Não foi fácil. Em vários momentos pensei em desistir. Parte da dor e da delícia de ser um comunicador - de ser ouvido (e sobretudo lido neste espaço por você) - é perceber que aquilo que você fala (ou escreve) tem um impacto na vida das pessoas. Como os profissionais que admiro, trabalho com essa motivação. Mas em 2015, falar sobre cultura pop, em vários momentos, tornou-se um desafio quase impossível.

Algumas vezes me senti realmente isolado, como se tudo que eu presenciava de interessante - as coisas que lia, via, ouvia - acontecessem numa bolha, longe de qualquer possibilidade de apreciação de um público maior. Anestesiadas pelos algoritmos da internet, acreditei que as pessoas finalmente tinham me dado a prova final de um argumento dos mais interessantes que tive este ano com um dos melhores escritores brasileiros (que, por acaso, é também meu amigo): o de que as redes sociais não permitem que você descubra nada de novo. Ou seja, de que elas são feitas para te apresentar mais do que você já gosta - se você é fã de determinados artistas, você só vai encontrar pessoas que também veneram esses artistas; se você faz parte de um culto, a tendência é que você curta mais pessoas que também fazem parte dele; e se, por algum desvio do bom senso, você abraça alguma ideia estúpida, provavelmente na internet você vai encontrar multidões que constroem todo um pensamento em função dessa mesma ideia estúpida.

Reforçando essa lógica lúgubre, li este ano um texto de Umberto Eco - que apesar de ser de 2011 me pareceu bastante atual. Não sei citá-lo aqui fielmente mas o sentido do que ele disse em uma entrevista - Eco, há tempos, nos alerta sobre os perigos da burrice nas redes sociais - é que a internet é um desserviço ao ignorante. Para justificar uma ideia que parece óbvia, ele nos lembra que a televisão - que é, claro, um veículo de comunicação de massa - também não é muito boa para disseminar cultura, mas pelo menos é um filtro. Não o filtro ideal, mas um filtro. Ao passo que na internet, não existe filtro nenhum: você é um imbecil, e as coisas sobre as quais você constrói sua vida são totalmente imbecis? Ora, você não está sozinho: está a apenas alguns cliques de encontrar outros imbecis como você… E logo vocês são uma comunidade!

Neste sentido que digo que 2015 foi assustador - e que eles (o “eles” do título acima, claro, se refere ao imbecis) quase ganharam definitivamente seu espaço. Qualquer um que faça um balanço cultural do ano - se é que alguém se arrisca a isso (você tem menos de 48 horas para tentar fazer um…) - vai ver diante de si um deserto. Ainda não consigo entender porque, ao contrário do que vemos no mundo todo, aqui no Brasil nenhum veículo cultural de respeito (nem mesmo este nobre espaço onde escrevo) ousou fazer uma lista na linha “melhores do ano”. Quando muito, para ganhar o maior número de cliques possíveis, a gente vê uma relação de “maiores erros da TV”, num previsível potencial de acessos na junção das palavras “erros” e “TV”, ou variações sobre elas - como diria Bela Gil, você pode substituir “erros” por “gafes” e “TV” por “celebridades”.

Mas onde estão as listas das melhores músicas brasileiras de 2015? (Não estou contando, claro, as premiações midiáticas cujas escolhas são distorcidas pela busca de audiência numa bizarra inversão de valores). Quem fez um lista com os melhores filmes brasileiros? Os melhores autores? As melhores exposições visuais? Os melhores eventos de arte pública? As melhores fotos clicadas por brasileiros? Os álbuns do ano, assinados por nossos artistas? Ou, ainda que seja para abrir uma concessão ao que se produz na internet, os melhores esquetes de humor nacional no YouTube?

Como disse antes, se você olhar sob este ponto de vista, o que temos é um deserto - como se nada do que foi feito este ano merecesse entrar numa lista de “best of”. E é justamente este silêncio que nos fez achar que eles, os que gostam sempre das mesmas coisas, os que não querem nada de novo, os que morrem de medo de olhar para fora de seu quintal - eles que ganharam o jogo. Só que não.

O barulho da turba é grande, mas, se você prestar atenção, mais de um artista - nacional e internacional - nos deram motivo, em 2015 mesmo, de acreditar que tem gente ainda com vontade de fazer diferente. O mundo - e sobretudo o Brasil - tem criadores corajosos que ainda têm fôlego de nos provocar, de nos tirar da mesmice, de dizer com um sorriso disfarçado que a mediocridade não vai vencer.

Zeca Camargo

Comecei a perceber isso há algumas semanas, quando fui fazer uma visita a Belém (PA). Lá, tive a sorte de encontrar uma comunidade de artistas - e gente em geral - que estão pensando diferente. O mais forte deles, um artista de rua, cujo trabalho já havia visto na Bienal de São Paulo, mas que mostrou ser ainda mais impactante quando achado no meio da rua em Belém: Éder Oliveira. Os rostos fortes que ele pinta nos muros da cidade (ou nas paredes de transadas galerias e mostras) vêm de notícias populares - e saltam aos nossos olhos com sua verdade e transparência. É poderoso, e é bom - é original, e não passa nem perto daquela “arte” que as pessoas acham que estão fazendo quando enchem de cor um espaço que não foi criado por elas.

Éder me encheu de esperança. E fui em frente procurando outras evidências de que a ignorância e a mesmice não venceriam em 2015. Encontrei um aliado forte no livro de Julián Fuks, “A resistência” (Companhia das Letras) - um escritor que tem não só o amor pelas palavras, mas também pelas frases, pelos parágrafos, e pelas emoções que tudo isso ainda é capaz de despertar. Depois me lembrei que, na também recente temporada de cinema, me peguei, não sem surpresa, discutindo qual dos filmes brasileiros eu tinha gostado mais.

Zeca Camargo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A supresa, claro, não era pelo fato de que eu e as pessoas com quem gosto de discutir sobre cultura estávamos falando sobre filmes brasileiros, mas pelo fato de hoje em dia termos um punhado de títulos e diretores (e diretoras!) significativamente interessantes para que a gente possa fazer uma escala de quais nos provocaram mais numa determinada safra (por exemplo, a de 2015) - e ainda: “conjuntos de obras” consistente o suficiente para que a gente possa comparar trabalhos anteriores e atuais desses criadores. Fiz aqui mesmo, um apanhado de três filmes nacionais que me marcaram recentemente - e depois disso ainda vi outras tantas produções brasileiras que justificaram este meu entusiasmo. Sem falar que este ano pudemos conferir, finalmente, “Chatô, o rei do Brasil”, de Guilherme Fontes. Não adorei - taí um filme que dividiu as opiniões de pessoas que respeito -, mas um ano que finalmente trouxe este filme não pode ser de todo medíocre…

Na música… Bem, na música também temos boas notícias - não daquelas que enchem grandes espaços, mas das que preenchem seus ouvidos. De veteranas (Elza Soares) a novatos (Rico Dalasam), passando por nomes relativamente novos e já populares (Emicida), tivemos diversos motivos para ter a certeza de que nossa música popular não está indo para o poço. Como disse Chico Buarque no recente documentário sobre sua carreira - o “Brasil bonito” que a MPB dos tempos áureos nos ensinou a cantar em coro hoje dia dia não tem mais o mesmo espaço. O que cantam as multidões, como fica claro no sorriso disfarçado de Chico, é um outro Brasil (menos bonito?). Mas defendo que ainda tem gente cantando “aquele Brasil”, mais artistas até do que esses três que citei acima. E, eventualmente, as pessoas vão parar para ouvi-los.

O Brasil ainda está longe de redescobrir a fórmula mágica de juntar entretenimento popular com arte - algo que fizemos com maestria durante décadas até não muito tempo atrás. Filmes como “Mad Max - Estrada da fúria” ou “Divertida Mente” - que são produtos de cultura de massa e ao mesmo tempo uma festa para os olhos e para a inteligência - talvez estejam ainda distantes. Mas eu sei que temos artistas e criadores capazes de nos trazer isso - se não na telona, na telinha!

Eu sou um otimista - você que me conhece há tempos sabe bem. E cada suspiro de inteligência eu conto como um ponto a favor na batalha contra a “tímida ignorância” (citando a “Economist”), que puxa a gente para trás. E que em 2015 quase nos fez acreditar que ela tinha vencido… Então eu vou seguir neste espaço aqui em 2016 - algo que, num tempo de crise, eu cheguei mesmo a pensar em desistir.

Quando nada do que você faz parece repercutir positivamente, a primeira resposta é sempre “jogar a toalha”. Felizmente, acima do barulho dos menos favorecidos culturalmente, eu ouvi murmúrios de pessoas interessadas, como eu, em algo ligeiramente diferente. E por isso segui em frente. A recompensa? Ter você me acompanhando até aqui, com essa sua leitura fiel e inteligente - que pode até discordar de mim, mas não com um chilique reativo, mas sim com um argumento interessante, capaz de abrir uma discussão.

Como descobri neste ano - em que, finalmente, resolvi experimentar as águas das redes sociais, até mesmo o Facebook (https://www.facebook.com/ozecacamargo) - a própria internet é capaz de nos apresentar pessoas interessantes, a fim de trazer sua curiosidade (e não sua mesmice) para um debate maior, contribuir com sua vontade infinita de ver o diferente para que eu mesmo possa explorar coisas novas.

Zeca CamargoE pensando nisso tudo, quis fazer essa reflexão de fim de ano. Que foi inspirada também, diga-se, por dois filmes que vi aqui, na cidade onde ainda existem sessões de cinema pela manhã… Falo de Paris e de dois trabalhos ainda inéditos no Brasil - um deles, forte candidato ao Oscar, tem estreia prevista para 14 de janeiro, “A grande aposta”; o outro, nem tem previsão ainda de lançamento: “The Lobster”.

Os dois filmes não poderiam ser mais diferentes. O primeiro, uma ambiciosa comédia que tenta explicar a crise financeira americana de 2008 - e consegue jogar uma luz bem-humorada sobre esse ponto obscuro da história recente da humanidade como nenhum trabalho no cinema fez até agora. O outro, uma utopia de um mundo não tão distante, em que as pessoas não podem viver sozinhas - são obrigadas a se acasalar, sob pena de, no caso de um fracasso, serem transformadas em um animal de sua escolha (no caso, o protagonista brilhantemente vivido por Colin Farrell, caso falhe em achar um parceira, quer virar uma lagosta).

Cada filme desses, de tão original, merece um post em si - e quem sabe vão ganhar um, quando finalmente eles estrearem no Brasil. Mas hoje aqui, neste texto que mais uma vez eu comecei com a firme intenção de que não ficasse longo, eu vou apenas usá-los como muletas alvissareiras. Porque o que quero celebrar em 2016 são criações artísticas que não me tratem como um idiota. Esses já tem muita coisa para se divertir… Eu e (com certeza) você também, queremos mais. Queremos o desafio de sermos apresentados a algo que ainda não conhecemos. E poder renovar o prazer da descoberta do novo.

Que venha então 2016 - feliz ano (de fato) novo!