Como se comportar diante de um ídolo
Como se comportar diante de um ídolo
Tenho que começar dizendo que o título acima é uma propaganda enganosa. Leitores e leitoras regulares deste espaço conhecem bem a história de decepção e constrangimento que foi meu encontro com Thom Yorke, do Radiohead, numa loja em Paris. Mais recentemente, contei mais um punhado de contatos fristrados - um deles com ninguém menos que minha musa Patti Smith! E em mais de uma conversa que tive com estudantes de jornalismo de todo Brasil, contei a história de que perdi a atenção de Michael Stipe (R.E.M.) quando, durante uma entrevista com ele, comecei a surtar com o fato de que estava diante de alguém que admirava tanto - ele percebeu que eu não prestava atenção ao que ouvia e encerrou a conversa na mesma hora...
A verdade é que não sou um exemplo de "frieza" diante de um ídolo - e tive mais uma prova disso agora, na última edição da Flip, a Feira Literária de Internacional de Paraty, que terminou domingo passado. Diante de mim, nada de astros do rock (e muito menos do cinema), mas boa parte do melhor da produção literária - nacional e do mundo. Que foi possível trazer, claro - crise etc.
Como sempre gosto de um suspense, vamos "jogar" um pouco. Apesar de ser fã incondicional de Arnaldo Antunes e Karina Buhr (agora autora, do "Desperdiçando rima", Rocco) - que fizeram uma mesa animada no sábado à noite - não é desses ídolos que estou falando. Também não fui para ver David Hare - que muitos já falaram que foi talvez a melhor participação de todas as Flips! Eu até adoraria ouvi-lo, pois tive a chance de ver uma remontagem de sua peça "Skylight" recentemente em Nova York (sim, essa com Carey Mulligan - sensacional!), mas cheguei em Paraty bem na hora em que sua mesa estava acabando. Gostaria muitíssimo de ver - e teria feito o esforço para tal - o italiano Roberto Saviano, um dos mais admirados jornalistas e escritores da atualidade, que deveria ter vindo lançar seu mais novo livro "Zero Zero Zero" (Companhia das Letras), sobre o mercado da cocaína. Mas ele teve problemas de segurança e não pode comparecer - aliás, difícil mesmo imaginar um esquema que protegesse ele ali naquele frágil sítio histórico. Ainda: eu poderia ter ido só para conferir o cubano Leonardo Padura, autor do elogiadíssimo "O homem que amava os cachorros" (Companhia das Letras) - um trabalho "sui generis" desse escritor policial.
Mas não - eu estava lá para ver um cara chamado Riad Sattouf. Ele é um cartunista francês, já queridíssimo da França, que agora começa a ser conhecido internacionalmente por conta do sucesso de seu sensacional livro "O árabe do futuro" - aqui, recém-lançado pela Intrínseca. Talvez esse rosto aí, do cara ao meu lado na foto, não queira dizer nada para você. Até ver uma entrevista sua na "Inrockuptibles" de algumas semanas atrás, ela também não me dizia nada. Afinal, sempre que pensava em Riad - que é também o principal personagem dessa sua história em quadrinhos - a imagem que eu tinha era de um garoto (criança mesmo) com lindos cabelos loiros cacheados. O que não podia ser mais diferente do que o próprio Riad...
Enfim, era na frente desse cara que eu me encontrei na Flip - e literalmente não sabia o que fazer. Eu fui completamente "fisgado" pelo "Árabe do futuro" - a ponto de já ter comprado (e lido) o segundo volume, em francês mesmo, que acaba de sair na França. E quando eu gosto muito de uma coisa - pode ser uma música, um livro, um filme, eu fico apavorado de encontrar quem criou aquilo. Vai entender... Mas antes de contar este momento, deixe-me tentar te convencer do meu entusiasmo por Riad.
Não sou um grande conhecedor de quadrinhos. Nos (quase) oito anos deste blog, raras foram as vezes que eles me pautaram - mais raras ainda se você descontar as sempre bizarras adaptações para o cinema. Quadrinhos "puros" são algo que passa pelo meu radar ou quando eles nos ajudam a visitar outras culturas - como "Persépolis", da iraniana Marjane Satrapi, ou "O fotógrafo", do francês Emmanuel Guibert. Ou quando são tão preciosos que acabam canonizados como arte - pense em Chris Ware. "O árabe do futuro" cai certamente na primeira categoria - aliás, com um equilíbrio perfeito entre o humor de Satrapi e a observação de Guibert.
Autobiográfico, o livro conta a infância de Guibert - que é filho de uma francesa e um sírio que ganhou uma bolsa nos anos 70 para estudar na conceituada universidade Sorbonne, em Paris. Um casal improvável, talvez não nos dias de hoje, mas certamente 40 anos atrás. E com uma trajetória ainda mais inesperada: na tenra infância de Riad, o pai resolve mudar a família para... A Líbia de Gaddafi!
Na época, claro, ainda não era o país sanguinolento que o mundo parece que descobriu só recentemente, quando uma verdadeira caçada humana acabou com a morte do ditador (2011). Mas já era um país bem estranho onde as pessoas, por exemplo, não podiam deixar a casa sem ninguém, senão outra família tomava posse dela - estava escrito no "livrinho verde" de Gaddafi! E os noticiários das rádios tinham textos aprovados pelo governo, só que com tantas mentiras que - num dos episódios mais hilários do "Árabe do futuro" -, quando a mãe de Riad consegue um emprego de locutora, ela tem um ataque de riso com as bobagens que tem que ler, e é presa "ao vivo" por "subversão"...
E isso é só uma parte desse primeiro volume. Riad, que segue sendo desenhado com seus incríveis cachinhos dourados, muda-se então para a Síria (que também não era o país violento que vemos hoje no noticiário, mas era bastante conservador nas suas tradições) - e lá ele é atacado constantemente nas ruas, e por seus próprios primos, todos muçulmanos, porque ele "parecia judeu". Essa "confusão" que orbita a cabeça do pequeno Riad é o conflito principal que move a narrativa. (No segundo volume, sobre o qual espero escrever aqui quando for traduzido, ele sofre ainda mais com isso, uma vez que vai à escola na Síria).
"Riad criança" venera o seu pai e não entende muitas bem suas decisões. Mas o "Riad adulto" conduz a história não com sarcasmo, mas com inocente distância, ajudando o leitor a enxergar tudo com a mesma curiosidade que o "Riad criança" - mesmo em momentos mais absurdos onde ele ilustra, por exemplo, a discriminação contra as mulheres. O resultado é uma obra leve no traço e profunda no questionamento das coisas. Que, como você pode imaginar, faz paralelos imediatos com muita coisa que está acontecendo hoje à nossa volta...
Li esse primeiro "Árabe do futuro" numa tarde - e ainda me sobrou tempo para revisitar algumas páginas favoritas. E fiquei babando de admiração por Riad. Por isso que, quando pensei em pedir seu autografo, imediatamente me questionei se teria coragem de chegar lá e não me desfazer como um tolo fã diante do ídolo. Cheguei a desistir. Mas aí, ele, na sua apresentação na Flip, mostrou um outro personagem que tinha criado, o engraçadíssimo "Pascal Brutal" - além do "Árabe do futuro", ele já fez vários quadrinhos, colaborou anos com o "Charie Hebdo", e atualmente tem uma página semanal na revista francesa "L'Obs". Aí estava um bom motivo, ou melhor, um motivo "original" para pedir um autógrafo, já que o meu medo é sempre passar por "mais um na fila", só incomodando ele com uma assinatura... Além disso, eu tinha trazido de Paris a "Inrock" com seu desenho na capa. Pronto! Já tinha duas desculpas!
Então eu fui. Escorei numa amiga, que tem o francês bem melhor que o meu, e puxei conversa. Para minha surpresa, o contato foi mais que feliz. Bem-humorado e curioso, ele nos recebeu como amigos, e "quebrou" qualquer timidez que eu pudesse ter. Rolou até a foto que você viu acima! E mais a lembrança na "Inrock" que está aqui também. No total, não ficamos mais do que dez minutos juntos, mas o relógio para um fã nunca é justo com seus ponteiros...
Saí feliz com meus autógrafos, minhas fotos, meus livros - e sem nada a acrescentar na arte de "como se comportar na frente de um ídolo". E é por isso que eu acho que você deve processar o cara que escreveu isso aqui!