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  • Padrão BRASIL

    Pedro (centro) conheceu os australianos Andy e Anthony (os dois à esquerda) ao ajudá-los a habilitar um chip de celular, e foi convidado pelos estrangeiros para assistir a jogo com outros australianosDentro das arenas, uma enxurrada de gols – a melhor média desde o mítico Mundial de 82, hegemonia do futebol latino-americano frente aos precocemente eliminados campeões europeus, arquibancadas apinhadas mesmo em jogos pouco expressivos (e o melhor, sem vuvuzelas!), japoneses catando o próprio lixo ao sair, comemorações criativas que se transformam em "memes" instantâneos, Neymar inspirado, chapéu, gol de letra, gol contra, gol de peixinho, frangaço e até mordida.
     
    Fora das arenas, o maior evento em mídias sociais da história, número de ocorrências policiais abaixo das expectativas, brasileiros que se passam por estrangeiros para se darem bem com a mulherada, caravana de motor homes (com direito a churrasco e altinho argentino nas areias de Copacabana), jogadores nigerianos dando um tapa no visual na barbearia do posto de gasolina, banda da Polícia Militar tocando com holandeses bêbados, porteiro compartilhando a TV do hall de entrada do prédio com chilenos sem ingresso na calçada, e muito mais.
     
    A nós, que enchíamos a boca para disparar o autodepreciativo bordão “imagina na Copa”, a materialização do que Nelson Rodrigues sabiamente definiu como complexo de vira-lata – “o brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem”-, resta apenas reconhecer que, até agora, o balanço do evento não só é positivo como supera em muito as expectativas. Ora, se não temos transporte público ou sinalização urbana eficientes, ao menos existe sempre alguém por perto disposto a socorrer um gringo confuso; se as estruturas dos estádios e aeroportos ficaram aquém do desejado, com algum jogo de cintura, os obstáculos têm sido contornados sem comprometer a experiência do visitante; se há filas, burocracia, falta de planejamento ou de informação, há também sorrisos e boa vontade para atenuar o desconforto causado.
     
    Sim, é bem verdade que o tal "padrão FIFA" – esta espécie de bicho-papão nutrido pela descrença generalizada em nossa capacidade de sediar uma Copa do Mundo que, ao longo dos últimos anos, açoitou o sonho de pertencer à elite das nações – nem chegou perto de ser atingido, mas, ainda assim, quem parece de fato estar se importando com isso? De acordo com boa parte da imprensa internacional, a despeito de todas as reconhecíveis falhas na organização, dos bilhões superfaturados e dos justificáveis protestos, esta tem tudo para ser a melhor de todas as Copas, e não duvidem que isso se deve única e exclusivamente ao povo brasileiro.
     
    Ainda que sem saber, como, aliás, é característico do nosso complexo de vira-lata, é possível que neste exato momento estejamos ensinando ao mundo uma valorosa lição: a de que uma grande Copa não se faz apenas com metrôs que chegam à porta de estádios e aeroportos que funcionam com a precisão de relógios suíços, mas sim com alegria, cordialidade e uma boa dose de improviso. Afinal, é ou não é esse jeitão de primeiro convidado a desatar o nó na gravata e ficar descalço no casamento, em outras palavras, o lado bom do famigerado jeitinho brasileiro, o que tem feito realmente a diferença?
     
    Pois que daqui em diante, ao invés de Padrão FIFA, os preparativos para as próximas Copas sejam orientados pelo Padrão BRASIL: para começar, saem Joseph Blatter e Jérôme Valcke, entram Romário e Zeca Pagodinho. Na lanchonete dos estádios, tapioca e caldo de cana, e não cachorro-quente e refrigerante superfaturados. Carona de moto-táxi em substituição a metrô eficiente, churrasco na laje com show da Anitta ao invés de FIFA Fun Fest e colchonete no chão da rodoviária no lugar de rede de hotéis 4 estrelas (mais barato e melhor para fazer amizade).
     
    Posso até imaginar uma hipotética aula de Métodos Caóticos para Organização de Multidões ministradas pelo Seu Jorge, onde um apreensivo aluno alemão faria a inevitável pergunta: mas e se isso tudo der errado, qual seria o plano B? Nas palavras do professor: “se tudo der errado, a gente chama o Neymar”.

  • Uma 'ola' pela metade no país do não-futebol

    Torcedores mexicanos em São Francisco

    Quando se nasce no lugar unanimemente conhecido como “o” país do futebol que, por precisos 64 anos, amargou a espera para de novo sediar uma Copa do Mundo – esta que vem sendo apontada por muitos como uma das melhores de todos os tempos –, mas, por um acaso do destino, nesta mesma ocasião, você se encontra num dos poucos países em que o esporte bretão não é soberano ou popular, o único consolo possível é encontrar um bar com cerveja, comida e TV decentes para assistir aos jogos do Brasil com o mínimo de dignidade.

    E foi justo isso que fiz quando, por volta de meio-dia, adentrei o Golden Gate Bar, bem no centro de São Francisco, certo de que o local deve conhecer dias mais gloriosos durante as temporadas da NBA ou da NFL.

    Sendo um pouco mais específico, numa casa que, seguramente, comporta umas 150 pessoas, havia 17 (eu contei), sendo 10 mexicanos, 4 brasileiros (já me incluindo), e 3 americanos, sem considerar, é claro, o staff do bar, pra não contaminar a amostragem estatística. Pouco antes de a partida começar, assim como no Castelão, as torcidas rivais buscaram formar seus redutos em sofás opostos; do nosso lado, infelizmente, o contingente não era promissor, pois, para apoiar a seleção canarinho, havia apenas eu, um rapaz que estuda por aqui, a mãe, que provavelmente veio visitá-lo, e um senhor careca e conversador que, pelo sotaque, nem brasileiro era.

    Bola rolando e já se via que o negócio ia ser tenso: angustiado, eu jogava ao vento comentários do tipo “não adianta cruzar, tem que entrar na área com a bola dominada” ou “o que que cê tá fazendo aí, Marcelo? Volta!”, e a mãe do estudante retrucava com máximas típicas de quem só assiste a futebol de 4 em 4 anos, tais como “tem que correr mais, pessoal” ou “misericórdia, assim não sai gol nenhum”. O estudante parecia mais interessado em ligar pros amigos no Brasil para bater papo e, eventualmente, comentar um ou outro lance do jogo, enquanto o senhor careca, de maneira acintosa, tentava se engraçar pra cima da mãe dele.

    Na trincheira inimiga, gritinhos coordenados com palmas ritmadas e tentativas tímidas de fazer uma “ola”, que, por falta de quórum, nunca passava do meio do sofá, parando sempre no quarto ou quinto cara. Lá pelas tantas, ainda no primeiro tempo, o jogo esquentou e o curioso foi notar que a nossa torcida se exaltava com os lances ofensivos, enquanto os mexicanos vibravam mesmo quando a defesa deles fazia seu papel. Quanto aos americanos presentes, a sensação era a de que assistiam a um daqueles programas do National Geographic, afinal, as reações daqueles latinos tresloucados e apaixonados por futebol lhes pareciam tão pitorescas e engraçadas que o que se dava em campo não tinha de fato nenhuma relevância.

    No canto superior da tela, o tempo corria impiedoso contra o anfitrião da Copa, sem dúvida um dos times favoritos que, àquela altura, já dava pinta de que iria tropeçar logo no segundo degrau da competição. Nessas horas, meus amigos, confesso que faz falta um Galvão içando nosso patriotismo lá do fundo do poço, mantendo acesa a chama da esperança de um golzinho que seja, nos lembrando de que “tem que ser com sofrimento”, ou mesmo perguntando ao Arnaldo César Coelho por que quando o juiz dá 1 minuto de acréscimo no primeiro tempo, dá 3 no segundo (não sei se dessa vez ele chegou a tecer esse comentário, mas reparem que foi o que realmente aconteceu).

    O 0 a 0 persistia no placar e a vaca estava irremediavelmente condenada ao brejo, mas pelo menos foi bonito ver nossa canhestra e famigerada torcida toda de pé unida em frente ao telão, lamentando a má sorte por uma daquelas 15 bolas que deveriam ter entrado, mas não entraram porque havia um polvo cabeludo debaixo da trave deles. Saldo final? O telão pareceu pequeno, a comida insossa, a cerveja cara e não tão gelada, e a seleção um pouco mais distante do sonho do hexa. Como se não bastasse a celebração dos mexicanos que estavam no bar, no caminho de volta pra casa, ainda foi preciso aguentar a zoação do lutador mascarado. Reconheçamos que, se este jogo soou como um luta para os brasileiros, para nossos adversários, o empate teve sabor de vitória. 

  • Vai ter cabra

    instante posterior
    No último domingo, um Boeing, que usualmente acomoda 180 passageiros, decolou do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro rumo a Charlotte, nos Estados Unidos, levando apenas 25 pessoas, dentre as quais se incluía este que vos escreve. “Pode ficar com uma fileira inteira para você, aliás, se quiser, pode ficar até com duas”, disse a aeromoça em tom de brincadeira e contida euforia, provavelmente motivada pela percepção de que aquela seria uma das noites menos atribuladas de toda a sua carreira. Quando outro passageiro indagou-a sobre a estranha razão por trás de um número tão reduzido de viajantes, a resposta estava na ponta da língua: “o avião veio pra cá abarrotado de gente, mas parece que só vocês querem ir embora do lugar onde todo mundo deseja estar neste momento”.
     
    Pois é, meus amigos, como poderia eu imaginar que, após 6 intermináveis décadas de espera, quando enfim chegasse o tão aguardado dia em que o país do futebol voltaria a se tornar o anfitrião da competição que o consagrou como tal, ao invés de em meio à balburdia inerente à exacerbação desta que é sem dúvida a maior dentre todas as paixões nacionais, eu estaria rumando para o equivalente ao Polo Norte do esporte bretão? Em termos de comparação, a sensação é muito semelhante a quando se adota a estratégia de voltar mais cedo do feriadão só para fugir do trânsito, tendo pela frente o caminho desempedido e contemplando, pelo espelho retrovisor, a resiliência de quem preferiu engarrafar a deixar de aproveitar até o último minuto. Se por um lado há o orgulho fútil de chegar mais cedo em casa, por outro, há a frustração provinda da certeza de ter partido antes da festa terminar.
     
    Não pensem, no entanto, que está foi uma escolha consciente, afinal como alguém que nasceu e foi criado em Copacabana, uma espécie de Babilônia da era moderna, bairro onde é réveillon todos os dias, optaria por perder o esplendoroso espetáculo propiciado por uma Copa do Mundo realizada no Brasil? Confesso que foi de partir o coração fazer as malas assistindo na TV índios Pataxós cantando parabéns para Klose, o veterano ponta de lança alemão. Na lanchonete perto de casa (moro nas cercanias do Corcovado), constatar através do cardápio que ali tinha “cheese mine sandwich” e, a caminho do aeroporto, cruzar com um Corsa coberto com uma bandeira do Uruguai e recheado por quatro marmanjos que buzinavam e batucavam um candombe na lataria do carro.
     
    Já em solo americano, tomei conhecimento da existência da cabra Dolly de Petrolina, que, segundo o próprio dono, tem tudo para tomar o posto que um dia pertenceu ao finado polvo Paul, aquele que previa sem enganos os resultados dos jogos. Como se pode notar, os aspectos citados não são meros indícios de que vai sim ter Copa, mas também de que as peculiaridades de nosso povo propiciarão uma das mais pitorescas e imprevisíveis que já houve. É claro que nem por isso devemos negligenciar a legitimidade das reivindicações daqueles que aproveitam os holofotes do evento para protestar por suas causas, ou mesmo que a maioria das obras de mobilidade não saíram do papel, e que os estádios custaram o dobro do que deveriam sem que ao menos houvesse clareza quanto ao legado que deixarão à população, mas fato é que, querendo ou não, apesar da truculenta prepotência do padrão FIFA, a Copa está aí, na cara do gol, e cabe a nós definir se tudo terá ou não sido em vão.
     
    Agora mesmo, enquanto a meninada fecha ruas e cobra pedágio para grafitar um Neymar irreconhecível no asfalto e pintar o meio-fio da calçada de verde e amarelo, estou aqui, na terra do beisebol, tentado desesperadamente reunir um punhado de latinos para formar um quórum sufuciente para exigir, apesar da potencial oposição dos bêbados locais, que a TV do bar amanhã à tarde esteja sintonizada no jogo de abertura.
     
    Então você aí, que nesse instante ainda hesita sobre se pega bem ou não comemorar a vitória de 3x1 sobre a Croácia – o prognóstico é da cabra Dolly –, pense em todos que como eu estão distantes da pátria mãe e adorariam, no momento de um gol da seleção, ouvir o toque de um cornetão desafinado e receber, de um desconhecido que fosse, um abraço. Pode até ser mesmo que o aspecto político se sobreponha à celebração, e que nas ruas, nas reuniões nas casas dos amigos e nos botequins, não vá ter Copa, mas uma coisa ao menos eu garanto: cabra, isso com certeza vai ter... Dolly tô contigo rumo ao hexa.

    (Foto: Amanda Lima/Globoesporte.com)

  • O príncipe e o mendigo

    Cadeado

    Ficar trancado do lado de fora de casa, quem nunca? Pois foi o que me aconteceu nesse último final de semana, na infeliz ocasião em que resolvi levar para fora duas sacolinhas de lixo sem ter a chave no bolso. Confirmando as estatísticas que indicam que o momento mais perigoso de uma viagem consiste em quando o motorista relaxa ao perceber que se aproxima do destino final, eu também não considerava o risco à espreita no percurso de aproximadamente 20 metros que separam a lixeira, dentro da minha cozinha, do ponto de coleta de lixo, do outro lado da rua. A bem da verdade, seria um sábado à tarde como outro qualquer, fadado ao esquecimento, não fosse por aquele vento perverso – um que nunca antes havia dado o ar de sua graça, diga-se – que numa só lufada bateu a porta de maneira impiedosa, sem me oferecer qualquer chance de resistência.

    Reparem que, num instante, eu era o senhor absoluto da situação, um príncipe em seu próprio castelo, que apenas deixou por uns segundos seu trono (poltrona em frente à TV), onde desfrutava de merecido descanso, para dedicar-se à banal porém necessária tarefa de manter sua propriedade em dia com a limpeza. Ao passar por aquele portal, no entanto, como num passe de mágica de uma feiticeira má, o príncipe tornou-se mendigo; desprovido de coroa e cetro (carteira e celular), objetos que o definem e que são imprescindíveis à sua existência, o príncipe aqui foi literalmente atirado na sarjeta, sem um tostão no bolso, trajando chinelos, bermudas e camiseta de bloco de Carnaval.

    Em circunstâncias como essas, a primeira coisa que nos ocorre, claro, é pedir ajuda a um ente próximo, certo? Bastaria então arrumar um telefone e ligar para algum amigo ou parente, e em poucos minutos, essa caridosa alma viria ao meu socorro, trazendo a solução na forma de chave reserva ou de chaveiro profissional. Poucas são as situações que hoje em dia evidenciam nossa visceral dependência da tecnologia, afinal, como entender o mundo sem ela se ela está em todo lugar?Portanto imaginem qual não foi minha surpresa ao constatar que o plano de resgate elaborado já havia ido por água abaixo antes mesmo de ter sido posto em prática: não havia como pedir ajuda a quem quer que fosse, visto que não sei mais de cabeça o telefone de ninguém. Vou repetir, caso não tenha ficado claro o suficiente: sem poder contar com a providencial assistência deste genial e ao mesmo tempo diabólico aparelho que levamos no bolso, que centraliza todos os aspectos essenciais não só da minha como de tantas outras vidas, eu não conseguiria sequer falar com a minha mãe!

    Por sorte, além do telefone de uma empresa de dedetização e dos classificados do jornal 'O Globo' – repetidos como mantras há anos em suas respectivas propagandas – restava um último número anotado a lápis dentro da gaveta do cérebro, antes reservada para armazenar contatos telefônicos, mas agora, provavelmente, a serviço de registrar as dezenas de senhas e logins que controlam nosso acesso a todas as coisas. Era o telefone fixo dos meus pais, da casa em que por tantos anos morei, o mesmo número desde 1989, um verdadeiro porto seguro neste mundo em que tudo muda constantemente. Do outro lado da linha atendeu meu irmão, que não sabia o paradeiro da chave extra da minha casa, mas que tinha certeza de que meus pais almoçavam naquele restaurante de sempre, em Ipanema. Que outra alternativa me restava senão entrar num táxi e ir pra lá, torcendo muito para que, além de realmente estarem onde eu pensava, tivessem levado a minha chave e também algum dinheiro a mais para pagar a corrida, e assim evitar que eu apanhasse do taxista.

    A caminho do lugar, tive tempo suficiente para refletir sobre a estranha sensação de ter sido expulso da minha própria vida: eu não podia voltar para casa, não dispunha de dinheiro ou documentos e sequer tinha como entrar em contato com as pessoas que deveriam me ajudar. Para encurtar a história, tudo deu certo e, em pouco mais de uma horam, eu já estava de volta ao meu castelo, procurando no Google o telefone de um chaveiro 24 horas para ter anotado na carteira e compartilhando por mensagens o enfadonho incidente. Moral da história? Esqueça a senha do Facebook, melhor guardar na sua memória o telefone das pessoas que você ama. Ah, e quando entrar num táxi sem ter como pagar, certifique-se de que você tem condições mínimas para correr ou encarar o motorista...

    (Foto: Divulgação)

  • Uma receita para amar as segundas

    Bruno medinaJá pararam para pensar que, desde o surgimento da humanidade até os dias de hoje, eu, você ou qualquer habitante que viveu ou viverá neste planeta tínhamos e teremos para sempre nossas existências regidas pelos mesmíssimos parâmetros? Os movimentos de rotação e de translação da Terra, determinando a oscilação entre dia e noite e as estações do ano, as fases da lua e sua influência nas marés – há quem garanta que nos ciclos menstruais, no crescimento dos cabelos e na transformação de lobisomens também –, as constelações, o norte magnético, e por aí vai. Fora dessa lista, resta ainda um último parâmetro, talvez o mais importante balizador de nossas rotinas, que, apesar de não poder ser classificado como um fenômeno natural, destaca-se como referência máxima no que tange à divisão e à passagem do tempo em nossa sociedade: a semana.
     
    Você, que desde o berço aprendeu a amar as noites de sexta e odiar as manhãs de segunda só porque sábado é dia de acordar tarde e domingo de dormir cedo, saiba que, ao longo dos séculos, o período que definia a duração de uma semana, pasmem, já variou entre 3 e 10 dias. Para encurtar uma história longa, foi só a partir da expansão do Cristianismo no século 4 que passou-se a considerar os 6 dias de trabalho e 1 de descanso como padrão universal, isso porque, como quase todo mundo sabe, de acordo com a Bíblia, este foi o cronograma adotado também por Deus ao criar o mundo. Crenças religiosas à parte, fato é que da Gênese pra cá muita coisa mudou, afinal naquela época não havia internet banking, os shoppings não abriam aos domingos e ninguém achava normal receber e-mail do chefe num sábado à tarde.
     
    Mas se o advento da tecnologia aponta para um futuro nada distante em que a virtualização do trabalho confundirá ainda mais a tênue fronteira que atualmente separa lazer e obrigação, qual o propósito de termos nossas vidas orquestradas por um ciclo tão impositivo quanto arbitrário? Não seria a hora de abolir o conceito de semana e encontrar um jeito mais justo e democrático de estruturar o tempo? Eis a polêmica questão lançada na edição virtual da revista "Slate" desta semana. De acordo com Ben Schreckinger, escritor e autor do artigo, a noção de horário comercial, tão fortemente estabelecida no século passado, perdeu um tanto do sentido, visto que os avanços alcançados na automação de processos, na computação e nas telecomunicações relativizaram a extensão dos dias e, consequentemente, o prazo que hoje delimita uma semana.
     
    Supondo que de fato conseguíssemos nos libertar das amarras estabelecidas por um hábito tão arraigado, seria mesmo possível repensar a semana de 7 dias? Sugestão: e se ela fosse constituída por 4 blocos que intercalassem 2 dias de trabalho e 2 de descanso? Ou ainda se fossem 4 dias de trabalho e 3 de descanso? Melhor: que tal 1 dia de trabalho e 6 de descanso?? Por mais que pareça loucura a ideia de redefinir o formato de uma semana, cabe registrar que já existe uma corrente de pensadores defendendo a flexibilização da carga horária e do conceito de "dias úteis", motivados, sobretudo, pelas restrições de mobilidade que fazem padecer as populações das grandes metrópoles. Aposto que muita gente no Rio e em São Paulo ao menos consideraria trabalhar sábado e domingo e folgar no meio da semana, apenas para fugir do trânsito pavoroso que enfrentam todos os dias.
     
    Agora, imaginem que doideira se cada um determinasse quando seria seu próprio final de semana? Provavelmente passaria a ser usual ir num casamento na terça e, na quarta, emendar com um dia na praia, deixando o dentista para o domingo. Frases como "o sábado dele é na segunda" ou "meus filhos estudam de sexta a terça" seriam comuns, o que nos dá a dimensão do empenho que iria exigir tentar conciliar agendas com quem quer que fosse para eventuais compromissos.
     
    Bom, não é preciso pensar muito antes de concluir que, infelizmente, a semana de 7 dias ainda permanecerá por muito tempo como um mal necessário. Por mais que não nos sintamos representados por ela, fato é que, na ausência de uma solução melhor, assim como o Garfield, vamos ter que continuar odiando as segundas...

  • Sabe Game of Thrones? Eu não.

    Game of thrones

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     


    Essa semana, você, leitor assíduo que há 7 anos acompanha o blog, ao invés de encontrar neste espaço uma crônica irreverente sobre algum aspecto peculiar do cotidiano – como gosto de acreditar que tornou-se costume ao longo de todo esse tempo – será contemplado com uma importante confissão, que agora se faz necessária para que minha vida possa seguir adiante. Lá vai:

    Eu não sei nada a respeito da série "Game of Thrones".

    Com isso, gostaria de esclarecer, sobretudo aos amigos e parentes mais próximos, que não conheço nenhum dos personagens ou as alianças e conflitos que os unem ou separam, nem as particularidades que fazem deles bons, maus, mais ou menos importantes dentro da história, e nem sequer o que na prática representa esse tal "jogo de tronos" a que o título se refere.
     
    Sendo completamente transparente, toda a informação que possuo sobre o programa se restringe ao que consegui pescar a partir de alguns minutos que assisti de um episódio num voo entre Roma e Rio durante minhas últimas férias. Na ocasião, alguém havia sido capturado por outro alguém, que fazia menção a decepar o pênis do prisioneiro e servir ao próprio como refeição, mas acabei dormindo nessa parte e, portanto, não saberia dizer ao certo se a ameaça se cumpriu.

    A esse fragmento macabro e desconexo, somam-se algumas fotos de uma suposta exposição que meu irmão postou no Facebook, primeiro sentado num trono composto de espadas e lanças, depois, abraçado a um urso gigante de cera com ar ameaçador. Para encerrar, concluo que as mortes devem ser frequentes e abundantes, uma vez que me deparei num site qualquer com uma espécie de jogo em que era possível apostar no próximo personagem a bater as botas, literalmente.
     
    Por favor, não confunda minha ignorância confessa com a atitude arrogante adotada por aquele tipo de pessoa que adora ostentar que não possui TV em casa ou que nunca ouviu falar em Valesca Popozuda. Na verdade, não me orgulho em nada do referido fato, aliás, muito pelo contrário, e se o reconheço em público é apenas pelo desejo de solidarizar-me com quem se encontra na mesma condição. Refiro-me a você, que tem se sentido a cada dia mais excluído das conversas no mesão do restaurante por quilo durante o almoço com a turma da firma, ou que é vítima diária de bullying por parte do namorado porque não sabe quem é Tyrion Lannister (também não sei, mas é o primeiro nome que aparece no Wikipédia).

    Se isso serve como desculpa, minha insistência em permanecer alheio a tudo que se refere a "Game of Thrones" se respalda na esperança de um dia tomar coragem para mergulhar de cabeça em mais uma série que, ao que tudo indica, irá tomar bastante do meu tempo e atenção. Enquanto isso não acontece, permaneço inerte como o viajante que não consegue iniciar sua jornada porque, mesmo antes de pôr os pés na estrada, se dá conta da extensão do caminho que tem a sua frente.

    Nesse instante, acabo de constatar que esse texto potencialmente me qualifica como alvo preferencial de uma legião de adoradores da série, que podem se sentir motivados a me convencer de que a hesitação em me jogar de vez nessa fabulosa aventura medieval está me privando de conhecer uma das obras televisivas mais envolventes que já foram produzidas. Pessoal, agradeço de coração a boa intenção de vocês, mesmo, mas, por ora, escolho permanecer distante de Westeros; sou só eu ou alguém mais também acha que a perversidade do jogo político e a brutalidade dos assassinatos que têm sido vistos por aí supera qualquer ficção?

Sobre a página

Bruno Medina é músico da banda Los Hermanos e escritor nas horas vagas. Nascido no Rio de Janeiro, formou-se em comunicação pela PUC-RJ, mas a música nunca permitiu que chegasse ao mercado publicitário. Começou a tocar piano e escrever histórias ainda criança, sendo que as duas aptidões o acompanham desde então.