Capa de “O mundo pós-ocidental – Potências emergentes e a nova ordem global”, de Oliver Stuenkel — Foto: Divulgação
O eixo do poder econômico, político e militar do planeta está se deslocando para o Oriente? Sim. Devemos nos preocupar com isso? Não. Estas são as premissas de “O mundo pós-ocidental – Potências emergentes e a nova ordem global”, do professor e analista de relações internacionais Oliver Stuenkel (Zahar, 256 pgs. R$ 69,90). Também autor de “BRICS e o futuro da ordem global”, Stuenkel está convencido de que os Estados Unidos não serão mais os líderes incontestáveis da ordem mundial nas próximas décadas; a própria centralidade do Ocidente – que ele chama de Ocidentocentrismo – será posta em xeque principalmente pela China, mas também pela Índia e outros países emergentes. Já está acontecendo.
Nesta entrevista, Stuenkel analisa os sinais de que o Ocidente já não está no centro do mundo, chamando a atenção para os aspectos positivos dessa mudança. “Com o poder distribuído de forma mais equilibrada, o mundo estará diante de uma oportunidade de fortalecer a cooperação e engajar mais vozes do que em qualquer outro momento na história humana”, afirma. Ele diz, ainda, que questões econômicas e comerciais sempre prevalecem sobre disputas ideológicas. E conclui: “Até os anos 90, políticos ao redor do mundo que queriam buscar culpados externos pelos problemas que seus países enfrentavam podiam culpar os Estados Unidos. No futuro, atirarão contra a China.”
O Ocidentocentrismo está mesmo vivendo seu ocaso? De que forma acontecimentos recentes como o Brexit ou a eleição de Donald Trump reforçam (ou não) essa tese?
Oliver Stuenkel: O Ocidente ainda se vê como centro do mundo, algo que há tempo já não corresponde à realidade, e o Ocidentocentrismo – inclusive aqui no Brasil – limita nossa capacidade de adaptação, de maneira pragmática, ao século 21, em que a Ásia é o centro do mundo. Tanto o Brexit como a ascensão de Trump precisam ser vistos no contexto desta transformação, que não será fácil para a Inglaterra e os Estados Unidos. São dois países que terão menos influência do que tiveram no passado. Hoje, nos Estados Unidos, por exemplo, qualquer político precisa defender que o século 21 será mais um "século americano" – algo pouco realista, considerando a distribuição demográfica e de poder econômico no mundo. Como a eleição de Trump e o Brexit tendem a dividir e fragilizar o Ocidente – a relação entre os Estados Unidos e a Europa enfrenta sua pior crise desde a Segunda Guerra – os dois eventos reduzem a influência do Ocidente em um mundo pós-ocidental.
Quais seriam as consequências positivas da ascensão da Ásia e do declínio do Ocidente para o planeta? E para o Brasil, em particular?
Stuenkel: A ordem global futura – provavelmente não mais sob domínio ocidental – costuma ser vista como caótica, desorientadora e perigosa. Muitos acreditam que nenhum país ou arranjo será capaz de manter a ordem global como fez o Ocidente. Essa avaliação também tende a distorcer de maneira profunda as últimas décadas sob liderança ocidental, caracterizando-as como um período pacífico, apesar dos inúmeros conflitos existentes. Guerras por procuração, instabilidade no Oriente Médio e conflitos sangrentos no Afeganistão, Vietnã e Coreia, assim como em muitos países africanos, explicam por que milhões de pessoas em todo o mundo não associam a ordem liberal liderada pelos Estados Unidos com paz e estabilidade.
Com o poder distribuído de forma mais equilibrada, o mundo estará diante de uma oportunidade de fortalecer a cooperação e engajar mais vozes do que em qualquer outro momento na história humana, a despeito do fato de que administrar tal sistema venha a ser uma tarefa muito mais complexa. Uma vantagem adicional também costuma ser negligenciada: o mundo pós-ocidental será – em grande medida em razão dos avanços econômicos do mundo em desenvolvimento – mais próspero, com níveis mais baixos de pobreza numa escala global, do que qualquer ordem anterior.
Qual será o impacto desse processo sobre o BRICS?
Stuenkel: O grupo BRICS – grupo composto pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – é um dos vários elementos que formam uma assim chamada “ordem paralela”, que de início vai complementar e um dia possivelmente desafiar as instituições internacionais de hoje. Essa ordem já está em construção; ela inclui, entre outras, instituições como o Novo Banco de Desenvolvimento liderado pelo BRICS e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, para complementar o Banco Mundial. Os novos impulsos políticos e institucionais virão cada vez mais da Ásia, e a China leva o grupo BRICS muito a sério. Independentemente da orientação ideológica de seu governo, qualquer país no mundo hoje – mesmo aqueles críticos a Pequim – precisa ter o conhecimento necessário para lidar com a China, que caminha para ser em breve o centro econômico do mundo. Com o grupo BRICS, o Brasil já tem a vantagem de ser parte de uma plataforma institucionalizada que facilita a adaptação a essa nova realidade. A importância geopolítica do bloco hoje é maior do que nunca, e a 11ª Cúpula dos BRICS, que ocorrerá em Brasília em novembro, é uma grande oportunidade para Brasil.
A eleição de Jair Bolsonaro e a política econômica sinalizada por Paulo Guedes favorecem o Brasil, nesse contexto? Por quê?
Stuenkel: Sem dúvida é importante que o Brasil aumente sua participação no comércio global, e a abertura é necessária para iniciar o processo de recuperação econômica do país. Em várias dimensões, o Brasil ainda é um dos países mais fechados do G20.
Ainda que em declínio, a ideologia de esquerda ainda é muito poderosa nos países da América Latina, como demonstra a persistência de governos populistas na Venezuela e outros países. O Brasil tem obstáculos ideológicos a superar? Quais?
Stuenkel: Orientações ideológicas parecem ter importância à primeira vista, mas no fundo são os temas comerciais e econômicos que importam. A Venezuela é o melhor exemplo: governos de esquerda na região tinham uma certa simpatia por Hugo Chávez, mas o que realmente explica sua influência na região foi o petróleo subsidiado que ofereceu a muitos países e o tratamento preferencial que deu a empresas brasileiras, que ganharam muito dinheiro na Venezuela. Outro exemplo é Evo Morales, presidente de esquerda que prestigiou Bolsonaro na posse. Apesar de diferenças ideológicas, Morales esteve lá porque precisa renegociar o contrato de gás com o Brasil em breve.
Não é preocupante que a China, o país que está na liderança desse processo, seja uma ditadura? O modelo chinês de capitalismo de Estado pode ser exportado para outros países? A democracia como valor fundamental não corre riscos, com esse deslocamento do poder econômico, político e militar mundial?
Stuenkel: Há preocupações legítimas quanto ao que um mundo com um Ocidente menos influente pode significar para o futuro da democracia e dos direitos humanos. Autocratas do mundo inteiro podem se mostrar cada vez mais indispostos a tolerar organizações financiadas sobretudo por europeus e estadunidenses que promovem abertamente a democracia no exterior, no contexto de um deslocamento global de poder das potências estabelecidas na direção de atores emergentes. Ao mesmo tempo, há pouca evidência, neste momento, de que a China tenha interesse em exportar sua ideologia para outros países. Diferente dos Estados Unidos, o governo chinês considera seu sistema único e não aplicável ao resto do mundo. Mesmo assim, países como o Brasil precisam pensar muito bem sobre como gerenciar sua dependência da China. Vários países ao redor do mundo – como a Austrália, por exemplo – estão desenvolvendo políticas sofisticadas que visam reduzir a influência chinesa nos seus assuntos domésticos considerados estratégicos. O primeiro passo é treinar uma elite nacional que conheça a China e fale chinês fluentemente para iniciar e articular um plano. No Brasil, infelizmente, ainda precisamos de muito mais especialistas para ajudar o governo, as empresas, a mídia e a sociedade civil a lidar com essa nova realidade.
Resumidamente, qual será o futuro do chamado “soft power” americano, nessa nova ordem global?
Stuenkel: Os Estados Unidos, mesmo quando deixarem de ser a maior economia do mundo, manterão uma grande influência cultural. Ao contrário do que muitos esperavam em 2016, o soft power estadunidense – ou seja, sua atratividade para observadores externos – permanece, em muitos aspectos, inalterado por Trump. De fato, em algumas questões, o presidente dos Estados Unidos tornou o país ainda mais atraente, pois o mundo percebe como o Judiciário, a sociedade civil, jornais e universidades resistem às tendências autoritárias do presidente americano. Ser a maior potência no mundo pode trazer vantagens, mas pouco indica que a qualidade de vida da população nos Estados Unidos, ou seu soft power, será negativamente afetada diante de um cenário em que a China, e mais tarde a Índia, se tornem as maiores economias. Cem anos atrás, a Inglaterra deixou de ser a potência global mais influente do mundo, e 50 anos mais tarde os britânicos foram obrigados a abrir mão das suas colônias. De fato, perderam muita influência geopolítica, mas praticamente mantiveram seu soft power. Em um mundo dominado pela Ásia, é possível que o soft power estadunidense aumente, pois sua imagem será menos associada ao seu projeto hegemônico que foi muitas vezes visto com ceticismo. Até os anos 90, políticos ao redor do mundo que queriam buscar culpados externos pelos problemas que seus países enfrentavam podiam culpar os Estados Unidos. No futuro, atirarão contra a China.
— Foto: Arte G1