é um disco do Nirvana de 20 anos atrás” sem me emocionar - pois é, eu choro mesmo com essas coisas. Mas como um soco que vem para definir o vencedor no ringue, enquanto você recebe essa pela direita, Projota vem pela esquerda com: “Não quer cinco minutos no seu banco de trás, só quer um jeans rasgado e uns quarenta reais, ela é uma letra do Caetano com flow do Racionais”!
UMA LETRA DE CAETANO COM FLOW DO RACIONAIS!
Conheço um punhado de compositores - de várias gerações e tendências musicais - que dariam um braço pra ter composto isso! Projota faz isso parecer fácil - não é! - e prazeroso - o que é - que chega a ser um alívio saber que temos, enfim uma pequena obra prima para alegrar nossos ouvidos e corações neste Carnaval. E levar o tal do título que eu estou ensaindo dar a um tempão!
Para não parecer um desavisado, sei bem que sua carreira não começou “ontem”. Projota já esboça seu caminho na boa música paulistana desde 2010 - ou talvez até antes, mas foi a partir daí que ele começou a passar no meu radar. Nesses tempos onde todo mundo celebra o sucesso imediato, talvez ele tenha demorado um pouco demais para entregar seu trabalho maior (espero que ele faça coisas tão boas quanto “Ela só quer paz”, porque se fizer melhor, vou ter que reescrever tudo isso que fiz hoje eheh!). Mas agora ficou pronto.
Chama-se “Ela só quer paz” a melhor música do pop nacional deste século. E ela é do Projota. E já é a música do Carnaval de 2016 - e dos próximos anos. E é a música da minha vida - neste momento. E olha que nem estou apaixonado…
Vá brincar seu Carnaval - e entenda os sinais...