• Sejam sempre esquecidos

    No mosteiro de Sceta, o abade Lucas reuniu os frades para o sermão.

    “Que vocês jamais sejam lembrados”, disse ele.

    “Mas como?”, respondeu um dos irmãos. “Será que nosso exemplo não pode ajudar quem está precisando?”

    “No tempo em que todo mundo era justo, ninguém prestava atenção nas pessoas exemplares”, respondeu o abade. “Todos davam o melhor de si, sem pretender, com isso, cumprir seu dever com o irmão. Amavam ao seu próximo porque entendiam que isto era parte da vida, e não estavam fazendo nada de especial em respeitar uma lei da natureza. Dividiam seus bens para não terem que ficar acumulando mais do que podiam carregar, já que as viagens duravam a vida inteira. Viviam juntos em liberdade, dando e recebendo, sem nada a cobrar ou culpar os outros. Por isso seus feitos não foram contados, e eles não deixaram nenhuma história. Quem dera, pudéssemos conseguir a mesma coisa no presente: fazer do bem uma coisa tão comum, que não haja qualquer necessidade de exaltar aqueles que o praticaram”.

  • Da reação certa

    No início de nossa luta para encontrar nosso lugar no mundo, temos vergonha de expor nosso ponto de vista – e terminamos fazendo coisas que não gostaríamos de fazer. Depois de muito esforço, quando conseguimos superar esta fase, caímos no outro extremo: não damos mais chance ao próximo de nos dizer o que pensa.

    Geralmente pagamos um preço alto por esta atitude.

    O filósofo grego Anaxímenes (400 a.C.) aproximou-se de um general, para tentar salvar sua cidade.

    “Não importa o que você deseja, tem minha palavra de rei que não aceitarei”, disse o todo poderoso Alexandre, antes de ouvir o que o filósofo queria.

    “Tudo o que desejava era ver minha cidade destruída”, respondeu Anaxímenes. E, desta maneira, a cidade foi salva.

  • A lei e as frutas

    No deserto, as frutas eram raras. Deus chamou um dos seus profetas, e disse: “cada pessoa só pode comer uma fruta por dia”.

    O costume foi obedecido por gerações, e a ecologia do local foi preservada. Como as frutas restantes davam sementes, outras árvores surgiram. Em breve, toda aquela região transformou-se num solo fértil, invejado pelas outras cidades.

    O povo, porém, continuava comendo uma fruta por dia – fiel à recomendação que um antigo profeta tinha passado aos seus ancestrais. Além do mais, não deixava que os habitantes das outras aldeias se aproveitassem da farta colheita que acontecia todos os anos.

    O resultado era um só: as frutas apodreciam no chão.

    Deus chamou um novo profeta e disse: “deixe que comam as frutas que queiram. E peça que dividam a fartura com seus vizinhos”.

    O profeta chegou na cidade com a nova mensagem. Mas terminou sendo apedrejado – já que o costume estava arraigado no coração e na mente de cada um dos habitantes.

    Com o tempo, os jovens da aldeia começaram a questionar aquele costume bárbaro. Mas, como a tradição dos mais velhos era intocável, eles resolveram afastar-se da religião. Assim, podiam comer quantas frutas queriam, e dar o restante para os que necessitavam de alimento.

    Na igreja local, só ficaram os que se achavam santos. Mas que, na verdade, eram pessoas incapazes de enxergar que o mundo se transforma, e que devemos nos transformar com ele.

  • No deserto de Mojave

    No deserto de Mojave, é frequente encontrarmos as famosas cidades-fantasma: construídas perto de minas de ouro, eram abandonadas quando todo o produto da terra tinha sido extraído. Haviam cumprido seu papel, e não tinham mais sentido.

    Quando passeamos por uma floresta, também vemos árvores que, uma vez cumprido seu papel, terminaram caindo.

    Mas, diferente das cidades-fantasma, o que aconteceu?

    Abriram espaço para que a luz penetrasse, fertilizaram o solo, e seus troncos estão cobertos de vegetação nova.

    A nossa velhice vai depender da maneira que vivemos o momento presente. Podemos terminar como uma cidade- fantasma, simplesmente abandonados. Ou então como uma generosa árvore, que continua a ser importante, mesmo depois de caída por terra.

  • Começando pelo início

    Um homem perguntou a al-Husayn: “o que devo fazer para ficar mais perto de Deus?”

    “Conte um segredo para Ele. E não deixe que ninguém neste mundo saiba qual foi o segredo. Desta maneira, um laço de confiança será estabelecido com a Divindade”.

    Mas o homem continuou: “só isto me ajudará a chegar perto?”

    “Estabeleça uma relação firme no começo de sua jornada espiritual. Reze. Também é importante ter força de vontade. E se for possível desfrutar um pouco de solidão, tanto melhor”.

    “Mas como chegar ao estágio ideal de comunicação com Ele?”

    “Já lhe expliquei tudo que precisava”, disse al-Husayn. “Mas você quer chegar ao final antes de começar, e isto não é possível”.

  • A pintura dos dois anjos

    No ano de 1476, dois homens conversam no interior de uma igreja medieval. Param por alguns minutos diante de um quadro que mostra dois anjos, de mãos dadas, descendo em direção a uma cidade.

    “Estamos vivendo o terror da peste bubônica”, comenta um deles. “Pessoas estão morrendo, não quero ver imagens de anjos”.

    “Esta pintura é sobre a peste”, diz o outro. “É uma representação da Lenda Áurea. O anjo vestido de vermelho é Lúcifer, o Maligno.  Repara como ele tem, preso ao cinto, um pequeno saco: ali dentro está a epidemia que tem devastado nossas vidas e as vidas de nossas famílias”.

    O homem olha a pintura com cuidado. Realmente, Lúcifer carrega uma pequena sacola; entretanto, o anjo que o conduz tem uma aparência serena, pacífica, iluminada.

    “Se Lúcifer traz a peste, quem é este outro que o leva pela mão?”

    “Este é o anjo do Senhor, o mensageiro do bem. Sem sua permissão, o mal jamais poderia se manifestar”.

    “O que está fazendo, então?”

    “Mostrando o local onde os homens devem ser purificados por uma tragédia”.

Autores

  • Paulo Coelho

    Imortal da Academia Brasileira de Letras e Mensageiro da Paz da ONU, autor do fenômeno literário “O Alquimista”, livro brasileiro mais vendido de todos os tempos.

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Imortal da Academia Brasileira de Letras e Mensageiro da Paz da ONU, autor do fenômeno literário “O Alquimista”, livro brasileiro mais vendido de todos os tempos.