A artista
Assim que acabei de assistir ao documentário "What happened, Miss Simone?", disponível já há alguns dias na Netflix, quis saber exatamente sua duração: 101 minutos. Fiz uma conta rápida, e cheguei à conclusão de que devo ter chorado mais ou menos - descontando os créditos (se bem que a música que toca no final também fez balançar o meu queixo) e um ou outro momento em que o choque do que você está vendo supera a emoção da história - uns 94, 95 minutos enquanto via o filme.
Chorei menos da segunda vez - que foi logo em seguida à primeira. Já era tarde da noite, e eu consegui me controlar em boa parte do documentário. Mesmo assim, em um ou outro trecho, as lágrimas vieram. Por exemplo:
- todo o número de abertura, num de seus retornos ao Festival de Montreaux, onde ela mistura amargura, convicção, arrependimento, e êxtase musical
- uma de suas primeiras entrevistas no filme, quando ela tenta explicar quando ela já se sentiu livre
- quando Nina fala da música "To be young, gifted and black" (e a performance que ilustra esse depoimento)
- a preciosa versão de "I got life", resgatada pela diretora Liz Garbus
- no depoimento de Attallah Shabazz, a filha mais velha de Malcolm X, explicando como via uma artista da grandeza de Nina Simone, muito à frente do seu tempo - algo como a nobreza andando sobre a lama
- numa entrevista numa lanchonete quando Nina fala sobre sua vontade de resgatar a autoestima de pessoas como ela, que a vida inteira foram discriminadas
- no "sacode" que foi a ousadia de lançar uma música chamada "Mississippi goddam" (que as legendas da Netflix traduziram assanhadamente por "puta que o pariu")
- na quase humilhante performance sua no "surreal" programa da TV americana "Playboy's Penthouse"
- na primeira versão de "My baby just cares for me", mas sobretudo na versão final, novamente em Montreaux, onde uma Nina Simone "derrubada", mas longe de estar derrotada", pega aquele piano e transforma ele e a música que está sendo executada numa coisa do outro mundo!
Aliás, quero começar por este final. Depois de quase duas horas praticamente só ouvindo Nina Simone falar, cantar e tocar, você imagina que já está um pouco acostumado a sua genialidade. Mas aí ela entra, senta em rente ao piano Bösendorfer - a única coisa que realmente vale a pena, como ela sugere, naquele momento - e te convence novamente de existiram (ou existem) poucos artistas como ela, capazes de pegar uma música que já é sensacional e transcender com ela para outro patamar.
Do momento em que suas mãos dedilham as primeiras notas - se bem que usar o verbo "dedilhar" aqui é um eufemismo brabo, uma ver que cada um de seus dedos cai naquelas teclas como um martelo de Thor! - você sente que não vai ouvir uma versão qualquer da música. Nina parece possuída - mais do que o normal. E o som que sai daquele piano só pode ser descrito com uma analogia líquida: é uma torrente de notas, de cadências, de pausas e continuidades, um turbilhão de melodias musicais, precisamente montadas umas sobre as outras, desconsiderando a polida (e já perfeita) canção original - como se ela soltasse um "goddam" a cada verso.
Mesmo depois de ter visto o documentários duas vezes seguidas, ainda fui à internet procurar um registro dessa performance inteira e ouvi a performance mais umas cinco vezes. Porque é genial. E porque não tem mais ninguém fazendo uma coisa assim - ou melhor, se tem, a possibilidade de ele ou ela se tornar um artista cujo trabalho seja ouvido por um público maior, nos dias de hoje, é praticamente zero.
Ah, lá vem o cara de cinquenta e não sei quantos anos (52, para ser exato!) reclamar que não se faz mais música como antigamente... Bom... Um pouco é isso mesmo. Mas se você achar que só pessoas com a minha idade e, hum, com meu gosto musical - que é notoriamente elástico - podem apreciar o documentário sobre Nina Simone, bem... tem certeza de que você ainda está me lendo?
Este não é mais um texto, entre tantos que já escrevi aqui, para celebrar a diversidade musical que temos - no Brasil e no mundo. O que quero é te convencer a assistir a "What happened, Miss Simone?" para que você me ajude a argumentar que o que passa por música hoje em dia, especialmente música pop, apesar de ser feita com grande qualidade, está longe dos propósitos, da missão de uma Nina Simone.
Ela não é o único exemplo. Tiro fácil uma lista rápida de artistas que já fizeram - e muito ainda fazem - algo de revolucionário com seu poder pop. Dylan, Stones, Lennon, Chico Buarque, Madonna, Sex Pistols, Caetano Veloso, Tim Maia, Bono, Raul Seixas, Cassia Eller, Lobão, Public Enemy, Racionais MC, Ney Matogrosso, Kurt Cobain... tantos. Talvez eu esteja ainda sob o embalo do documentário, mas Nina tem ainda uma loucura a mais - não nas causas que resolveu defender - mas no seu impressionante conhecimento musical, que a coloca um pouquinho mais à frente desse time que já não é fraco.
Como vemos no trabalho de Liz Garbus - um excelente garimpo de performances e entrevistas raras -, Nina nunca deixou de flertar com a tristeza. Trechos de seus diários, que são mostrados no filme, mostram uma artista (e uma mulher) em um questionamento constante - quando não beirando a autodestruição. A sensação de "outsider", da pessoa que "não pertence", vinha desde a sua infância, quando fazia aulas de piano com uma senhora "branca", cercada de "pessoas brancas" - um ambiente que a pequena Nina nunca havia experimentado - na intenção de se tornar a primeira pianista clássica negra a tocar no Carnegie Hall! (Um sonho que nunca se realizou por completo, como ela é duramente obrigada a reconhecer no próprio documentário).
Esse registro de menina segue com ela mesmo quando ela vai ficando adulta e cada vez mais conhecida - a já citada aparição no programa da "Playboy" é um exemplo disso, uma vez que ela, por ser a artista em destaque, é a única negra em todo o cenário. Mergulhada em trabalho - por obra de seu marido Andrew Stroud, ela ganhou o mundo com uma agenda lotada de shows - ela foi paradoxalmente se sentindo mais isolada, até que os movimentos civis do final dos anos 60 nos Estados Unidos conquistaram sua atenção e seu talento. E quando ela começou a canalizar sua raiva para sua música, a mistura a certa altura começou a ficar ameaçadora demais para sua carreira.
No início dos anos 70, Nina Simone literalmente enlouqueceu. Mudou-se para a Libéria, na África - para ficar conectadas com suas raízes e, por conta de uma bipolaridade (que só seria diagnosticada anos depois) afastou-se de todos, até de sua única filha. O retorno foi penoso - com momentos tipo "fundo do poço", como a deprimente imagem de uma Nina Simone tentando ser moderna na época da "disco" (meu estômago revira só de lembrar...). Mas quando ela volta...
Quando Nina lembra da artista que é, quando ela percebe novamente que a música é a sua salvação, ela volta a ser a estrela maior que despontou lá atrás. E a partir de então retorna em apresentações pelo mundo, andando com as próprias pernas - e sendo a mesma Nina Simone enfezada e brilhante de sempre. Eu tive a chance de ver uma de suas passagens pelo Brasil - ah, o privilégio da idade ehehe - e me lembro da imponência com que sua simples presença no palco, mesmo antes de encostar no piano, deixou uma plateia inteira em silêncio...
Em outro momento precioso do documentário, depois de ter começado a tocar uma música, Nina Simone para tudo, olha para um ponto no auditório e ordena: "A senhora aí, sente-se". Poucos ensaiam um riso, e, mesmo sem a câmera sair do rosto da cantora, você tem a certeza de que a "senhora" a obedeceu. Porque talento é assim, manda!
E artista é feito disso. De arte e de respeito, de coragem e de ousadia. E não dessa bajulação tola que a gente vê por aí, onde todo mundo parece estar cantando a mesma música, numa fórmula que fala, talvez, ao coração, mas nem se dirige à mente. O que é válido também - todo mundo gosta, e eu também, de se juntar a um coral maior e gritar um refrão que nos faça chorar. Mas que tal, só para variar, entoar uma canção que nos faz também pensar?
Logo no início de "What happened, Miss Simone?", o escritor Stanley Crouch comenta algo sobre Nina Simone, sobre como ela tinha uma voz que você ouvia uma vez, e em seguida ouvia de novo algumas semanas depois e dizia: "Ah! Essa era aquela de outro dia"... Quantos artistas assim podemos apontar hoje?
Me ajude nessa conta! Mas antes assista ao documentário. E depois a gente conversa...