As mentiras que nunca cansaremos de contar
No exercício de tentar recuperar alguma história curiosa do Natal na minha infância que desse pano para a manga de um bom post, cheguei a surpreendente conclusão de que não me recordo em absoluto da circunstância em que evidenciou-se para mim o fato de que Papai Noel não existia.
Por mais que nem todo mundo tenha tido o desprazer de identificar os traços familiares do rosto de um tio por trás da barba mal feita de algodão, de acordar de madrugada e testemunhar a própria mãe colocando os presentes em torno da árvore ou de ser vítima de um primo estraga prazeres em fase de autoafirmação, a verdade é que este costuma ser um marco significativo para muitos, na medida em que consiste em desvendar a primeira de várias mentiras que ao longo da vida pessoas queridas contarão para você – a segunda é “você é a criança mais inteligente que já conheci”.
Assim sendo, fiquei pensando cá com meus botões se eu não seria uma espécie de aberração, alguém que, diferentemente de todo o resto da civilização cristã, não sentiu nada em especial ao se dar conta de que um dos ícones mais incríveis da infância se tratava de uma grande farsa, ou, pelo contrário, se sou como a maioria das pessoas, que superaram o mito do Papai Noel sem muito alarde, no hiato entre um filme da Sessão da Tarde e uma partida de videogame.
Olhando para a mesma situação, agora sob a perspectiva dos meus filhos, percebo o privilégio que é poder embarcar na fantasia de que existe um velhinho bonzinho que passa o ano cercado de duendes no Polo Norte fabricando presentes para todas as crianças do planeta, os quais ele mesmo vai entregar pessoalmente na noite de Natal, à bordo de um trenó voador puxado por renas.
E basta um "ho, ho, ho" no hall do elevador, 3 batidas consistentes na porta e um saco de cetim vermelho cheio de presentes largado no chão pra sustentar perante aos potenciais desconfiados a história mais inverossímil que um dia se pode conceber, mas que, ainda assim, é passada adiante há centenas de anos, geração após geração.
Frente à evidência tão clara, não é preciso de muito para perceber que a tradição só se tornou viável porque, apesar de se direcionar a crianças, é entre nós, os adultos, que se respalda, possivelmente porque, através da alegria dos pequenos, revivemos a nossa própria, esta que se perdeu para sempre numa tarde qualquer, quando nem tínhamos ainda todos os dentes definitivos na boca.
É bem provável que hoje à noite na minha casa aconteça tudo do mesmo jeito, "ho, ho, ho" batidas na porta, saco de presentes no chão, e assim será por mais uns poucos anos, até o dia em que, orgulhosos, meus filhos virão me contar o que descobriram sobre Papai Noel. Se ainda assim, na iminência de ver a melhor parte da infância escapulindo pelos dedos deles, eu tiver o reflexo de negar, a tese será derrubada com os óbvios argumentos cabíveis, sem qualquer chance de réplica da minha parte.
Aí então a mim só caberá reconhecer a mentira deslavada, forjar um sorriso e dizer, da maneira mais convincente que eu puder, que eles são as crianças mais inteligentes que já conheci.
Sendo ou não criança, acreditando ou não em Papai Noel, feliz Natal para todos nós!
Foto: Bruno Medina, aos 5 anos, desconfiando que há algo de muito estranho no ar