A 'WhatsAppização' da vida
Lembro-me como se fosse hoje do dia em que um amigo aficionado por tecnologia veio correndo ao meu encontro para mostrar na tela de seu smartphone um recém-lançado aplicativo que, segundo o próprio, mudaria para sempre a minha vida. Exageros à parte, não foi necessário muito esforço para me convencer a dar uma chance ao simpático iconizinho verde, sobretudo considerando a ambiciosa proposta de seus criadores: estabelecer entre os contatos dos usuários, independente a qual operadora de telefonia estivessem vinculados, uma rede gratuita e ilimitada de troca de mensagens, que logo faria do SMS algo tão obsoleto quanto uma máquina de escrever.
Do alto de minha apurada sensibilidade para detectar tendências hegemônicas, tendo o cuidado de escolher as palavras adequadas para não jogar um balde de água fria travestido de racionalidade, sentenciei o que na ocasião me pareceu óbvio: “o conceito até que é bacana, mas, se meus amigos não usarem, não me serve de nada”. Três anos se passaram desde a cena descrita e nem é preciso mencionar que meu diagnóstico não poderia estar mais incorreto. Atualmente, o WhatsApp possui mais de 600 milhões de usuários cadastrados, cerca de 50 milhões destes apenas no Brasil, podendo ser encontrado em nada menos do que 74% dos smartphones em atividade, onde se incluem, sem sombra de dúvida, os aparelhos da totalidade de meus amigos e parentes.
Sua endêmica popularidade o transformou no único fenômeno passível de ser comparado ao Facebook que, não por acaso, o adquiriu por módicos US$ 19 bilhões no ano passado. Assim sendo, para onde quer que se olhe hoje, por mais improvável que seja o interlocutor ou o contexto, não se pode ignorar os fartos indícios de que estamos irremediavelmente imersos na Era WhatsApp, esta que possui como principal característica a disponibilização indefinida e compulsória à socialização. Sim, também achei a definição bonita, mas o que exatamente isso quer dizer? Pode ter certeza que você sabe muito bem. Basta olhar em volta e constatar que, desde que o WhatsApp foi alçado à condição de canal oficial de comunicação da espécie humana, nunca mais tivemos um segundo sequer de paz ou privacidade.
Isso ocorre porque, no afã de estimular a interação infinita entre você e seus contatos, o aplicativo acabou por instituir na vida moderna funcionalidades no mínimo indiscretas, que permitem à outra parte ter total visualização das suas ações durante uma conversa. Na prática, acabou-se o tempo do “não vi o que você disse porque não estava olhando o telefone” ou “engraçado, acho que não recebi essa mensagem!”, porque lá estão o ‘visto pela última vez em...’ e os dois ‘checks’ de confirmação de entrega da mensagem, para expor a fragilidade de sua argumentação furada e desmoralizá-lo por completo.
Como se isso já não parecesse inconveniente o bastante, o que dizer da dádiva que é se ver, de súbito, incluído naquele grupo criado pelo seu tio, contendo 37 integrantes da família se mandando ‘bom dia’ a partir das 6 da manhã de domingo e trocando ininterruptamente entre si mensagens de 2 palavras (isso quando não são vídeos de cunho político ou de contadores de piadas), te obrigando a desbloquear o telefone a cada 20 segundos para ler um comentário tipo “muito legal” ou “rsrsrsrs”? Com receio de causar uma crise sentimental sem precedentes ao manifestar o desejo de pular fora, sem ter outra alternativa a que recorrer, você desabilita as ‘notificações de grupo’, deixando de ter acesso também às mensagens dos demais grupos que efetivamente te interessam.
Ontem, o mesmo amigo que me apresentou o WhatsApp anos atrás compartilhou comigo uma informação que dá bem a ideia do que pode estar por vir; aparentemente, há relatos de usuários que descobriram fazer parte de grupos compostos por pessoas aleatórias, formados por gente disposta a bater papo com desconhecidos, um misto do extinto ‘Chat Roulette’ com a reencarnação daqueles números telefônicos para os quais pré-adolescentes dos anos 80 discavam a fim de acessar linhas cruzadas, algo que dificilmente alguém com menos de 30 anos conseguiria compreender.
Num cenário mais fatalista, num futuro não muito distante, é possível temer uma espécie de ‘WhatsAppização’ da vida, um tempo sombrio em que sua mãe receberia dois ‘checks’ assim que você pisasse em casa, que atendentes de telemarketing entrariam falando na sua orelha sem autorização prévia ou que o chefe pudesse puxar reuniões de equipe mesmo que você estivesse sentado no vaso do banheiro de casa. Ficou assustado com a perspectiva? Calma, não há razão para pânico, afinal, seu tio ainda nem ouviu falar em 4G...
*Imagem: Montagem/Bruno Medina