Bem-vindo à roda
Provavelmente é difícil encontrar por aí alguém que discorde do fato de que os ancestrais e popularíssimos quadros televisivos de câmera escondida são bem mais engraçados para aqueles que os assistem do que para quem está sendo vítima da brincadeira. Afinal, deve ser possível contar nos dedos de uma única mão as pessoas que reagiriam com um largo sorriso ao se perceberem envolvidas numa espécie de teste comportamental não-consentido, em que suas ações e emoções estão sendo observadas e manipuladas por terceiros. E que tal seria descobrir que agora mesmo, em casa ou no trabalho, ainda que sem ter conhecimento disso, a cobaia pode estar sendo você?
Há algumas semanas, essa mastodôntica pulga instalou-se atrás da orelha de muitos usuários do Facebook, a partir da confirmação por parte dos responsáveis pela rede social de que cerca de 700 mil pessoas foram submetidas a um experimento secreto que suprimia de seus feeds conteúdos considerados positivos, para observar se isso os deixava menos felizes. Como se não bastasse, nesta segunda-feira foi a vez do OKCupid.com, um dos principais sites de namoro da web, admitir que sugeriam encontros entre perfis completamente incompatíveis, apenas para avaliar o quão bem funcionava a ferramenta que criaram:
“Para testar isso, pegávamos pares com afinidade em torno de 30% e dizíamos a eles que eram perfeitos um para o outro, exibindo uma afinidade de 90% (...) advinhem, pessoal: se vocês usam a internet, estão sujeitos em qualquer link, a qualquer momento, a experimentos desse tipo. É assim que funciona um website”, declarou, à queima roupa, Christian Rudder, co-fundador do site.
A despeito da já generalizada consciência de que nossos passos pela internet são monitorados, e que estes trajetos são compartilhados por alguns centavos com quem quiser pagar por eles, não seria exagero algum afirmar que, ao mentir deliberadamente para seus usuários, além de jogar por terra toda a credibilidade conquistada, estes sites migraram de práticas relacionadas à melhoria do serviço prestado para o que poderia ser considerado como fraude.
Pior ainda seria imaginar o que nos reserva um futuro em que testes involuntários se tornarem usuais; de acordo com um artigo que repercutia as declarações de Rudder, publicado ontem na versão online do jornal britânico "The Guardian", a perspectiva de um cenário pessimista para os próximos anos incluiria empresas especializadas em propagar duas versões de uma mesma notícia: a primeira, tendo como referência o que realmente foi apurado e, a segunda, construindo a história com base num algoritmo que levaria em consideração dados capturados do leitor para lhe apresentar textos, fotos e vídeos, escolhidos de acordo com a reação que se pretende obter dele.
Em outro contexto, lojas virtuais poderiam manipular a visualização de reviews positivos e negativos de clientes para alavancar a venda de seus produtos, ou mesmo ancorar o negócio de seus competidores. Ficcional demais? Então melhor pensar duas vezes. Ano passado, tornou-se pública a estratégia da Target, gigante do varejo norte-americano, que identificou um curioso padrão de compras entre jovens mulheres e passou a rastrear a aquisição de 25 itens específicos em seu site, estes que supostamente indicariam uma maior propensão a engravidar.
O caso veio à tona através de um homem da cidade de Minneapolis, que chegou a se queixar a respeito de e-mails enviados para sua filha contendo ofertas direcionadas a gestantes, o que classificou como um estímulo à gravidez na adolescência. Alguns meses depois, no entanto, constatou, estupefato, que a loja havia "previsto" o que ele próprio não conseguia enxergar: em breve seria avô.
A história é mais uma que se soma a outras tantas, e que não deixa dúvidas quanto ao fato de que grandes corporações já estão se beneficiando de novos métodos e instrumentos que expõem nossas privacidades e permitem capturar personalidades e vulnerabilidades com o propósito de tentar moldar ideias, desejos e sonhos. Toda vez que clicamos num mouse, mesmo que de maneira involuntária, estamos fornecendo o combustível que faz girar essa roda de atividades a que estamos presos, onde os ratos de laboratório, infelizmente, somos nós. A pergunta que fica é: de que maneira poderíamos nós fugir desta triste vocação?
Crédito da imagem: Lawrence Spencer