O buraco é 5 graus acima
Como é comum a todo início de ano, 2015 também chega de mansinho mostrando a sua cara, com aquele jeitão de primeira visita à casa da sogra, onde as duas partes – para não restar dúvidas, no caso, nós somos a sogra e 2015, o genro – se estudam e se cercam de gentilezas para evitar pisar no calo alheio e causar má impressão logo na largada.
Apesar de todo zelo, no entanto, nestes primeiros dias, nosso ilustre convidado não tem conseguido evitar a gafe de estar associado a uma desagradável peculiaridade sua que, até então, tem se traduzido como uma espécie de assinatura; para os mais pessimistas como eu, o prenúncio de um longo e tenebroso verão, este que já vem sendo chamado de “O Verão da Sensação Térmica”.
Sim, todos nós sabemos que esta época do ano pode ser particularmente quente em grande parte do Brasil e, a bem da verdade, nem mesmo a tal sensação térmica como fator de multiplicação de frio ou calor chega a representar uma novidade, mas, ao menos aqui no Rio, a impressão que dá é a de que nunca antes ela foi tão determinante em nossos destinos.
Posso até estar enganado, mas, vai ver que devido a precariedade dos instrumentos de medição, até bem pouco tempo 38°C era 38°C mesmo, não tinha muito o que inventar; agora, com essa nova moda, o pobre do sujeito tem dois desgostos, se espantar com a temperatura oficial e, depois, mais ainda com a sensação térmica.
Na prática, trata-se de um daqueles casos em que a ignorância parecia ser um santo remédio, afinal, de que me serve saber que um ser humano no aconchego de seu próprio lar pode estar sendo lentamente cozido na poltrona da sala a uma temperatura real de 48°C? Não só eu como muita gente nem sabia que os termômetros podiam chegar a esses patamares e, francamente, éramos mais felizes assim, acreditando, quando crianças, que a música “Rio 40 Graus” da Fernanda Abreu fora inspirada pelo ápice de calor que alguém poderia vir a sentir na vida.
No mais, acho que essa história de sensação térmica pra lá e pra cá acaba arranhando a credibilidade dos termômetros, que correm sério risco de se tornarem meros indicadores de um parâmetro incompleto que, por si só, não quer dizer nada. Por outro lado, não posso também deixar de constatar a irônica beleza que existe no fato desse conceito combinar tão bem com a nossa cultura, onde quase sempre o que prevalece é a informalidade e 2+2, às vezes, é 5.
Se há leis que pegam e outras não, o oficial e o paralelo, o “mas é só pra inglês ver”, o “faça o que eu digo, mas não o que eu faço”, por que não botar aí nessa lista a temperatura “do termômetro” e a “sensação térmica”, né? Pensando bem, essa aparente dissonância entre duas realidades distintas e complementares pode se revelar uma boa metáfora para traduzir uma série de situações do dia a dia.
Exemplificando: antes de chegar à festa, você manda um whatsapp para o amigo perguntando se ele acha que depois da meia noite pode rolar “uma sensação térmica” ou se vai ficar todo mundo “no termômetro” mesmo. Ou então, ao brigar com o marido, a esposa liga aflita para o filho e pergunta a “sensação térmica” da bronca do pai em comparação a “do termômetro”.
Não seria, portanto, nenhum absurdo imaginar que, no futuro, 2015 pode vir a ser lembrado por duas coisas especificamente: ter abrigado um verão quente pra cacete e, mais uma vez, ter nos relembrado de que o buraco é mesmo sempre mais embaixo, ou melhor, 5°C acima ...
*Foto: Nelson Antoine/Fotoarena/Estadão Conteúdo