Chico Buarque canta em cena do documentário 'Chico: Artista brasileiro'
A certa altura do documentário "Chico: Artista brasileiro", o diretor Miguel Faria Jr nos oferece uma preciosidade - entre tantas de um trabalho "arqueológico" notável: Chico Buarque cantado no palco do programa do Chacrinha. Só mais uma cena curiosa daquele verdadeiro caldeirão de misturas que o apresentador acostumou o Brasil a assistir - você pode pensar. O "Velho Guerreiro" está vestido - se captei bem a fantasia - de tirolês. As chacretes, como sempre, se esforçando para achar alguma sincronia nos seus passos. Do alto do cenário, caem serpentinas evocando um clima duvidoso de Carnaval (não consegui apurar de quando exatamente é essa imagem, mas no palco de Chacrinha, Carnaval era uma festa permanente, claro). Até aí, "tudo bem" - apenas mais uma atração do programa mais anárquico que a TV brasileira já conheceu. Mas aí você reconhece a canção que Chico está cantando e vem então o estranhamento.
 
A música que ouvimos explodindo de alegria para todo o Brasil é "Vai passar" - um hino não-oficial das "Diretas Já", o primeiro movimento de atitude política que minha geração conheceu - e o ponto de partida para o país que temos hoje (para bem ou para o mal). Como diz o próprio Chico no documentário, "Vai passar" é talvez sua última grande composição política - uma celebração de uma nação que começava a mudar, depois de anos de repressão (ideológica e cultural) e de ditadura militar.
 
Minha reação ao ver aquilo não foi de choque, mas de lamento. Ter um artista de peso como Chico Buarque cantando uma espécie de manifesto em meio a caóticas bailarinas é uma imagem impensável na TV de hoje. Não só duvido que algum programa de televisão hoje em dia tivesse coragem de lançar uma mensagem tão engajada aos seus "sensíveis" telespectadores, mas também não acredito que nosso próprio cenário musical atual (falo do pop, claro), com refrões que são pouco mais que sílabas fáceis para quem não quer pensar cantar, tivesse a competência de oferecer uma atração dessa qualidade.
 
Na transmissão resgatada pelo documentário, Cacrinha dança alheio à poesia forte e insinuante de Chico, enquanto um assistente de palco limpa o chão para o apresentador não tropeçar na quantidade de papel que chove. A dança das bailarinas - mais uma vez, desencontrada - raramente traduz, ou (menos ainda) se encaixa naqueles versos. Mas a mensagem está lá: "A nossa pátria-mãe tão distraída / sem perceber que era subtraída / em tenebrosas transações"... Corta para as atrações recentes que vemos em programas de auditório... Preciso ser mais claro?
 
Enquanto começava a pensar a escrever este texto, com o filme rolando, num trecho da sua entrevistas, quando ele fala da qualidade da música que se faz (e se ouve) hoje no Brasil - há um momento delicioso, uma das várias gargalhadas que Chico solta nos seus depoimentos, em que ele fala sobre o que seu neto, Chico Freitas, filho de Helena Buarque de Holanda e Carlinhos Brown, apresenta como sons e artistas que ele deve conhecer -, enfim, enquanto o filme estava acontecendo na tela e eu viajando nas suas ideias provocadoras, o próprio Chico Buarque veio desmontar meu raciocínio.
 
Eu havia sido tomado por mais uma calafrio de desânimo, certo de que jamais veríamos momentos como aquele de Chico no Chacrinha, quando então o cantor e compositor fala sobre como nosso país mudou - e mudou para melhor. Não sei reproduzir seu texto fielmente aqui, mas o que ele quis dizer é que um movimento como a Bossa Nova, hoje, seria impossível de ter a repercussão e a e a influência que teve nos anos 50. Por que? Ora, porque era algo que surgiu num tempo em que aquela elite que criou o gênero e se apaixonou pela música, era a mesma que dominava o discurso cultural. Se bem me lembro, Chico diz algo como: "Seria muito bonito se o Brasil fosse tão bonito com aquelas músicas cantam, mas..." (se destoo da frase original não é por distorção voluntária, mas por culpa da minha péssima memória).
 
Quem domina o discurso cultural hoje, claro, não são mais artistas com talento suficiente não só para criar um verdadeiro movimento musical, mas também reinventar a própria música. O que ouvimos atualmente, os maiores sucessos das rádios, do YouTube, Vevo - e mesmo dos programas de televisão - são meros pastiches de gêneros estrangeiros, eventualmente com um ou outro "sabor" nacional, mas tão pasteurizado que é quase um ingrediente de fantasia. Para usar a analogia de Chico, é um Brasil talvez menos belo - mas é o que está mandando. E é melhor você se contentar com isso.
 
Felizmente, tem gente que não se contenta. Ao largo desse gosto massificado, sigo procurando - e para minha grata surpresa, encontrando - artistas que seguem caminhos próprios, que fazem música que, se não revolucionária, é de uma qualidade absurda e... que nos enche de esperança. O Brasil, como (novamente) Chico diz no documentário, está melhor. É um pais mais justo, mais transparente, com mais oportunidades - sobretudo mais oportunidades de expressão. Não é, lamentavelmente, o melhor momento para se ouvir essa exuberante sinfonia de ritmos e sons que produzimos com criatividade e talento únicos no mundo. A palavra de ordem, tirada ao que parece da própria essência dos algoritmos que hoje conduzem nossa vida (e nossas vontades), é "goste só daquilo que você goste" - ou do que os outros gostam. "Não explore, não se aventure, repita as mesmas coisas"... Por isso mesmo, é um prazer descobrir artistas - e olhe que, como tenho rodado o país, tenho descoberto muitos deles recentemente - que estão a fim de fazer diferente. E quem sabe um dia serem tão populares como Chico já foi.
 
Para esses talentos - e para as pessoas que, como eu você, têm os ouvidos abertos para o novo -, "Chico - Artista brasileiro" é um filme inspirador e imperdível. Funciona bem, mas não é um documentário excepcional - é até bem convencional, daqueles que misturam trechos de entrevistas com clipes de música. Nessa categoria, todos os arquivos são sensacionais. Desde um raro registro em que Chico, em pleno palco, esquece a letra de uma de suas músicas, até uma perdida gravação de estúdio, com Bethânia cantando "Olhos nos olhos" - com Chico apenas olhando ali ao seu lado, enquanto a cantora dá uma nova dimensão a uma de suas composições mais bonitas. Os surrados clipes dos festivais de música estão ali também, com um ótimo tratamento de som - e pelo menos uma cena que eu nunca tinha visto: quando Chico chama sua mãe (que tinha horror de ver seus filhos no show business) ao palco para dar um "oi".
 
Mas há também clipes exclusivos, feitos especialmente para o filme, com uma escolha bem eclética de reportório e de intérpretes. A cantora portuguesa Carminho tem a honra de ganhar duas canções - se bem que uma é em parceira com Milton Nascimento. E por falar em colaborações, o dueto de Mart'nália com Adriana Calcanhoto (cantando "Biscate") é um presente inesperado. E a melhor descoberta desses convidados - pelo menos para mim, que não conhecia seu trabalho - foi Moyseis Marques, que - ouso arriscar - faz a melhor interpretação que já ouvi de "Mambembe".
 
Outros depoimentos são ilustrativos - algum momento da irmã Miúcha, a intimidade de Edu Lobo, e certamente a história que Bethânia conta, de quando foi conhecer Mãe Menininha pela primeira vez e cantou para ela, sim, "Olhos nos olhos" -, mas no final, o "dono da festa" é o próprio Chico. Meu momento favorito não vem da entrevista "sentada", bem iluminada, perfeitamente enquadrada, que é a costura principal do filme, mas de uma "história roubada", que quase não fica registrada - não fosse pela insistência do próprio Chico de chamar a câmera e se abrir num sorriso a narrando.
 
Tem a ver com a sua procura pelo "irmão alemão" - ao mesmo tempo personagem da vida real e do livro mais recente de Chico. Em Berlim, à procura dessa história que seus pais sempre esconderam a vida inteira, ele descobre finalmente que seu irmão não está mais vivo, mas acha uma consolação feliz para esse desfecho triste através da - o que mais? - música. Lembrando que seu primeiro sucesso no Brasil foi também um sucesso internacional - "A banda" (imagine "Gangnam style" só que como uma canção de verdade... bem, eu divago, eu sei) -, gravada no mundo todos e em várias línguas, ele pergunta às pessoas se existiu uma versão em alemão, e se ela foi popular. Com ambas as respostas afirmativas - e ciente de que seu irmão flertou com a vida artística e a carreira de cantor (há um impagável clipe de época com ele no filme) -, Chico chega à conclusão de que um dia, muito provavelmente, seu irmão teria cantado "A banda" em Berlim - e sorri pensando que a música, afinal de contas, teria os unido.
 
Nessa hora, Chico solta mais uma de suas gargalhadas - daquelas que seus amigos conhecem bem, e que o divertem tanto que muitas vezes afoga seu próprio fôlego e nem permite que ele termine de contar a história que começou. Ele chega a ficar vermelho de euforia - e a gente poderia até achar que ele se perderia para sempre nesse momento de alegria, não fosse o próprio Chico ter nos lembrado, minutos antes, que "entusiasmo é feito pra passar"...
 
Como passa o samba que um dia ele cantou no Chacrinha. Passam as modas musicais. Passam a arrogância e a prepotência de quem acha que sabe tudo. Passam o lixo que as pessoas de poder insistem em nos entregar no lugar do bem que poderiam fazer. Passam as mágoas e os amores. Passam os insultos e as ofensas. Passa tudo. E passa bem.