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  • 'Justiça' para todos

     Rose (Jéssica Ellen), Vicente (Jesuíta Barbosa), Fátima (Adriana Esteves) e Maurício (Cauã Reymond) em 'Justiça'
    Há quanto tempo você não assiste a uma coisa na TV e fica realmente interessado em saber o que vai acontecer com aquelas personagens? Abro este texto com esta pergunta porque, preparando-me para encarar mais uma fase de “Justiça” - que estreou na segunda-feira passada e já havia me conquistado antes de a semana terminar -, depois de ter passado o sábado e o domingo discutindo mais ou menos o mesmo assunto com as pessoas que encontrava, senti necessidade de celebrar esse momento hoje raro de comunhão entre a TV e o telespectador. Aliás, senti uma nostalgia de “Avenida Brasil” no ar… Mas vamos desenvolver melhor.

    Parece que todo mundo já entendeu que estamos sempre contando as mesmas histórias. “Não há nada de novo sob o sol”, reza o velho ditado - e isso vale mais ainda para o universo da ficção. Mas felizmente há sempre uma maneira de renovar aquilo que se conta. O melhor livro que li este ano - ainda sem tradução no Brasil - é “What belongs to you”, do americano Garth Greenwell. Tem coisa mais batida do que se apaixonar por alguém para quem você está pagando para fazer um programa? Pois Greenweel transporta essa relação surrada para um outro patamar - e ainda te leva junto para uma das reflexões mais profundas e lindas com a qual me deparei ultimamente da (também surrada) relação entre pais e filhos. Sua divagação sobre o que acontece com a capacidade de nos tocarmos é tão cativante que se começar a falar sobre ela agora, divagarei eu mesmo - e não quero repetir erros passados eheh.

    Ainda nos livros, foi com alegria que vi (finalmente) nas prateleiras brasileiras a tradução da obra máxima de David Mitchell, “Atlas de nuvens” (Companhia das Letras) - mais uma prova de que contar as mesmas histórias vale a pena se você inventar uma maneira nova de apresentá-las. No caso, a própria “fórmula” de Mitchell em “Atlas” é conhecida - aquela de “um livro dentro do outro” -, mas o contraste entre os estilos, a curiosa escolha de períodos da história para centrar suas seis narrativas, e mais o retorno a cada uma das “pontas soltas” da primeira metade do livro, não são nada menos que um brilhante convite à leitura. Você sente no seu corpo que precisa ir adiante porque o autor conseguiu criar em você a necessidade de retornar sempre a esses personagens.

    Que é exatamente o que nos leva então a “Justiça”. Depois de ver os quatro primeiros episódios - confissão: o terceiro e o quarto, não aguentei esperar para ver na TV aberta e assista a eles antes da exibição, no GloboPlay - eu fiquei totalmente obcecado pelo destino daqueles personagens. O que, repito, tem siso um acontecimento raro - mesmo no universo da TV.

    Justamente pela profusão de séries - que a abertura do cabo e do “streaming” trouxe nos últimos anos -, acabando nos “acostumando mal” a querer sempre histórias cada vez com mais qualidade - e nível sempre alto de atenção e envolvimento. “Aprendemos” o que é uma narrativa de qualidade, o que significa “desenvolvimento de personagens”, a importância de um bom gancho - e mais: repetindo… o poder de uma história bem contada. Evoluímos muito! Eu sou do tempo em que uma audiência desesperada só tinha uma pergunta na cabeça: “Quem matou Salomão Ayalah?’. Eheh! Hoje… sorte do telespectador que tiver só uma dúvida depois de acompanhar vários capítulos de uma novela - ou mesmo um punhado de episódios de uma série. É com isso que os bons autores estão preocupados agora: com essas várias conexões possíveis de serem feitas - e que, claro, funcionam sempre no nível pessoal.

    Para citar exemplos recentes de tramas que “não me pegaram”, só fui adiante de “Breaking bad” - que assisti com um certo sacrifício até o fim - por insistência de amigos, que sempre vinham com aquele velho conselho: “depois da segunda temporada melhora” (o mesmo que ouvi, por exemplo quando comecei a acompanhar, com relativo atraso, “Game of thrones”). De certa maneira desta vez 0 arquétipo do “homem derrotado que aposta tudo ou nada” - tão discutido recentemente em dramaturgia televisiva (especialmente a americana) e que funcionou tão bem pra mim em “Mad men” - não me encantou. Para um personagem tantas vezes chamado de “shakespeariano”, Walter White me pareceu bastante linear. Seu “parceiro” Jesse, apesara de mais interessante e mais bem interpretado, idem. Mas criticar “Breaking bad” - que tem ótimas qualidades, sobretudo de direção - é mexer em vespeiro… Vamos deixar por aqui, dizendo simplesmente que não me “hipnotizou”.

    O mesmo vale para outra série - esta, original da Netflix: “Jessica Jones”. Mesmo no universo dos estranhos heróis da Marvel (que geralmente eu gosto), a “menina misteriosa” não falou comigo. Depois do quarto episódio, desliguei a TV sem a menor preocupação do que iria acontecer com ela - e olha que foi bem aí que o “manipulador” da sua mente começou a ficar mais presente…

    Por outro lado, cruzei com séries no último ano que não foi preciso nem eu chegar ao fim do episódio para estar totalmente seduzido pelos seus personagens principais - e em alguns casos já até pelos secundários. Se você está pensando em “Mr. Robot”, acertou - a TV raras vezes conheceu alguém tão carismático quando Rami Malek no papel do hacker revolucionário. (Vale notar que a princípio poucas coisas me parecem menos interessantes do que uma série sobre um hacker - o que só torna o mérito de “Mr. Robot” ainda maior). E aí tem “The night of”.

    the night of - blog legendadoTalvez esta série - que é “das antigas”, ou seja, daquelas que a gente tem que esperar uma infindável semana para ver o capítulo seguinte… - ainda não tenha passado pelo seu radar pop. O que pode ser bom se você estiver com seus dias muito ocupados, uma vez que “The night of” é uma daquelas histórias que te consomem tanto a ponto de fazer você esquecer de caçar pokemóns!

    É mais uma história de crime hediondo onde o suspeito é um rapaz com cara de inocente sem antecedentes criminais, vítima de uma noite em que ele simplesmente ia pra uma festa. Só que não… Tudo - absolutamente tudo - dá errado naquela madrugada para Naz (Nasir - o ótimo Riz Ahmed). E para complicar tudo, especialmente numa Nova York pós 11 de setembro, sua família é paquistanesa (ele mesmo é nascido em solo americano). Quem se interessa pelo seu caso é o advogado de defesa Jack Stone (John Torturro no que o clichê da crítica adora chamar de “o papel da sua vida”, que, diga-se, na origem do projeto era pra ser de James Gandolfini) - um “coitado”, que quando consegue tirar alguém da porta da cadeia por 250 dólares tá no lucro.

    É desesperador assistir à trama se desenrolando, ou melhor, se complicando cada vez mais - e não vou dizer mais sobre “The night of” (que até o momento em que escrevo isso só tem sete episódios disponíveis na HBO do Brasil). Citei a série aqui não apenas por ser fã, mas porque ela é mais um argumento na minha linha de raciocínio do início deste post de hoje: quando você conta uma história - seja num livro, na TV, num podcast - a única coisa que realmente importa é… eu quero realmente saber o que vai acontecer com esses personagens?

    Voltemos para “Justiça”, que entra hoje na sua segunda semana. Eu quero saber quem é aquela menina que grita “papai” quando Vicente (Jesuíta Barbosa) sai da prisão por ter matado a filha de Elisa (Debora Bloch) num crime passional? Sim. Quero saber onde foram parar os filhos de Fátima (Adriana Esteves), que volta pra sua própria casa só que abandonada? Claro! Quero também saber que futuro terá a amizade de Rose (Jéssica Ellen) e Débora (Luisa Arraes) depois que a primeira foi presa com drogas numa festa na praia que estavam juntas - especialmente depois de perceber que o companheiro de Elisa, Marcelo (Igor Angelkorte), condena essa relação. Óbvio! E quero saber como Maurício (Cauã Reymond) pensa em se vingar de Antenor (Antonio Calloni), que atropelou sua mulher, que ficou tetraplégica no acidente e pediu para o próprio marido matá-la no hospital? Precisa perguntar?

    E veja que eu estou falando apenas dos personagens ditos principais. Também estou interessado na degradação do “sargento” Douglas (Enrique Diaz), que prendeu Rose e colocou droga na casa de Fátima pra incriminar a vizinha que matou seu cachorro. E no esquema criminoso cujo chefão parece ser Celso (Vladimir Brichta). E no destino do marido de Fátima - o motorista de ônibus Waldir (Ângelo Antonio). E não é possível que Vânia (Drica Moraes) não tenha um papel mais importante na vida de seu marido Antenor, que agora é um político em campanha…

    Eu mencionei que todas essas histórias estão interligadas? Que Fátima trabalha na casa de Elisa? Celso tinha um caso com Rose? Waldir era motorista de ônibus na empresa do pai de Vicente, que levou um golpe do seu sócio, Antenor? Que Maurício era advogado dos mesmos empresários? Eu fico só entusiasmado só imaginando as outras conexões que ainda vão aparecer…

    Vou segurar os elogios aqui - ou melhor, vou resumir numa só palavra o que cabe a cada um desse elenco, mas também à direção geral (José Luiz Villamarim, e toda sua equipe) e ao texto de Manuela Dias, que é a prova final que queria apresentar sobre a questão de contar a mesma história de maneiras diferentes para surpreender e encantar: são todos geniais.

    A primeira referência que me vem à cabeça é a suprema contista canadense (ganhadora de um Nobel), que nunca apresenta uma coisa só. Nos seus - por vezes curtíssimos - contos, Munro parece sempre ter escolhido uma narrativa linear. Mas de repente a personagem que já te seduziu tem um segredo, que te remete a um caso do passado, que devolve para uma figura secundária do presente - e que altera toda a nossa expectativa de desfecho.

    “Justiça” parece ter bebido nessa fonte saudável - uma cartilha de que fato ensina, acima de tudo, a respeitar o leitor; ou, no caso da série, o telespectador. E que talvez recorra a malabarismos - estéticos e narrativos (todos justificados) -, mas com um único (e honesto) objetivo: olharmos para nós mesmo e nos colocarmos na situação daquelas pessoas cujas histórias agora fazem parte da nossa própria vida.

    Todos merecem “Justiça” - ninguém mais que aquele telespectador que quase (eu disse “quase”) se acostumou a ser chamado de ingênuo e ouvir de produções quiçá preguiçosas de que: 1) ele sempre quer ouvir a mesma história (correto); 2) ele quer ouvir essa mesma história contada sempre do mesmo jeito (errado). Essa nova série está aí para demonstrar que essa é a verdade.

    E caso encerrado.

  • Elke Maramegavilha

    Em tempos de beicinho em selfie, que falta fará uma rainha que ria com a boca bem aberta - escancarada. E antes que se diga que Elke Maravilha - que o pop brasileiro perdeu nesta madrugada - era de outro tempo, que fique bem claro que ela era sim, mas não do passado e sim de algum lugar do futuro. De um lugar onde a caretice não é essa ousadia camuflada que a gente vê hoje, quando mera baixaria se confunde com humor e a ironia se confunde com o escracho.
     
    Quem só conheceu Elke nos últimos anos talvez a visse como uma "exótica" relíquia dos primórdios da TV. Entendo. Em tempos de memória comprimida como a nossa, tudo que tem mais de uma década - ou menos, metade desse período - parece que está num passado longínquo. Mas acredite: houve um tempo em que o sacode que Elke deu na televisão era o que havia de mais moderno...
     
    Claro que não é possível falar da trajetória de Elke na TV sem falar de Chacrinha - ou "Painho", com ela carinhosamente o chamava. O "velho guerreiro" já era conhecido como figura anárquica - desde os tempos de seus programas de rádio. E quando ele migrou para a televisão, um de seus maiores méritos foi trazer uma pluralidade - sobretudo visual - que mexia com os alicerces do que então se chamada de "boa TV". A fauna de personagens que Chacrinha desfilhou no seu "Cassino" (e também na sua "Buzina" e na sua "Discoteca") era notoriamente bizarra. Mas só com Elke ela ganhou o selo de "transgressora".
     
    A parceria tornou-se tão forte que era quase impossível não associar um ao outro - e é por isso que, no início de 2014, quando ela foi uma querida convidada do "Video Show " que eu apresentada, foi com muito orgulho que me vesti de Chacrinha para recebê-la! Mas Chacrinha nos deixou há quase 30 anos - e Elke então ficou com a missão de levar essa loucura adiante. Num mundo onde, repito, a noção de loucura está cada vez mais careta...
     
    Lembro-me até hoje de quando encontrei Elke pela primeira vez pessoalmente. Era meados dos anos 90, eu já trabalhava no "Fantástico" e estava pegando aquela Ponte Aérea básica para o plantão de fim-de-semana, quando tenho a grata surpresa de ver que ela estava sentada ao meu lado no avião. Na primeira fileira, claro, porque viajar montada como ela fazia, só permitia que ela se acomodasse naquele espaço da aeronave.
     
    Eu então já trabalhava em TV, mas nunca tinha tido um contato direto com ela. Mesmo assim, ela me recebeu como se fôssemos amigos de longa data - com tamanha intimidade que eu tive de disfarçar o quão sem jeito eu estava de encontrar um ídolo como ela. Lembro-me de ficar completamente hipnotizado pelo seu sorriso - e pela sua voz, que ai do tom de um sussurro ao guincho num tempo menos que separa a medalha de ouro da de prata numa prova olímpica de 100 metros rasos... E a viagem relativamente curta - por volta dos 45 minutos - foi uma das mais prazerosas que já fiz.
     
    Houve vários encontros assim. Era sempre fácil "localizá-la" num lugar público - especialmente num aeroporto, onde as pessoas geralmente são tão cinzas. Elke era sempre um farol de cores - e cabelos e bijuterias e adereços e maquiagem! Em viagens mais recentes, mais de uma vez ela se apoiou no meu braço para caminhar num passo lento que, quase claudicante, ignorava o altíssimo salto de sua bota e desafiava a gravidade como quem esquece casualmente que tinha quase 60 anos.
     
    Foi essa Elke sexagenária que me visitou no "Video Show" - mas, que fique registrado, com uma energia adolescente. De perto, ela era a mesma personalidade que o público conhecia. E não podia ser diferente: Elke já era "Elke" há tanto tempo, que tentar separá-las era um exercício fútil. No palco do programa, durante uma ora enlouquecida de gravação, Elke cantou até um pagode em russo - e deu provas de que falava todas as oito línguas que anunciava. Mas sobretudo dava pra sentir que ela estava feliz de estar diante das câmeras - afinal de contas, ela nasceu para isso. E mais: outra lembrança boa do programa era a atenção que deu a cada uma das pessoas da plateia que a procurou. Suas "crianças", como ela fazia questão de chamar todo mundo...
     
    Ela mesma, a maior criança de todas. Por que eu tenho a impressão que se alguma coisa a guiou até este final, foi esse espírito infantil - não no sentido literal, mas no lúdico. Hoje quem faz humor - e pensa que está transgredindo muita coisa - faz a caricatura não de si, mas dos outros. Elke brincava com todo mundo, mas a maior graça era sempre ela. Era impossível fazer a caricatura de uma pessoa quando ela mesma já se adianta e a faz melhor que todo mundo. Como escreveu bem o colunista Tony Goes, ela era a "drag queen de si mesma".
     
    Só me lembro de ter visto Elke Maravilha sem toda aquela máscara uma vez - e curiosamente num dos melhores papéis que ela fez como atriz: uma stripper em "Pixote", de Hector Babenco. Estranho como ela "de cara lavada" - ou quase isso (em se tratando de Elke, qualquer coisa que menos do que duas camadas de maquiagem já podia ser considerado um "look clean") - tinha uma força ainda maior. Talvez seja porque essa força não vinha da superfície - que sempre primava pelo exagero. Mas vinha de dentro, de uma vocação genuína para entreter
     
    Volto a pensar no contraste entre sua gargalhada gostosa - que para mim sempre foi sinônimo de diversão - e esses beicinhos tão estudados trafegando nas redes, todos tão indistintos. Dias estranhos esses em que todo mundo quer parecer tão igual...
     
    Longa vida à rainha suprema da diferença!

    Elke e Zeca Camargo

  • De volta para o futuro

    Elenco da MTV Brasil se reencontra para comemorar 25 anos do canal
    Quando o Police lançou seu álbum “Synchronicity”, em 1983, a MTV Brasil não estava sequer em gestação. A própria MTV americana ainda saía da infância, estava mais precisamente no seu segundo ano. Mas esse conceito precioso de sincronicidade que a banda de Sting me apresentou mais de 30 anos atrás caiu como uma luva hoje, quando acordei ainda da “ressaca boa” da festa de reencontro dos 25 anos da nossa MTV, que aconteceu ontem em São Paulo.

    Explicando rapidamente, sincronicidade “é quando”… Digamos que é a capacidade infinita e inexplicável do Universo de fazer com que coisas correlatas aconteçam ao mesmo tempo - as famosas “coincidências” que a gente observa no dia a dia, elevadas a uma potência muito maior. Pois foi exatamente disso que me lembrei quando zilhões de mensagens - nos meus e-mails, whatsapps e mesmo no Facebook (pois é, estou ensaiando para explicar aqui para você porque abracei a rede social - mas não vai ser hoje, desculpe) - me lembrando que hoje é o “Back to the future day”, o dia tão celebrado no filme cult “De volta para o futuro”.

    Não, este não será um post dedicado a este assunto - se você não é fã da saga de Michael J. Fox e Christopher Lloyd, lançada originalmente em 1985, não se preocupe, siga comigo (até porque, apesar de a minha fraca memória registrar que tenha gostado bastante do filme na época, e reconhecer seu valor no cânone da nossa cultura pop, nunca fui um grande entusiasta do movimento). Uso o título da produção - que é genial - e a data de hoje (que é quando nossos “heróis” do filme retornam para a história original) para celebrar outro aniversário: justamente o de 25 anos da MTV Brasil.

    De uma maneira que só a sincronicidade nos ajuda a entender, ao reunirmos boa parte das pessoas que fizeram a história do canal - não só VJs, mas todo o pessoal que trabalhou com tanta paixão nesse projeto - estávamos celebrando uma volta ao passado que é ao mesmo tempo um retorno ao futuro. Ou pelo menos ao que, naquela época achávamos que seria o futuro da TV.

    Hoje quando alguém me faz uma pergunta sobre o que vai ser da televisão nos próximos anos, eu nem arrisco uma resposta. Tudo está mudado tão rápido que qualquer previsão, tenho certeza, será risível daqui a um par de meses. Mas lá no início dos anos 90, uma molecada achou que estava sim desenhando esse futuro - se não o da maneira como nós assistimos à TV (que é o que o aspecto mutante mais acelerado desse objeto do nosso fascínio), pelo menos o futuro da maneira como ela era feita.

    O primeiro impacto dela, que é sempre mais fácil de citar, é o visual. Quando a TV convencional estava no auge da sua sofisticação, veio a MTV “sujar” tudo - para melhor. Se uso aspas, é para lembrar que essa sujeira era colorida, rabiscada, irreverente - e sobretudo jovem. Poderíamos falar horas sobre isso - especialmente sobre seus impactos positivos (mais de um programa no ar atualmente, em TV aberta, bebe nessa fonte de 25 anos atrás) - e até mesmo os negativos (a “sujeira” mal aproveitadas de tantos programas que apelam, substituindo falta de recursos não por criatividade, mas por soluções fáceis… e geralmente de mau gosto). Mas a “quebra de paradigma” que a MTV Brasil trouxe vai muito além disso.

    Eu sempre digo que as saudades maiores que eu tenho de trabalhar lá têm a ver com a possibilidade de errar. Entre tantos programas que fizemos, vários foram bem-sucedidos: viraram assunto, foram copiados na TV aberta (e mesmo no cabo), lançaram talentos. Mas muitos foram retumbantes fracassos - que nem o fã mais devoto, que acompanhou tudo que foi mostrado desde 20 de outubro de 1990 talvez queira se lembrar.

    A MTV Brasil sempre andou na corda bamba da baixa audiência. Mas para uma TV cujos números indicavam que “quase ninguém” estava vendo, até que ela fazia um razoável barulho - e espalhava uma respeitável influência. Quando mostrávamos um programa que não tinha sido muito legal (alguém aí se lembra de um chamado “Bibibo no bobobó”?), a gente logo tirava do ar. Mas quando uma coisa dava certo… aí a gente repetia até as pessoas começarem a prestar atenção! E o barulho só ia crescendo…

    Não tínhamos orçamento para nada - e por isso éramos obrigados a contar apenas com nossa criatividade. Nisso, e em tantas outras coisas, fizemos escola. Que prazer que foi encontrar as pessoas ontem e ver que todas estão num momento ainda mais inspirado nas suas vidas do que quando nos “separamos” - eu deixei a MTV Brasil em março de 1994, mas muita gente que estava lá ontem se desligou em outros momentos, seguindo carreiras ainda mais duradouras e brilhantes, dentro e fora dela.

    Não foram poucos os que faltaram à festa porque estavam envolvidos em outros projetos - filmes e séries de TV assinadas por diretores premiados, que começaram como nossos estagiários, alguns deles até fora do Brasil… Mas quem estava lá anunciava sem nenhuma falsa modéstia onde andava empregando seu talento - ou, em vários casos, seus talentos.

    Reencontrei gente que está até hoje na MTV e se orgulha de ter participado de todas as transmissões dela até hoje. Um ótimo editor de imagens que hoje trabalha num dos maiores sites de notícia do Brasil. Uma estagiária que hoje é assistente de direção na mesma TV em que trabalho. Um outro editor que hoje é dono, ao lado de sua mulher, de um serviço de “delivery” de comida orgânica. Uma figurinista que assina o visual de boa parte dos principais filmes brasileiros. Uma maquiadora que se tornou a “visagista” favorita de um dos cantores que mais arrastam multidões pelo Brasil. Outro estagiário que está prestes a lançar sua primeira série - sobre o Zé do Caixão (e mal podia esconder sua excitação). Uma produtora de elenco que hoje é a maior autoridade de música alternativa por aqui. Um câmera que montou sua produtora. Aliás, dois. Um outro que é câmera até hoje - e com orgulho. Uma produtora que largou a TV para ter três filhos - e viver para criá-los. Uma VJ que é uma das DJs mais requisitadas das noites paulistanas e cariocas - além de uma boa atriz. Outra VJ que virou uma das repórteres mais curiosas do circuito a cabo. Uma diretora comercial que teve o orgulho de ver seu filho - que era criança quando trabalhamos juntos - crescer para trabalhar na MTV quando já tinha seus 20 anos. Uma programadora musical que virou também uma “expert” em playlists. E um monte de gente que eu nem sei direito o que faz hoje em dia mas que, só pelo carinho dos abraços que trocamos, tenho certeza de que está mais do que realizado.

    Fomos sim privilegiados de poder trabalhar nesta MTV - e acho que isso deixou marcas em todos nós. Não havia ninguém que não respondesse ao reencontro com uma história engraçada para contar - mesmo que ela obedecesse a lógica napoleônica de que primeiro a história acontece como tragédia e depois volta como farsa… Sim, episódios “desastrosos” eram motivos de risada nesta noite de confraternização - quando aquele bando de gente “sem experiência” resolveu brincar de futuro da TV.

    Lamentamos a falta de um “esforço concentrado” como era a MTV naquela época, no início dos anos 90 - um espírito que, talvez com menor intensidade, perdurou nela até recentemente. Hoje tem muita gente boa fazendo coisas diferentes - sempre tem. Mas onde? Como um amigo meu comentou na festa, elas estão espalhadas pelo YouTube, torcendo para seu talento acender alguma centelha que o torne viral - e possa chamar atenção de mais gente. Acho válido - sempre é válido apostar no novo. Mas essa “pulverização” dos talentos, ao mesmo tempo que torna tudo mais democrático também dispersa nossa atenção. Vai sair gente boa disso tudo? Sempre sai. Mas o esforço para se destacar agora é muito, muito maior.

    O que vai ser dessa gente que tem tanta coisa pra mostrar - e um espaço infinito para a exposição? Nem arrisco um palpite. Assim como não quero fazer previsões sobre o futuro da TV. Todas elas - e sobretudo a TV aberta - estão passando por processos transformadores interessantes, em grades e em formatos. Há inúmeras produções atualmente que são atestados de ousadia - e que, por isso mesmo, enfrentam obstáculos, primeiro da crítica (que ironicamente segue olhando a TV como se fossem os anos 80), depois do público, que naturalmente rejeita o novo (ao mesmo tempo que cobra renovação).

    Mas esta que é a “dor e a delícia” de fazer TV: arriscar! Essa é, resumindo, a grande lição que aprendi na MTV - eu e todo mundo que estava naquela festa ontem. Ali, no dia 20 de outubro de 1990, compramos um bilhete para o futuro. Para o nosso futuro! E nos encontramos 25 anos depois com muita coisa para contar e para refletir. Ah! E com pelo menos uma coisa que não mudou nada: a vontade de fazer diferente.

    Foi com essa sensação que todo mundo que estava lá acordou hoje. Inspirado por isso, escrevi um agradecimento para um grande grupo de Whatsapp que se formou às vésperas da festa - e que não para de trocar fotos e ideias mesmo no momento em que escrevo isso. Pelas respostas que recebi, acho que estava certo quando disse que:

    “No fim, foi a festa que a gente queria que fosse. Foi uma festa de encontros, de muitos beijos e abraços - de ver e conversar. De maneira tão querida, que aconteceu uma coisa que jamais pensei que poderia acontecer numa festa da MTV: ninguém queria dançar. Claro que a banda salvou a honra da nossa pista. Mas mais que isso, o povo queria trocar, queria falar, lembrar, queria ter certeza de que o espírito da coisa ainda estava lá! Se não no ar, pelo menos dentro da gente. Foi uma festa nossa. Conseguimos ainda que fosse íntima, mesmo com centenas de pessoas juntas. A gente inventou, colocou tudo de pé, chamou, transmitiu, apresentou… Fizemos essa doideira em dez dias, juntamos o povo, deixamos todo mundo feliz. Sinal de que ‘the groove is STILL in the heart’. Tava tão boa nossa festa que eu acho até que vou pedir pra editarem uma matéria sobre ela para a próxima edição do Semana Rock”…

    Se você não tem pelo menos uns 35 anos, não faz ideia do que eu estou falando quando cito o “Semana Rock”. Mas não tem problema. Sei que no meio dessa suposta inércia que assola o nosso pop, tem gente (talvez você?) com vontade suficiente para fazer novas revoluções. Lembre-se: nenhuma delas é pequena demais ou não vale a pena.

    Vamos em frente com o mesmo espírito. Como diria George Michael em “Freedom 90” - a mesma música com os versos que descreviam que ele “foi pra casa e voltou com uma cara nova para os garotos da MTV”: “now I’m gonna get myself happy”…

  • Por que é tão difícil fazer rir?

    Uma rápida olhada nas programações da TV aberta - e sobretudo nas atrações dos canais a cabo - nos faz crer que estamos na "era de ouro" da comédia televisiva no Brasil, tamanha a oferta de novos programas e novos talentos do riso que os estrelam. Mas será que estamos rindo disso tudo?
     
    Estamos certamente precisando de mais humor nas nossas vidas - especialmente quando olhamos em volta e encontramos uma realidade que nos convida a chorar... Essa profusão de novos programas, que tenho conferido com regularidade, é bem-vinda - e tem um timing perfeito. A pergunta importante a ser feita, porém, é se essa farta seleção está indo de encontro às expectativas de quem precisa urgentemente de alívio para um cotidiano pesado...
     
    Nós brasileiros, que sempre nos orgulhamos de viver num país tão bem-humorado, que adora estampar um sorriso no rosto, muitas vezes temos dificuldades em traduzir isso na arte de fazer humor - especialmente na comunicação de massa. Não é tarefa simples. Uma piada que você conta na mesa de um bar, entre amigos, nem sempre funciona quando você fala com o grande público. Mesmo aquilo que é testado e aprovado em um palco - e nossos teatros andam animados com tantos artistas de "stand up" pipocando por todo o Brasil - nem sempre sobrevivem a transição para a televisão. Qual o segredo de fazer rir na telinha?
     
    As primeiras pessoas para quem eu faria essa pergunta são, claro, Marcelo Adnet e Marcius Mehlem - responsáveis pela maior revolução recente no humor televisivo, com seu "Tá no ar" (que mexeu positivamente até com o novo "Zorra", que leva também a assinatura de Mehlem). As respostas que eles dariam estão nos próprios programas que fazem, nos esquetes que gravam, nas piadas que contam.
     
    O "pulo do gato" desse novo humor que eles inauguraram foi ter apontado o humor para a própria TV, além de terem se livrado de um surrado tripé que sustentou por décadas o humor que ela exibia: piadas com 1) mulheres burras; 2) homens "cornos"; 3) estereótipos homossexuais - quando não a combinação de mais de um deles, ou mesmo os três juntos. Resquícios disso existem até hoje - e são, lamentavelmente, o maior obstáculo de boa parte das novas atrações que ironicamente pretendem "renovar" o humor na TV. Mas o sucesso de "Tá no ar" aponta para uma alternativa, quem sabe, mais interessante.
    Marcelo Adnet e Marcius Melhem em esquete de 'Tá no Ar'

    Como já foi, por exemplo, o escárnio de celebridades e pessoas que estão na mídia - hoje um conceito tão velho e desgastado que sequer alavancar uma audiência. Essa estratégia - que, desde o início tinha vida curta (quantas vezes você pode pintar alguém famoso de idiota e ainda parecer que está apresentando algo diferente?) - reinou no início deste século, mas já deixa gosto de comida vencida, com o público respondendo a isso com a indiferença de quem ouve uma piada cujo final é conhecido. A tendência é, como é possível notar, perder cada vez mais espectadores.
     
    Por onde ir então nessa árdua tarefa de fazer um telespectador rir?
     
    Não são poucos os programas e artistas que olham para a TV americana como inspiração. O sucesso de apresentadores como Jimmy Fallon (gênio) ou Jimmy Kimmel (um gênio menor) - para citar duas fontes nem sempre disfarçadas de vários modelos de apresentadores no Brasil - é uma ótima referência, não fosse por um detalhe: a simples reprodução do modelo de alguém que abre um talk show contando piadas esconde as verdadeiras razões do sucesso de Fallon & Kimmel (entre outros) - que são 1) a inteligência dos apresentadores (nem sempre presente em quem simplesmente reproduz a fórmula); 2) mais importante ainda, uma equipe de redatores excelente, não só afiada na ironia, mas também antenada com o que está acontecendo no mundo a sua volta, e com uma inteligência capaz de desafiar a da própria estrela para quem escreve. Ah! Vale a pena falar também que essa equipe de redação sabe ouvir críticas e tem a sabedoria de voltar para a página em branco quando o resto do grupo não acha a menor graça no que um deles escreveu.
     
    O que nos leva ao ponto crucial pra gente tentar responder à pergunta que fiz no título do post de hoje: tudo começa num bom texto.
     
    A maioria dos programas de humor que fracassam parecem desconhecer a importância dessa "matéria-prima". Em mais de um exemplo que pode ser garimpado hoje em dia numa zapeada casual, parece que o ponto de partida para um programa de humor é a capacidade do ator ou atriz principal fazer uma careta. A gente gosta muito disso sim - de Mazzaropi a Lady Kate, aprendemos muito a rir com essas caricaturas. Mas ter isso como ponto de partida é receita de fracasso: vamos rir no primeiro episódio - ou talvez no primeiro bloco do primeiro episódio. Mas e depois?
     
    Depois, é melhor você ter um bom texto. Não exatamente boas piadas - elas funcionam também "até a página 15", mas quando você está desenvolvendo um roteiro de meia-hora (ou, para ser preciso, de 23 minutos, que é tempo de produção padrão de um sitcom), é preciso mais do que um punhado de gracinhas para tudo fazer sentido. É preciso texto, ideias, argumentos - enfim, é preciso inteligência.
     
    Para reforçar minha defesa do bom texto, trago aqui uma prova irrefutável de que, quando tudo isso que citei na última frase está jogo e bem azeitado, a coisa funciona: "Connection lost", o décimo-sexto episódio da sexta temporada de "Modern family". No que diz respeito a escrever comédia para TV, isso para mim é uma obra-prima - você consegue encontrar isso sem dificuldade na internet.
     
    Claro que só parei para elaborar isso depois que vi o episódio pela terceira vez. Na primeira - assisti na casa de uma amiga minha quando estava hospedado com ela em Miami - mal consegui ver tudo: fiquei provavelmente metade do episódio de olhos fechados, rindo - e não apenas da piada, mas da sequência absurda dos eventos que iam se desenrolando. A segunda vez que vi "Connection lost" - logo depois da primeira - foi para ver a outra metade que eu não tinha conseguido prestar atenção enquanto eu estava rindo. Semanas depois, em visita ao Brasil, esta minha amiga - que trabalha com TV aqui e lá nos Estados Unidos - trouxe-me um DVD promocional que eles distribuíram, e que eu assisti novamente... e cheguei à conclusão de que é sim um trabalho de gênio!
     
    Resumindo muito brevemente o que acontece no episódio, Claire (a premiada Julie Bowen) está "presa" no aeroporto de Chicago - e resolve chamar o marido Phil (o também premiado Ty Burrel) para saber como estão as coisas em casa. As confusões começam quando ela percebe que sua filha mais velha não está por ali e, para piorar um pouco as coisas, ela (a filha) mudou o status do seu Facebook de "solteira" para "casada". Detalhe: todo o episódio se passa na tela do laptop de Claire!
     
    Isso mesmo: a história toda é contada nas janelas - de redes sociais, de ferramentas de buscas, de lojas virtuais, de aplicativos de localização, de balões de conversa - que se abrem no computador de Claire enquanto ela está em O'Hare. Se a premissa parece ser bem aborrecida - geralmente, quando uma tela de computador ou mesmo de smartphone aparece na televisão nossa tendência é rejeitar a informação que ela traz -, "Connection lost" parece ter conseguido o impossível: trazer a dinâmica da vida real para uma tela de cristal líquido.
     
    No lugar de repetir a mesma piada - Claire está conversando no FaceTime -, os roteiristas extrapolaram sua criatividade e usaram todas as ferramentas mais conhecidas da internet (de Wikipédia aos sites conhecidos de compra) para buscar, no próprio imaginário popular, elementos de identificação que pudessem provocar o riso.
     
    Por exemplo, quando Claire fala com seu irmão Mitchell (Jesse Taylor Ferguson) para ter notícias de sua filha e ele pergunta se ela está ligando porque tinha lembrado esquecido do seu aniversário, Claire nega o esquecimento - e diz que já mandou um presente, ao mesmo tempo em que escolhe alguma coisa para ele no site de uma loja de roupas. Ou ainda, quando sua filha Haley (Sarah Hyland) aparece e pergunta como a mãe dela entrou no seu Face (já que ela a havia recusado como amiga virtual), Claire responde que usou um nome falso - e a filha desabafa horrorizada: "Meu Deus, eu ando jogando Candy Crush com minha mãe!". E toda vez que Claire conecta com seu pai, Jay (Ed O'Neil), ele, como o membro mais velho da família, nunca sabe direito "mexer com aquilo" - aparece sempre fora de foco, fora da tela, fora de si!
     
    Tudo é brilhante - e brilhantemente escrito. "Connection lost" - que recebeu no Imdb a maior pontuação da história do sitcom (9,3) - é a prova de que é possível sim fazer humor de novas maneiras. O fato de um episódio original como esse ser o destaque da sexta temporada do programa, quando a maioria desses sitcoms começam a dar sinais de cansaço, só reforça seu mérito. Que é, desculpe, insistir, mais uma vez o mérito do texto. Ou ainda do texto inteligente - de uma equipe que senta numa sala e só sai não quando tem piadas suficientes para preencher vinte e poucos minutos de show, mas quando tem piadas engraçadas para preencher esse tempo, e ainda jogar algumas fora porque não estão cabendo naquele episódio.
     
    E esse é um processo que só se faz com tentativa e erro, com humildade de perceber que nem tudo que você fala é "super divertido", que nem a careta mais engraçada do mundo salva uma piada previsível.
     
    E quem diz isso não sou só eu não. Posso talvez ter elaborado um pouco demais aqui sobre algo que deve ser tão intuitivo quanto a arte de contar piadas. Mas no final, o veredicto é sempre dele - do público que queremos fazer rir. São eles que dão o retorno maior sobre esse trabalho difícil - que no final, sempre se traduz em números de aprovação.
     
    Pensando justamente neles, pergunto para terminar: tem alguém aí rindo?

    (FOTO: Marcelo Adnet e Marcius Melhem em esquete de 'Tá no Ar'. CRÉDITO: Arquivo/Globo/Alex Carvalho)

  • O problema com os Wachowski

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    "Matrix". Tudo começou ali, no filme - que tenho certeza de que você já viu, apesar de nossa cultura pop já ter rodado pelo menos uma geração (ou talvez um geração e meia) desde a sua estreia em 1999. Se você só conferiu este marco do cinema moderno na TV (ou na tela de um computador ou num tablet), perdeu um dos grandes espetáculos da grande tela do finalzinho do século passado. Eu diria até do começo deste século...
     
    Numa curiosa ironia, porém, o próprio título do filme parecer ter batizado o estilo da própria dupla de irmãos, Andy e Lana (que naquele tempo ainda atendia pelo nome de Larry - já falamos mais sobre isso daqui a pouco): uma visão quase sempre apocalíptica do mundo, não sem uma adorável (e quase sempre complicadíssima) "teoria da conspiração" por trás de toda história. Essa acabou sendo a "matriz" deles...
     
    O que era genial em "Matrix" - o filme original - tornou-se mirabolante nos filmes que se seguiram: "Matrix reloaded" e "Matrix revolutions". As tramas, embora em última análise coerentes, iam se complicando num nível que beirava o incompreensível. Não incompreensível nível "Vingadores: era de Ultron", mas mesmo assim, os trabalhos que vieram depois do primeiro pareciam privilegiar mais a própria "conspiração" do que a "explicação", numa espiral de "mistérios" que pareciam não apenas insolúveis, mas... messiânicos. E esse era o problema.
     
    Veja bem, nunca deixei de acompanhar o que eles faziam - e eventualmente até de gostar (se bem que nunca tanto quanto o primeiro "Matrix"...). Tive sim um choque com "V de vingança" (2005) - de tão pretensioso e mal resolvido que me saiu o roteiro final. Fui talvez dos poucos que tenha me divertido (pelo menos um bocadinho) com "Speed Racer" (2008). Como grande fã do livro em que o filme foi inspirado ("Cloud atlas", de David Mitchell, que segue misteriosamente inédito no Brasil), fui ver "A viagem" com uma enorme expectativa - e saí ligeiramente decepcionado.
     
    Dou esse pequeno histórico para dizer que fui então de mente e braços abertos conferir "Sense8" recentemente. Este é, claro, o último projeto da dupla - uma produção exclusiva da Netflix, que há pouco ficou disponível para "streaming" no canal de assinaturas. De cara, antes mesmo de me importar com o nome dos Wachowski nos créditos, me entusiasmei com o fato de a série ter seu pivô (pelo menos no início da história) em torno de Daryl Hannah!
     
    Os mais jovens certamente não registram esse nome - sequer se lembram de que ela foi a musa de incontáveis "Sessões da tarde". Se eu escrever "Splash: uma sereia em minha vida" - ajuda? Pois então... Sou fã mesmo da atriz  - a ponto de achar que uma de suas melhores aparições na tela foi num ponta (que nem está creditada) num dos melhores filmes de Woody Allen, "Crimes e pecados", onde ela participa de uma cena junto com um diretor de cinema que está procurando alguém tipo Daryl Hannah para fazer um filme (e no final ele olha para ela e decide que ela não é "tipo Daryl Hannah" o suficiente para o papel...).
    Por isso tudo, me proponho a ver qualquer coisa com a atriz - e quando, já lendo as primeiras críticas, soube que ela, no episódio inicial de "Sense8", "dava à luz" a oito, hum, "criaturas" em todo o mundo, achei que ia gostar. Mesmo sabendo que a série vinha com a "marca" do Wachowski: uma conspiração mundial - no caso, seres humanos "evoluídos", com superpoderes mentais, que têm de lutar contra uma espécie de "polícia supra-humana" que não quer que eles se espalhem pela Terra.

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    Lendo assim parece que o argumento de "Sense8" é bastante tolo. E é mesmo. Nessa breve definição, toda a série dá a impressão de não ter uma história para contar muito diferente do que todos esses filmes de super-heróis que estão cada vez mais genéricos (e presentes) nas nossas salas de cinema (nesta temporada de férias então, fale aqui para mim, você tem conseguido ver alguma coisa "decente"? - eu até estou com uma pequena vontade de ver "Homem Formiga", mas... eu divago...). Mas ela é mais que isso. E ao mesmo tempo menos - como vou tentar explicar agora.
     
    As "crias" de Daryl Hannah (que na série chama-se, hum, Angel) foram escolhidas aleatoriamente em várias partes do globo - a saber: Chicago, São Francisco, Londres (que reveza com Reykjavík, na Islândia), Berlim, Mumbai, Nairóbi, Seoul e Cidade do México. Só isso já dá um colorido bem interessante em todas as histórias - sem falar numa oportunidade única de imagens para a sequência de abertura (com os créditos) que é talvez a mais bonita que já vi na TV nos últimos tempos (apesar de o tema musical ter emprestado um pouco demais da trilha de outra série de própria Netflix, "House of cards").
     
    O elenco é quase todo bom, com destaques para Tina Desai (a exuberante atriz indiana que faz Kala), Tuppence Middleton (no papel da islandesa Riley), Miguel Ángel Silvestre (que vive um ator mexicano canastrão), e Jamie Clayton, a atriz transexual que faz o papel da lésbica Nomi (e eu hesitei muito em contar aqui esse detalhe, porque eu mesmo levei uns quatro ou cinco episódios para entender o que estava acontecendo, mas parece que a maioria das coisas que se escreve sobre a série já revela isso logo de cara) - esse personagem, aliás, mesmo a escalação da atriz, é uma "piscadela" para a história da própria Lana Wachowski, que, como já lembramos acima, começou sua carreira como, Larry.
     
    Os outros atores principais são adequados, mas não chegam a brilhar: Doona Bae é a sul-coreana durona Sun Bak; Max Rielmelt faz o estereotipado alemão Wolfgang; Brian J. Smith é um policial americano bem convencional, Will Gorski; e Ami Ameen é o "sofrido" queniano Chapeus. Apesar de essas performances serem bem aquém do brilhante, elas acabam funcionando na engrenagem da trama. E tudo seria uma maravilha, não fosse...
     
    Bem, deixe-me reforçar aqui mais algumas coisas positivas. O cenário "apocalíptico" é quase um clichê - mas no contexto geral, ele é bem resgatado. A conexão dos oito personagens principais é bem bolada: um aparece na vida do outro, mostrando um talento seu que pode ajudar o companheiro ou companheira justo na hora que ele/ela mais precisa. Mas isso só acontece lá pelo quinto capítulo, quando as histórias das pessoas já estão bem desenvolvidas - e elas são ótimas. (Atenção "brigada do spoiler": avance com cautela pelos próximos dois parágrafos!).
     
    Minha favorita talvez é a da indiana, que tem um casamento marcado com um magnata da indústria farmacêutica, mas, além de não ser muito apaixonada por ele, descobre que seu futuro sogro quer derrubar um templo de Ganesha - exatamente o que ela vai rezar todos os dias... Nomi, que fugiu de sua família porque ela não aceitava sua troca de sexo (a mãe, sempre que aparece, insiste em chamá-la de Michael), e que é um gênio da informática, é um dos personagens mais bem construídos. O mistério por trás de Riley é tão bem guardado que só vem à tona no final desta primeira temporada (o que só a torna mais interessante). E o dilema da estrela do showbizz mexicano que é gay, ganha tons extras de humor com a ótima/péssima atuação de Miguel Ángel.
     
    Mesmo os atores mais fracos têm boas histórias de vida. O queniano dirige uma van popular (batizada de Van Damme, e, homenagem ao seu ídolo) e vê-se obrigado a entrar no mundo do crime para comprar remédios para sua mãe, que tem Aids. Sun Bak, em sacrifício à memória da mãe, honra a palavra de proteger a família - e até vai para a cadeia por conta disso! O policial americano tem uma dívida no passado com o pai. E mesmo a trama de Wolfgang - que envolve uma vingança de família e roubo de diamantes - não é de todo ruim...
     
    O que une todas essas histórias - e aí que entra o tal "problema dos Wachowski" - é uma "conspiração maior". Alguém - o malévolo Mr. Whispers (em português, "Sr. Sussuros", interpretado por Terrence Mann) - quer acabar com os "filhos" de Daryl Hannah, e eles têm que se unir para combater o inimigo. É então que as coisas começam a ficar complicadas...
     
    No roteiro, começam a acontecer coincidências demais - mas isso não chega a ser um obstáculo grave. Qualquer pessoa que goste minimamente de fantasia pode acatar esses exageros. Meu problema é com os diálogos - que do meio para o final dessa primeira temporada começam a ficar incomodamente pretensiosos. É como se os criadores se "Sense8" se sentissem na obrigação de colocar alta filosofia - e grandes preocupações existências - na boca de personagens que, pelo menos até terem "renascidos" com a ajuda de Angel, não passavam de pessoas ordinárias. E, pior, com atores que não tem muito gabarito para isso.
     
    A ideia é até interessante - e funcionou muito bem, repito, em "Matrix". Mas em "Sense8", esses diálogos não soam mais do que banalidades, deslocadas em momentos de ação (quando o roteiro pede rapidez, alguém para falar uma platitude), desnecessárias em sequências de conversa (quando acabam atravancando o desenvolvimento da história). Entendo que o tom tem a ver com a curva geral da história de "Sense8". Mas essas coisas não podiam ser ditas de uma maneira um pouco menos "empolada"?
     
    Faço essa reclamação porque, de maneira geral, adorei a série. Mas toda vez que um personagem vinha com uma fala na linha "o mal não pode vencer a beleza dos corações de uma nova espécie que está surgindo entre os seres humanos" (esta não é uma frase que tirei literalmente da série, mas ela dá o tom do que estou sugerindo), minha vontade era de não ir até o décimo-segundo episódio - que fecha esta temporada de estreia.
     
    Felizmente eu não desisti! No balanço geral, senti-me recompensado de ver "Sense8" - e mais feliz ainda de imaginar que a gente vive uma era onde é possível um canal de "streaming" apostar num projeto tão ousado. Acabei até me envolvendo mesmo com as histórias pessoais que menos me atraiam - como a de Sun Bak. E, no final - que é muito bem resolvido, não só como conclusão da temporada, mas como gancho para a gente querer assistir à próxima - eu saí satisfeito.
     
    Apesar do meu problema com os Wachowski...

Autores

  • Zeca Camargo

    Mineiro de Uberaba, o apresentador do ‘Fantástico’ começou a carreira no jornal ‘Folha de S. Paulo’, participou da primeira turma da MTV no Brasil e foi editor da revista “Capricho”.

Sobre a página

Em seu blog, Zeca Camargo transita pelo universo da cultura e discute músicas, filmes e exposições.