Estojo com instrumental de Bertillon — Foto: Acervo do Setor de Antropologia Biológica do Museu Nacional/ UFRJ
Difícil e talvez inútil voltar ao tema, mas não resisto, não saio do trilho. E qual o tema? As leis raciais. Agora, uma espécie de febre. Denúncias de todo o lado fazem com que as universidades instituam comissões chamadas de heteroidentificação. Tudo dentro da lei porque o Supremo Tribunal Federal, nossos ministros togados, decidiram pela constitucionalidade das cotas, mas disseram que não basta a autoidentificação dos candidatos.
É preciso uma heteroidentificação, e o critério para saber quem é negro e pardo são os traços fenotípicos – cabelo, tamanho do nariz, lábios, prognatismo (acentuada projeção do maxilar inferior para a frente) e cor da pele entre outros. A ascendência preta ou parda, segundo o STF, não faz ninguém ser negro se os traços fenotípicos não correspondem às características da “raça negra”.
Tudo começa com a denúncia de colegas. Isso está em toda a parte e até na maior Universidade Federal, a UFRJ, e na maior universidade estadual, a USP. Estudantes denunciam que houve fraude em concursos para acesso e, zás, faz-se logo uma comissão legalmente instituída com estudantes, professores, técnico-administrativos, alguns pertencentes a movimentos negros. Os cotistas devem então passar por um julgamento e se esta comissão decidir que os traços fenotípicos não estão de acordo com a régua, são desclassificados e devem abandonar os bancos escolares. Tudo dentro da lei.
Ricardo Ventura Santos e Marcos Chor Maio foram os primeiros a mostrar as incongruências do sistema quando descreveram o que definiram como “tribunal racial”. Revolta-me só imaginar a situação. Os mais escuros se sentem confortáveis porque passam pela régua, mas os mais claros podem ser acusados de fraude. Deve ser tenso viver esse teste. No entanto tudo está naturalizado, qual o problema, dizem?
Quando soube pelo noticiário na semana passada que a UFRJ estava organizando uma comissão de heteroidentificação para repensar ou estabelecer critérios a que todos os concorrentes por cotas deviam se submeter, não acreditei. Liguei para alguns amigos queridos do staff da Reitoria para saber se havia verdade nisso. Sim, me responderam e como se fosse algo natural foram me contando o que estava sendo feito. Conversei com pessoas que fizeram parte da comissão de anos anteriores e perguntei se elas se sentiam bem fazendo essa avaliação. Elas estavam seguras.
Diziam que os critérios eram justos e que havia sim gente branca querendo tomar o lugar dos pretos e pardos. Assim, afirmaram que cumpriam um dever de impedir essa estratégia de mentir para conseguir entrar na universidade. Perguntei se mediam os narizes, se colocavam lápis entre os cachos dos cabelos como se fazia na África do Sul do Apartheid e se examinavam as mucosas. Houve um silêncio e logo em seguida uma resposta curta e grossa: “Não houve necessidade”.
Pois bem, então os estudantes agora denunciam colegas por fraudar sua “raça” para ter vantagens e entrar na universidade. Exibem seus nomes e fotos nas paredes e acham normal usar critérios “biológicos” para aferir o que os doutos ministros do STF e muitos dos meus colegas antropólogos chamam de “raça social”. E isso sem pensar e nem imaginar as consequências do deslocamento.
Fico mais perplexa ainda porque sabemos que entrar na universidade pública parece não ser o problema mais crucial, mas sim sair formado. Sobretudo nos cursos de menor prestígio por muitos motivos, mas especialmente porque são mal organizados e com o sistema de créditos os estudantes entram num labirinto e não sabem como sair dele. Depois de anos tentando saltar obstáculos burocráticos acabam desistindo. Basta conversar com os coordenadores dos cursos de graduação para saber a dificuldade de passar por esses tortuosos caminhos sem uma Ariadne para lhes dar um novelo e com essa ajuda passar por um único caminho que leva até o centro onde vive o Minotauro e matá-lo.
A imagem não é caricata. É a experiência que vivi ao longo da minha carreira e foi preciso fazer um esforço enorme para criar no curso de ciências sociais do IFCS, um caderninho amarelo (não tinha nome) e que, como o novelo de Ariadne, ajudava os alunos a atravessar o labirinto em quatro anos e conseguir se formar. Pois é, as cotas raciais foram um atalho para permitir a entrada de estudantes pretos e pardos e alguns indígenas, mas metade de todos os ingressantes na universidade, como disse a nossa reitoria recém-empossada, não consegue o diploma.
E assim foi: primeiro, os estudantes denunciaram seus colegas de fraude, depois instituíram as comissões de heteroidentificação para sanar as “fraudes” e, finalmente criaram comissões permanentes para esse fim pela qual devem passar todos os estudantes que escolheram as cotas raciais para o acesso ao ensino superior.
O resultado é aquele previsto há mais de dez anos – separar, brancos de pretos e pardos (negros) e assim instituir no País a “raça” biológica a partir de fenótipos raciais criados no século XIX. Espantoso!