Segunda chance
Sem dúvida alguma, dentre as cicatrizes que carrego da infância, uma das que mais me doem é nunca ter ganho de presente dos meus pais um kit de modelismo. Talvez este imperdoável gap se deva simplesmente ao fato de que, na maioria dos casos, este é um hobby que passa de pai pra filho, sendo que o meu, em sua infância, estava mais para guerra de pedra com os moleques da rua do que para a meticulosa e solitária montagem em escala de aviões, tanques, navios, carros e afins.
Acontece que, do alto dos meus 8 anos, a única verdade que se punha em meu horizonte infanto-juvenil era a de que meus pais julgavam que eu não tinha ainda maturidade ou competência suficiente para me dedicar a uma tarefa que exigia tamanha capacidade de raciocínio espacial, disciplina e habilidade manual. De certo modo, naqueles idos, ter a destreza para dar conta de um daqueles complexos modelos hiper-realistas era o que diferenciava meninos de rapazes, visto que representava uma espécie de rito de passagem entre a tenra infância e o prenúncio da vida adulta.
Supostamente desacreditado pelas pessoas que melhor me conheciam no mundo, a mim restava apenas lidar com a frustração de observar as caixas em exibição nas lojas só pelo lado de fora, imaginando que ali dentro encontrava-se – fragmentada em diminutas partes – a chave para uma vida com menos restrições e mais autonomia. Os anos se passaram e, como não poderia deixar de ser, tornei-me adulto a despeito dos tais kits de modelismo. Sendo muito sincero, poderia até dizer que, ao longo das duas últimas décadas, eles foram fenecendo em minha memória emotiva, na medida em que também tornaram-se menos populares entre as crianças.
Este é, claro, um cenário bastante favorável para a superação de um trauma, pelo menos foi, até o dia em que a Volkswagen T1 Camper Van cruzou o meu caminho. A Kombi 1962 branca e vermelha, com portas que se abrem, teto expansível e interior reproduzido nos mínimos detalhes mexeu comigo de tal forma que só fui assimilar o que de fato significava adquiri-la quando já estava em casa. Ao abrir a caixa, entretanto, notei que não havia dentro dela chave de coisa alguma, mas sim 1.332 peças plásticas que me levaram imediatamente a concluir que deveria ter arrumado uma forma menos complicada de lavar minha honra.
Só para se ter uma ideia da cilada em que me meti, o modelo não é recomendável para menores de 16 anos, ou seja, o grau de dificuldade da montagem é compatível com a responsabilidade de se eleger um presidente! Então eis que lá fui eu, numa tarde chuvosa de sábado, encarar de peito aberto o oceano de bloquinhos multicoloridos sobre a mesa, tendo o manual de instruções como Bíblia e a convicção de que minha autoestima dali por diante estaria atrelada ao sucesso daquela empreitada.
Confesso que foi uma experiência catártica dar ordem aquele pequeno caos, testemunhando, tijolo por tijolo, o surgimento do meu troféu particular perdido na infância. Após 4 horas consecutivas de trabalho árduo, tendo a base estrutural da Kombi mais ou menos delineada, resolvi antecipar algumas etapas da montagem e colocar logo no lugar as quatro rodinhas, apenas para antever como seria o resultado final. Neste momento, fui tomando por um frio na espinha, mais precisamente ao constatar que as rodas dianteiras não cabiam no espaço que lhes era reservado. Então seria esse o trágico final da história? A prova cabal de que os kits de modelismo permaneceriam para mim como uma ferida aberta, o símbolo máximo da minha incompetência? Melhor seria transmutar aquilo logo numa fazendinha e enterrar de vez este fantasma do passado, pensei.
Nada disso. Dessa vez eu tinha ido longe demais para cogitar desistir; mesmo fragilizado pela perspectiva de ter cometido um erro fatal, fui buscar no fundo do poço a motivação necessária para folhear o manual ao inverso, refazendo passo a passo a montagem até identificar o ponto exato onde havia me enganado. Com a precisão de um cirurgião cerebral, retirei o eixo dianteiro procurando não impactar a parte superior, já montada, e desloquei-o um furinho para frente. E pensar que aquele mísero descuido poderia jogar tudo por terra...
Aliviado por estar de volta à estrada da redenção pessoal, ainda que ciente do longo trajeto que me resta percorrer, posso concluir que o episódio, até agora, serviu ao menos para me ensinar uma valorosa lição: assim como nos kits de modelismo, na vida também sempre há uma segunda chance.
*Foto: Bruno Medina