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  • Os melhores discos de 2014 que você não ouviu

    Outro ano, outra aventura musical. Ou ainda, outras aventuras musicais. Sempre em janeiro, eu me esvazio de todas as listas de fim de ano (inclusive esta), e fico aberto para as possibilidades que o acaso pode me proporcionar. O resultado, desde 2007, é este que você vai ler agora: um punhado de sons colecionados ao longo do ano, não exatamente nos lugares mais óbvios, mas nas esquinas menos habitadas do pop.
    Claro que nem tudo é "obscuro". Alguns dos artistas que separei este ano para apresentar para você já são razoavelmente conhecidos. Mas estão longe de terem conquistado o sucesso de público que mereciam. Esta lista, como sempre, tem a modesta intenção de corrigir essa distorção do pop. Seguindo a tradição de anos, reafirmo que não pretendo agradar a ninguém com ela, se não a mim mesmo. Talvez nem tudo tenha sido lançado exatamente nos últimos 12 meses, mas tudo certamente caiu nos meus ouvidos em algum momento se janeiro até agora – e por isso merece estar aqui.

    Mais uma vez, convoco você a discordar de uma ou outra escolha – ou quem sabe da lista inteira! Mas se for assim, por favor venha com algo a acrescentar: apresente para mim (e para os nobres leitores) algo que a gente ainda não conheça – e também não mereceu a devida atenção em 2014. O bom das listas, ainda que ela tenha um número de itens (no caso, 15), é que elas são infinitamente flexíveis. Como a criatividade desses artistas que separei abaixo.

    Último lembrete: eles não estão em nenhuma sequência preferencial. Pode ler – e ouvir – na ordem que você quiser. Não importa por onde você vai começar: o fundamental, para apreciar tudo, é ter os ouvidos bem abertos... Vamos à lista de 2014 então (e no finalzinho dela, duas novidades para este ano)!

    Frankie Cosmos"Zentropy", Frankie Cosmos – quando foi a última vez que você ouviu um álbum só com músicas que duravam menos de três minutos? Ou ainda, que duravam menos de 2 minutos e meio – com algumas delas somando pouco mais de 60 segundos. Ah! Detalhe: todas elas estranhamente excelentes? Frankie Cosmos era um total desconhecido para mim, e agora seu conjunto de 10 canções (que totalizam pouco mais de 17 minutos!) são minha companhia permanente. É como se ele tivesse inventado um outro universo pop, onde Belle and Sebastian se misturam com The Books. Ouça pelo menos "Birthday", para se convencer de que é possível fazer diferente!

    Shiny Two Shiny"When the rain stops", Shiny Two Shiny – mesmo para alguém batizado no pop dos anos 80 como eu, essa foi uma grata surpresa. Oficialmente, esse duo formado por Gayna Florence Perry e Robin Surtees não lançou mais do que um EP naquela época. Mas aparentemente deixaram uma impressão forte o suficiente para alguém resgatá-los desse passado obscuro e, mais de trinta anos depois, relançar essa pérola! "When the rain stops" tem toda a simplicidade (Young Marble Giants), delicadeza (Everything But The Girl, bem no começo), e esquisitice (a lista é grande) daquela década. "Through the glass", por exemplo, resume tudo isso. E é daqueles mistérios do pop: como uma banda tão perfeita assim não fez mais sucesso?

    Johnny Hooker"Eu vou fazer uma macumba pra te amarrar, maldito" (& conjunto da obra), Johnny Hooker – "Alma sebosa", talvez a música em português que mais ouvi este ano (e olha que só parei para escutá-la direito depois do segundo semestre), foi só a ponta do icebergue. Mas que prazer foi bater de frente nessa geleira e afundar no pop de Johnny Hooker. Sim, a música foi trilha de uma novela (da qual ele participou como ator) – por conta disso talvez tenha sido mais reconhecida de certa maneira. Mas ele merece mais. Não só pelos trabalhos anteriores (não perca "Roquestar" nem "Ultra violente discotèque"!), como pelas músicas desse novo álbum – que letras são aquelas? E a música – bem brasileira, bem moderna e bem longe dos clichês – é irresistível.

    "Tche belew", Hailu Mergia & The Walias Band - Etiópia, 1977. Só de ler isso tenho certeza de que alguns já abandonaram a leitura. E se eu acrescentar então que se trata de uma banda de jazz? E instrumental? Ainda está aí? Fez bem em ter ficado, pois dificilmente você vai ouvir algo tão original como este relançamento precioso. Já sou fã desse som da Etiópia há tempos – o mestre Mulatu Astatke já foi citado neste mesmo espaço, com louvor –, mas para você que ainda não teve contato com ele, aqui está uma bela introdução. Sensual e hipnótica, é quase impossível acreditar que algo tão elaborado tenha saído dessa época, naquele lugar. Mas quem disse que é só no Ocidente que se experimenta? Estou sempre mostrando aqui artistas que quebram esse preconceito. E Walias Band é mais um exemplo disso. Ainda: num curioso diálogo entre décadas, alguns DJs modernos revisitaram certas faixas de Hailu no álbum "Hailu Mergia Remix" (também altamente recomendado) – e o resultado é puro prazer.

    "We come from some place", Allo Darlin' – num ano particularmente inspirado no que se refere a bandas simples com vocais cristalinos, Allo Darlin' é uma descoberta à parte – ainda que tardia, já que esse não é nem o primeiro álbum deles. Assim que você começa a ouvir os primeiros 30 segundos de "Heartbeat" – a primeira faixa de "We come from some place" – você já sabe que não vai mais querer largar a banda. Como eu demorei tanto tempo para encontrá-los? Eles são de Londres – uma referência óbvia. Estão lançando uma música boa atrás da outra desde 2010. Mesmo assim, escaparam do meu radar – mas agora não vou mais largar. "This is how it is to be young", canta Elizabeth Morris em "Kings and queens" – e essa energia está presente em cada verso. Muito lindo... Muito lindo...

    Singles Future Islands"Singles", Future Islands – hesitei bastante antes de incluir Future Islands na lista deste ano. Era mesmo para levar a sério uma banda de "synthpop" em pleno 2014? Ouvi uma vez, ouvi duas – e quando percebi já estava ouvindo a terceira. Mas mesmo assim, não tinha me convencido. Mas então um amigo me seduziu para ouvir "Seasons (waiting on you)" – e pronto! Não teve volta. Ainda brincando com esse amigo, disse que o Future Islands me lembrava uma mistura do Tears for Fears (circa "Change") com Spandau Ballet (circa “Gold”). Ele achou que eu estava diminuindo a banda – mas pelo contrário: era um baita elogio. Até porque "Singles" é bem mais original que essa mistura e, apesar de todo o clima retrô, é bem contemporâneo. Ainda bem que a gente ainda tem com quem conversar assim sobre o pop...

    Gipsy Rhumba"Gipsy rhumba: the original rythm of gipsy rhumba in Spain 1965-74", Vários artistas – eu colocaria nesta lista qualquer compilação que tivesse uma música com o título "A festa não é para feios" (no original, "La fiesta no es para feos", Peret y sus Gitanos). E outros títulos que não são menos sedutores: "Voy voy" (estupenda!), "El guapo", "El pan y los dientes" (¡!), "Anana hip" (¿qué?), "A-chi-li-pu" – e a improvável "Fui à Bahia"... Mas esse álbum, que ambiciosamente traz as origens da "rumba cigana" na Espanha dos anos 60, é muito mais que isso: uma explosão de ritmos, vozes potentes e um verdadeiro empurrão em todo seu corpo para ir dançar! Eu desafio você a ouvir "El loco" é ficar parado – sem falar que essa é a música com a estrutura mais bizarra que eu ouvi este ano. Para desfrutar por completo este álbum, faça ainda como diz a letra de "La fiesta no es para feos", que num verso surreal comanda: "Ponga su saquito para que pueda gozar"... Genial! Genial! Genial!

    Woman's HourWoman's Hour – há uma zona cinzenta entre a "dance music" e o "lounge" que, quando bem explorada, é um sucesso. O Pet Shop Boys praticamente inaugurou este filão, mas não é sempre que todo mundo acerta. Felizmente o Woman's Hour chegou para mostrar que ainda é possível criar alguma coisa interessante nessa área. Aliás, por falar em Pet Shop Boys, uma faixa como "Darkest hour" é exatamente o que eles estariam fazendo hoje se estivessem a fim: tem ritmo, tem atmosfera, tem batida. O mesmo vale para "Her ghost", que bem remixada (por FaltyDL) até enche uma pista. Sem falar que a banda ganha disparado o prêmio de melhor programação visual do ano: uma foto simples, branco e preto, e o nome da música em cima – só isso basta para criar um impacto enorme.

    Blue Film"Blue film", Lo-Fang – fico imaginando se um disco como tivesse que listar em seus créditos todos os sons que usasse em cada faixa, mais ou menos como um prato elaborado num livro se receitas. Se fosse assim, o encarte que acompanharia esse CD teria mais de mil páginas! Peguemos, a título de ilustração, a faixa-título, "Blue film". De harpa a um baixo profundo, tem de tudo ali – o suficiente para a gente se perguntar se não estamos ouvindo um disco secreto de Björk! Mas a voz sinuosa de Matthew Hemerlein afasta essa dúvida – e logo você está envolvido pela enorme bagagem musical. Nas entrevistas que li dele, várias viagens pelo mundo foram servindo de inspiração para a mistura que virou o Lo-Fang. Na qualidade de modesto viajante, este que vos escreve admite que gostaria de ter o dom de captar tantos sons assim – e transformá-los num disco belo como esse.

    Azealia Banks"Broke with expensive taste", Azealia Banks – lembra de quando você ouviu "1991" pela primeira vez? Meados de 2012, se não estou enganado. E você se lembra do que sentiu quando ouviu essa música? Que vinha coisa boa por aí? Que você mal poderia esperar pelo álbum de estreia de Azealia? Pois é, imagino que sua paciência foi testada – assim como a minha –, pois esse trabalho levou quase dois anos para ficar pronto. Mas agora que ele chegou, não consigo parar de ouvir – e você está desculpada Azealia! Digo mais: se era para ter vindo com algo tão bom assim, eu esperaria até mais um ano! Como o próprio título sugere, esse é um disco de excessos – que chega num cenário dominado por uma certa Nicki Minaj, que está longe de ser minimalista... Mesmo assim, as peripécias de Azaelia, sobretudo vocais, são as mais originais do ano.

    Vista pro mar, silva"Vista pro mar", Silva – não vou me repetir. Simplesmente o brasileiro que tá fazendo o melhor pop atualmente. Ah! E que também tem um Instagram sensacional (@listentosilva – tá vendo como eu estou ligado agora no Insta?). Enfim, tem que ouvir, por tantas razões que eu nem vou me alongar aqui. Silva. Devia tocar na rádio. Devia tocar no seu iPod. Devia ter no seu pendrive. Em todo o lugar. Como já coloquei no meu próprio Insta, a Amoeba Records de Los Angeles já descobriu – e valorizou. E você, está esperando o quê?

     

     

    Curtis Harding"Soul Power", Curtis Hardin - em que década afinal este disco foi gravado? Em algumas faixas, ele traz o melhor do soul americano que explodiu nos anos 60. Por outro lado, as experiências dos anos 70 – com uma pitadas de Sly & The Family Stone – também estão presentes. Daí, em faixas como "Keep on shining", Curtis Harding já entra no embalo como se estivesse no auge dos anos 80. Tem um quê de White Stripes em "Drive my car". Há espaço para uma inspiração neo-folk bem contemporânea ("Freedom") e até alguns flertes com um "soul de raiz", que deixaria Gnarls Barkley corado (como em "Surf" – talvez minha faixa favorita). E o que dizer de "I don't wanna go home", que eu não consigo entender porque não foi um sucesso em todas as rádios do mundo, com seus exuberantes dois minutos e dezessete segundos? "Soul power" é tudo isso, e sem a menor pretensão de ser "enciclopédico". O cara é bom – só isso.

    Teleman, Breakfast"Breakfast", Teleman – OK, então o tão esperado álbum do Metronomy não foi aquela brisa pop que todo mundo estava esperando... Permita-me sugerir então que se você tivesse ouvido "Breakfast" pelo menos uma vez esse vazio não seria tão grande. Teleman é de uma simplicidade absurda e de uma eficiência fulminante. Você pode até falar que eles são derivativos – do próprio Metronomy. Mas quem está ligando para isso quando as canções caem tão bem no seu ouvido, como se fosse verão o ano inteiro? Esse é o clima de "In your fur", para citar apenas uma. E o melhor é que o Teleman não nos deixa esquecer que tudo pode acabar sempre num grande coro cantado em voz alta no meio da rua, no exato momento em que você não se lembra mais que está de fone de ouvido: "Oh love is pouring down..."

    Double Youth"Double you", Helado Negro – um dos segredos daquele que é para mim um dos melhores discos deste século - forte, né? – é textura. Falo, claro, de "Allegranza", de um alucinado DJ espanhol – El Guincho – que misturou tanta coisa no seu caldeirão que nem mesmo ele conseguiu se superar nos trabalhos seguintes. "Double youth" não está à altura de "Allegranza", mas lembrei dele porque é um álbum que trabalha finamente com as texturas. Algumas músicas são tão densas, que parece que você as está assistindo num videoclipe – só que através de um vidro fosco. Mas aos poucos elas vão se revelando, numa coleção de climas sugestivos – que, por falar em referência, também traz a memória o ótimo Twin Shadow, com sua "dance music de areia movediça" (um termo que eu mesmo inventei para sons que inspiram a dança, mas em movimento densos e contidos – mas eu divago...).

    Shabazz"Lese majesty", Shabazz Palaces – reincidente, fazer o quê? Já coloquei um álbum anterior de Shabazz numa lista de fim de ano, mas como não repetir a indicação quando ele vem de novo com um punhado de faixas de um hip-hop totalmente imprevisíveis? Mesmo para quem vem de um trabalho totalmente experimental, depois de uma breve e inventiva incursão no pop (com o extinto Diggable Planets), Shabazz puxa os limites ainda mais longe. E no lugar de vir com uma impenetrável coleção de "beats", para onde artistas assim podem facilmente enveredar, ele abre as portas de uma viagem sonora única. "Dawn in Luxor", que abre o álbum, pode parecer um pouco estranha demais. Mas assim que você mergulha em "Forerunner foray", a faixa seguinte, não tem mais volta. Boa viagem.

    E o melhor disco do ano que você não ouviu é...

    Perfume Genius"Too bright", Perfume Genius – quantas vezes eu já ouvi este álbum? Umas 30? 35? Então por que até hoje eu ainda tenho vontade de destrinchá-lo como se fosse a primeira vez? Mike Hadreas, o gênio por trás do nome, já não era conhecido por canções muito convencionais, mas nesse seu novo trabalho ele quebrou todas as estruturas do pop. Em compensação, nos trouxe um conjunto de músicas que têm o aspecto de vísceras frescas numa mesa de jantar. E não estou falando isso para passar uma imagem repugnante, mas sim forte e brutal. "Queen" é certamente a música mais estranha, emocionante e forte que ouvi em 2014 (e não vamos nem começar a comentar o clipe!). Mas a que me dá calafrios toda vez que ouço é "Grid". Como ele consegue? E se você não chorar com "Too bright" (a faixa-título), é melhor consultar um cardiologista para ter certeza de que seu coração ainda está batendo. Parte Antony and The Johnsons, parte Elton John – e parte até Freddie Mercury –, Perfume Genius praticamente ordena que você pare para ouvi-lo. É melhor você obedecer. Para começar 2015 do zero.

    Bônus 1: a canção que, mesmo bastante tocada em 2014, jamais será ouvida o suficiente – "Habits (stay high)", Tove Lo. Meu palpite é que essa música está só ligeiramente aquele da perfeição pop.

    Bônus 2: a canção que me faz esperar pelo álbum de lançamento do seu autor em 2015 – "God's whisper", Raury. Não sei de onde esse cara surgiu nem de onde tirou essa música, mas quero mais.

    Fotos: Reprodução (capas de discos); Pedro Escobar/ Joinha Records (Johnny Hooker)

  • O último CD que comprei na minha vida

    EurythmicsO primeiro CD que comprei na minha vida foi "Be yourself tonight", do Eurythmics. Era o ano de 1985 e, embora eu já tivesse visto vários títulos à venda nas vitrines da extinta HMV da Oxford Street, em Londres (de onde eu tinha voltado numa viagem recente), a oferta no Brasil ainda era limitada. Tanto de discos como de aparelhos, ou seja, os "tocadores de CD". Desconfio até que comprei as duas coisas juntas: o aparelho e o CD. O que me lembro bem é de chegar excitado em casa; desembrulhar a embalagem de acrílico transparente, que vinha envolta em uma película fina; encontrar aquele círculo reluzente, com informações básicas do que eu estava prestes a ouvir (seriam anos até alguém ousar estampar algo diferente naquela superfície); abrir a "gaveta" do tocador de CDs; colocar com extremo cuidado aquele objeto prateado no espaço perfurado (que permitia que o raio laser lesse os "zeros e uns" impressos em uma de suas camadas compactas); apertar a tecla para que a gaveta se fechasse; ouvir o robótico barulhinho de reconhecimento do que ali estava gravado - um rápido "zzziiit!" finalizado com "pfiu" desacelerando; e, enfim, ouvir a introdução costurada na guitarra de David Stewart e enriquecida de metais pesados, seguida de um coro de "soul" puro entoando o título da primeira música ("Would I lie to you?") e a voz de de Annie Lennox rasgando um "ahhhh-yeah"...

    Puro êxtase.

    Algo talvez inimaginável para uma geração que se acostumou a ter a música que quer na hora que quer – algo a ser festejado! – só que com a qualidade de uma "caixa de som" de um smartphone – algo a ser condenado. Críticas à tecnologia à parte (eu mesmo já me acostumei a carregar meu poderoso fone de ouvido para todo lugar para driblar a baixa qualidade de reprodução, mesmo dos telefones mais modernos), a própria acessibilidade da música hoje não permite que aqueles que foram criados já com a noção de que as canções não precisam de um objeto (CD, cassete, vinil) para serem consumidas imaginem o prazer que era colocar um novo CD para ouvir.

    Foram vários momento assim – e não só nos anos 80. Ao longo desses quase 30 anos, eu desenvolvi um ritual – talvez não muito diferente do de milhares, milhões, de fãs de música no mundo todo. Eu ia até uma loja de discos com uma vaga ideia do que queria comprar: recomendações de publicações especializadas, um ou outro nome que eu já havia escutado numa rádio, um novo trabalho de um artista que eu já conhecia etc. Mas sempre deixava espaço também para descobertas inusitadas: artistas totalmente desconhecidos, uma dica de alguém que trabalhasse na loja de discos, uma capa bem feita que me chamasse a atenção, um relançamento em CD de um álbum que eu só tinha em vinil.

    Com tudo isso na cabeça, entrava na loja já sabendo que eu não tinha hora para sair. Durante viagens internacionais, então, era notório o mal-estar de quem me acompanhava quando eu passava por uma delas: ele ou ela já sabiam que poderiam tomar outro rumo, e que nós só nos encontraríamos de noite – com possibilidade de eu me atrasar para o jantar.

    Com os CDs que eu tinha comprado na mão, quase sempre carregados por horas até que eu chegasse perto de um aparelho de som, a ansiedade de ouvi-los ia crescendo. Se eu estivesse parado em algum lugar – um transporte, uma sala de espera –, abria os discos um por um, e mesmo ainda sem poder escutar as faixas, divertia-me em examinar os livretos, capa e contracapa, o próprio "compact disc" – e ficava furioso quando o "pacote" não trazia mais informações do que a lista básica das faixas (ou às vezes nem isso, provocando uma frustração ainda maior).

    Se estava fora do Brasil, ainda seriam dias até que eu pudesse de fato aproveitar a música que tinha acabado de adquirir. Mas, uma vez em casa, essa era a recompensa que eu buscava assim que entrava na minha sala. Hesitava um pouco na hora de decidir qual deles eu deveria ouvir primeiro, mas quando finalmente escolhia um, ficava hipnotizado pelo som que saía das caixas – fosse bom ou ruim, já que essas avaliações eram secundárias diante de um ato tão nobre como a compra de um CD.

    No final dos anos 80, quando comecei a trabalhar como jornalista e já escrevia sobre música, as gravadoras ainda mandavam amostras de seus lançamentos em vinil. A migração para o CD foi lenta e, na época, como eu tinha um salário básico de iniciante, e os discos eram caros (mesmo hoje, é difícil encarar o preço de um CD como "acessível"), minha coleção foi crescendo a passos lentos.

    Bem lentos: em 1989, quando morava em Nova York, com dinheiro contado, fazia o maior esforço para guardar pelo menos dez dólares por semana só para poder ir à Tower Records da Broadway com a rua 4 e poder sair de lá com um CD. Vagar pelos seus dois andares, fuçando nas porosas seções de suas prateleiras ("oldies", jazz, "world music", lançamentos, soul, clássico, hip-hop, "europeu"...), era meu passatempo favorito. Depois, quando descobri as lojas independentes, como a Rebel Rebel Records (que, ironicamente ao contrário da mega Tower, sobrevive até hoje ali na Bleecker Street), tinha ainda mais motivos para me perder entre capas misteriosas e novidades inesperadas.

    Depois, veio meu período de MTV, quando a coleção deu uma natural deslanchada. Ganhava muitos CDs das gravadoras, sempre prontas para promoverem seus artistas. E comprava outros tantos – por aqui e por viagens. Certa vez em 1992, em Nova York, onde tinha ido fazer entrevistas com artistas da época, voltei com a impressionante quantidade de 114 CDs, todos comprimidos no espaço de uma mala de mão, que eu carregava nos ombros disfarçando o seu peso. Tudo isso só para não "correr o risco" de despachar como bagagem normal e ver meus preciosos disquinhos extraviados sei lá para onde (será que eu era paranoico?).

    Com a frequência de viagens internacionais aumentando, diminuía a quantidade de CDs adquiridos em cada uma delas. O que não mudou, porém, era o compromisso de passar por lojas de músicas – sempre com uma lista já pré-organizada – e procurar por coisas que eu queria muito ouvir. E o tesão de, como "nos velhos tempos", chegar em casa e colocar aquilo para tocar.

    Nos últimos dez anos, com a facilidade da música virtual, passei a comprar cada vez menos CDs. Nunca, como já me defendi aqui mesmo neste espaço, mergulhei na pirataria pesada, mas diante da possibilidade de ouvir algo novo sem ter que depender de uma visita a uma loja de discos, confesso que às vezes caí em tentação. Além disso, as primeiras lojas virtuais – mesmo a primeira versão do iTunes – estavam longe de terem a oferta de álbuns e artistas que existe hoje. Ou, quando tinham alguma coisa que eu estava interessado, ela não podia ser vendida no "mercado brasileiro". Então era como se eu não tivesse opção...

    Mas elas foram melhorando e, digamos, de dois anos para cá, eu parei de fazer listas do que eu queria comprar quando visitasse uma loja no exterior – a Other Music, em Nova York; a Sister Ray, em Londres; ou mesmo a Fnac em Paris. Eu sempre deixava para passar nesses endereços na última hora, pegava as coisas mais óbvias e contava com a sorte e o acaso para descobrir preciosidades.

    Até que neste ano de 2014, eu comecei a levar a sério o que antes era uma brincadeira esporádica: comprar álbuns em lojas virtuais, que eram baixados diretamente no meu smartphone. Até abril deste ano, eu só tinha quatro artistas na minha "coleção digital": dois EPs do Beck; Arcade Fire; Belle and Sebastian; e (estranhamente) as quatro últimas canções de Strauss, na voz de Jessye Norman. Agora, já são 53 álbuns – todos baixados legalmente – e mais um punhado de singles. Como o de artistas que sequer chegaram a lançar um disco, mas já estão fazendo coisas interessantes o suficiente para despertar minha curiosidade – exemplo: Raury, com seu "God's whisper" (experimente!).

    Todo aquele ritual que descrevi acima – e com o qual que sobrevivi durante anos – de repente parou de fazer sentido. Dei-me conta de que entre eu receber uma "newsletter" de uma publicação musical me apresentando novos artistas e a possibilidade de eu escutá-los, a única coisa que eu precisava fazer era dar um par de cliques. Para que esperar uma viagem, "perder" tempo numa loja, ir até o caixa, carregar aqueles CDs até me casa, só para escutar um punhado de músicas novas, quando eu posso fazer isso da poltrona da minha casa?

    Na última viagem internacional que fiz, semanas atrás, para entrevistar o U2, aconteceu, então, o que eu jamais poderia esperar: voltei sem um CD na bagagem. E isso porque a entrevista tinha sido em Londres! Como era possível isso? Bem, não tive vontade de compra nada. Aliás, explico melhor: as bandas e os artistas sobre os quais tinha lido boas coisas durante a viagem – Teleman, Perfume Genius, Helado Negro, George Erza, Fredo Viola – eu "comprei" ali mesmo no hotel onde eu estava hospedado, usando o wi-fi que era cortesia da casa...

    Annie LennoxSó não consegui comprar, mesmo virtualmente, um disco que queria muito, pois ele estava em pré-venda. Assim, ansioso que estava para ouvi-lo, encomendei o álbum numa loja virtual, no formato CD mesmo – e ele chegou para mim na semana passada. E este foi o último CD que comprei na minha vida: "Nostalgia", de Annie Lennox. Uma escolha que, digamos, fecha um ciclo: se comecei minha coleção com Eurythmics, nada mais apropriado que fechá-la com o trabalho mais recente da cantora desta banda. E não estou nem levando em conta o título do trabalho...

    Como um requinte de crueldade, estou adiando a audição de "Nostalgia". Ele ainda está intacto na embalagem que veio, mas ainda quero escutá-lo antes da grande viagem na qual eu embarco a partir deste domingo – mais detalhes até o fim desta semana (só lembrando, você vai encontrar um post por dia aqui até esta sexta-feira). De qualquer maneira, sei que vai ser uma cerimônia simbólica que vou tentar fazer com a mesma pompa e circunstância que usei quando ouvi pela primeira vez aquela cópia de "Be yourself tonight".

    Porém, mesmo com todo esse discurso, não posso garantir que será de fato o último CD que comprarei. O acaso sempre pode me empurrar para dentro de uma loja tentadora em Bangcoc, em Istambul, sei lá onde. Não vou me privar de uma experiência dessas só porque já dei publicamente meu adeus ao formato. Mas se isso acontecer, estarei ciente de que encerrei uma era.

    O que nunca se acaba, no entanto, é a paixão pela música. E sobre essa, você vai sempre poder se atualizar aqui comigo.

    O refrão nosso de cada dia: "Recenseamento", Ademilde Fonseca, para esta semana especial, em que você vai encontrar um post aqui todo dia, preparei também um "evento" para esta seção. Como expliquei rapidamente ontem, encontrei um CD duplo de tributo a Assis Valente, um dos melhores e mais divertidos compositores que já tivemos. E resolvi indicar uma música dele por dia para você. Hoje vamos de "Recenseamento", que prova que Valente, além de outras coisas, era mestre da crônica social. Tem a ver, claro, com um recenseamento feito no Rio em 1940 – e em cima disso ele faz uma letra preciosa que, dentro do seu repertório, eu acho que só é superara por "Uva de caminhão". Não lembrava direito dessa canção, e quando ouvi seus versos caí na alegria. Dois exemplos: "E quando viu minha mão sem aliança encarou para a criança que no chão dormia / E perguntou se meu moreno era decente, e se era do batente ou era da folia"; "Fiquei pensando e comecei a descrever tudo tudo de valor que o Brasil me deu / Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo, um pano verde e amarelo - tudo isso é meu". UM PÃO DE AÇÚCAR SEM FARELO!!!! Sensacional!!!! Espere pela faixa de amanhã...

    *Imagens: Reprodução

Autores

  • Zeca Camargo

    Mineiro de Uberaba, o apresentador do ‘Fantástico’ começou a carreira no jornal ‘Folha de S. Paulo’, participou da primeira turma da MTV no Brasil e foi editor da revista “Capricho”.

Sobre a página

Em seu blog, Zeca Camargo transita pelo universo da cultura e discute músicas, filmes e exposições.