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  • Presente de grego

    Bonno - presente de grego“De graça, até injeção na testa” é o que diz um conhecido provérbio que, não sei se é só impressão minha, parece soar menos verdadeiro a cada dia; que o diga o U2, banda de inquestionável prestígio, com reconhecíveis serviços prestados à música pop em seus 38 anos de existência, que vem testemunhando um surpreendente revés na estratégia comercial adotada para lançar seu mais recente álbum, “Songs of Innocence”.
     
    Para quem ainda não sabe a que me refiro, no final da semana passada, o veterano grupo irlandês reviveu sua antiga parceria com a Apple ao protagonizar uma ousada e controversa ação de marketing da marca, esta que assegurou aos cerca de 800 milhões de usuários do iTunes a oportunidade de terem o novo disco do U2 adicionado a suas bibliotecas sem pagar nada por isso.

    Bom, o que na teoria parecia ser uma grande ideia, a bem dizer, uma daquelas conjunturas que os americanos definiriam como “win-win situation”, na prática revelou-se, se não um legítimo tiro no pé, ao menos um susto que os publicitários encarregados pela inusitada campanha vão custar um tanto a esquecer.
     
    Após assinarem o contrato a partir do qual, dizem as más línguas, teriam recebido US$ 100 milhões para licenciar gratuitamente o álbum e participar de algumas peças publicitárias, ao que tudo indica, o U2 só esqueceu de combinar com os usuários do aplicativo que a eles caberia aceitar de bom grado em sua lista de músicas um disco que não escolheram ter.

    A bem da verdade, segundo dados oficiais, até o presente momento menos de 5% dos presenteados ouviram as músicas de “Songs of Innocence”, o que, apesar de representar números bastante mais expressivos do que as vendas alcançadas pelos últimos álbuns da banda, não exatamente configura a empreitada como um sucesso arrebatador.
     
    Aliás, basta uma busca despretensiosa no Google para constatar que muitos usuários do iTunes estão inconformados com o que classificaram como uma invasão de suas privacidades, uma vez que nunca foram consultados quanto ao conteúdo ter sido arbitrariamente instalado em seus telefones e computadores. Muitos se perguntam se não seria mais razoável – e democrático – fornecer um link de acesso ao disco, a partir do qual seria possível baixá-lo, mas apenas para quem assim o quisesse.

    Foi, sem dúvida, a arrogância e a petulância demonstradas pela Apple ao supor que conhecia o gosto de seus consumidores o que mais os enfureceu, tanto que a marca, em seguida, se viu pressionada a disponibilizar um tutorial que ensina a desinstalar o álbum.
     
    Sinal dos tempos. Talvez o mais interessante dessa história toda seja mesmo constatar como a oferta, de tão generosa e abrangente, transformou o pretenso presente num objeto sem valor, mais próximo de um boné promocional, destes que são distribuídos num fim de semana de sol na praia, do que do valoroso trabalho musical de uma banda consagrada mundialmente, talhado em estúdio ao longo de 5 anos.

    A aparvalhada iniciativa entra com louvor para a galeria que reúne tentativas frustradas de redefinir os parâmetros do consumo musical na Era Pós-Napster, e, de certa maneira, sugere a reflexão a respeito de como a música em si, enquanto obra de arte, deixou de ser o elemento essencial da experiência, perdendo relevância para o que de fato parece importar: a extensão numérica da coleção ou as peculiaridades do dispositivo que a armazena. 
     
    É, U2, dava pra ter ficado sem essa...

    *Foto: Montagem/Bruno Medina

  • Na hora certa?

    Apple Watch


    Após as já habituais doses cavalares de suspense, ontem teve fim, enfim, o martírio dos aficionados por tecnologia: em seu tradicional evento anual de lançamento – agora liderado por Tim Cook – a Apple apresentou ao mundo o aguardadíssimo Apple Watch, espécie de “computador de pulso” que marca o debut da empresa fundada por Steve Jobs na seara dos wearable devices (os equipamentos que vestimos). Nessa recriação, digamos, pós-modernista, a clássica e simplória concepção vislumbrada por Santos Dumont, de um marcador do tempo que pudesse ser carregado no braço em vez de no bolso, e que se manteve praticamente inalterada desde 1904, como não poderia deixar de ser, foi em muito superada.

    Isso porque, além de mostrar as horas, o Apple Watch permite receber e responder a mensagens, ouvir músicas, visualizar mapas e calendários, atender ligações telefônicas, acompanhar a previsão do tempo, entre outros aspectos que também o transformam no companheiro ideal para quem gosta de praticar exercícios. Como pontos fracos, podem ser citados os emoticons animados – e horrendos – e a estranha funcionalidade que permite compartilhar seus batimentos cardíacos com alguém. A não ser que haja suspeita de infarto, não vejo muito porque alguém iria querer usar isso...

    A partir do início de 2015, o dispositivo poderá ser encontrado nas lojas em 3 versões: a tradicional, a esportiva, com pulseiras de cores extravagantes e mais resistentes, e a Watch Edition, em ouro 18 quilates e direcionada a um público mais sofisticado. Merece destaque a opção dos designers da Apple por incorporar o botão giratório lateral – comumente encontrado nos modelos de pulso analógicos – como a principal interface de controle do gadget, comprovando a máxima que diz que modernidade é estar um passo a frente ou dois atrás.

    Curioso, no entanto, é notar a perspicaz estratégia comercial evidenciada no evento de ontem, quando foram lançados, numa mesma ocasião, o Apple Watch, dispositivo portátil que na prática elimina a necessidade de se puxar o telefone do bolso, e o iPhone 6 Plus, com seu display de 5,5 polegadas, que, de tão grande, basicamente não cabe em bolso algum. De certo modo, eis que aí está uma dupla perfeita (e um promissor case de venda casada).

    A partir das primeiras resenhas disponibilizadas online, é possível afirmar que o mercado foi, de maneira geral, receptivo à chegada do Apple Watch, com especial destaque para o fato dele ter sido considerado bem mais bonito do que seus concorrentes diretos, muito embora haja rumores de que seu design foi, na verdade, inspirado no relógio dos Power Rangers.  

    Meme do Apple Watch Aqui em casa, ao contrário, pairou no ar uma certa decepção, motivada pela sensação de retrocesso, uma vez que, há muitos anos, optei por deixar de usar relógios justo ao ter me dado conta de que os telefones podiam exercer a mesma função sem que eu tivesse que carregar constantemente um objeto amarrado no pulso. Pelo visto, não sou só eu que penso assim, afinal o próprio Steve Wozniak, co-fundador da Apple, revelou em recente entrevista seu ceticismo a respeito das pessoas quererem de fato comprar smartwatches. Soma-se a isso a falta de detalhes quanto à duração da bateria o que, de acordo com especialistas, sem dúvida indica que a autonomia não é lá essas coisas.

    No mais, fica a impressão de que o Apple Watch nada mais é do que o bom e velho iPhone, só que em versão menorzinha – o que pode ser conferido a partir dos incontáveis memes que já circulam por aí – e só confirma a determinação da marca de testar a capacidade de seus fiéis entusiastas comprarem o mesmo produto repetidas vezes, contanto que este sempre venha em tamanhos e formatos diferentes.

    Seguindo a estratégia, para 2015 as apostas são de que, depois do relógio de pulso, a Apple irá ressuscitar o pager. A conferir.   

    * Fotos: Divulgação/Apple; Reprodução

  • Caiu na rede é peixe?

    Jennifer Lawrence durante a exibição especial de “Jogos Vorazes: Em chamas” no AMC Lincoln Square, em Nova York, no dia 20 de novembro de 2013“Putz, tinham que ser logo essas?!” é o que deve ter perguntado, em prantos, aos céus Jennifer Lawrence, ao deparar-se com suas imagens nua espalhadas na web feito papel na ventania. Pois é, a atriz hollywoodiana acaba de se tornar a celebridade da vez a ter sua privacidade violada através da publicação de fotos íntimas, possivelmente hackeadas de um serviço de armazenamento de dados em nuvem.
     
    Diferentemente de suas antecessoras, no entanto, é bem provável que a protagonista de “Jogos Vorazes” tenha se safado de encarar sozinha tamanha humilhação, afinal, conforme tem sido noticiado por diversas fontes, é quase certo que a mesma vulnerabilidade no aplicativo de localização remota do iPhone que possibilitou o ataque a Jennifer tenha também alcançado as contas de Kristen Dunst, Rihanna, Avril Lavigne, Mare-Kate Olsen, Selena Gomez entre outras, podendo chegar a impressionante soma de 100 personalidades.
     
    A partir da leitura do parágrafo acima, os leitores desavisados – estes que só agora tomam conhecimento do fato – têm, basicamente, a opção de polarizar-se entre dois pontos de vista bastante distintos. De um lado, os que serão consumidos pela dúvida sobre se ainda dá tempo de encontrar essas fotos online, do outro, os que se negam a sucumbir à curiosidade rasteira porque se solidarizam com quem teve a intimidade sequestrada e covardemente exposta sem nada poder fazer.
     
    No topo do ombro de cada um de nós, neste exato momento, um diabinho destila, ao pé do ouvido, seus melhores argumentos: “Olha lá, é rapidinho, nem precisa salvar...”, “Agora que o caminhão já tombou, que mal teria pegar as frutas que caíram na pista?”, “Será que essas artistas são gostosas mesmo na vida real ou no filme era tudo Photoshop?”
     
    Há ainda a turma que se escora na frágil alegação de que uma parcela considerável destas mulheres já se deixaram registrar em ensaios fotográficos sensuais, nos quais, inclusive, revelavam partes íntimas de seus corpos. Para estes, cabe lembrar que existe um abismo entre posar consensualmente – nua que seja – para a capa de uma revista e ter a foto de um momento íntimo com o namorado revelado à revelia.
     
    Se pensarmos um pouco, o referido dilema não está muito distante do que se apresenta quando decidimos clicar no link para o vídeo do jornalista capturado sendo decapitado pelo grupo fundamentalista, ou do que expõe o pouco que sobrou das vítimas de um acidente de avião. A bem da verdade, nestes tempos em que a velocidade e a fartura de acontecimentos se materializa como um convite constante à banalização dos conceitos de ética e moral, é preciso refletir sobre como a liberdade conquistada de navegar sem restrições pela internet traz à reboque a responsabilidade de se tornar não só um editor como um potencial propagador dos fatos que escolhemos dar atenção.
     
    Nas sábias palavras de Sally Kohn, renomado analista de notícias que recentemente fez uma apresentação no TED sobre o tema, “se o que ganha mais cliques vence, temos que começar a moldar o mundo que queremos através dos nossos cliques”.
     
    Seguindo a linha de raciocínio, não seria o hacker apenas uma versão mais determinada e menos hipócrita do sujeito que clica na foto?

    * Foto: Evan Agostini/Invision/AP

  • Sua majestade, o fã

    Fãs erguem telefones celulares na esperança de conseguirem selfie de Cristiano AraújoSão Paulo, novembro de 1999. “Anna Júlia” – primeiro single do disco de estreia da minha banda – começava a despontar nacionalmente como um hit radiofônico e, em meio a frenética rotina de shows, a despeito das poucas horas de sono, era preciso ainda encontrar tempo e disposição para participar de programas de auditório. Ao término da gravação desta que havia sido uma de nossas primeiras aparições televisivas, enquanto recolhíamos os apetrechos do palco, qual não foi a surpresa ao nos deparamos com um sorridente e falante grupo de meninas, que a nós se apresentaram como o Fã Clube Oficial Los Hermanos.

    Passado o susto inicial, à primeira vista nenhuma das duas partes parecia estar muito confortável com o papel a ser desempenhado dali por diante nesta até então inédita relação; afinal, de que forma nós, integrante da banda que elas haviam resolvido passar a idolatrar, poderíamos atender às expectativas delas? Por sua vez, enquanto fã clube oficial, como exatamente elas poderiam vir a nos ajudar?

    Alguns minutos de conversa foram suficientes para alinhar objetivos e esclarecer direitos e deveres: a elas, caberia capturar novos fãs e mantê-los em dia sobre os passos da banda, ligar para rádios pedindo que tocassem nossas músicas, estar na plateia dos programas de auditório e na primeira fila dos shows, de preferência cantando todas as letras de cor. A nós, caberia contar as novidades da estrada, distribuir autógrafos, tirar fotos, recebê-las nos camarins (por mais que estivéssemos cansados e com sono) e, basicamente, continuar fazendo músicas com as quais elas pudessem se identificar.

    Quinze anos se passaram e agora estamos de volta a agosto de 2014, época em que os fãs clubes tradicionais, aqueles que se sustentavam emitindo carteirinhas de associados e enviando posters autografados pelo correio, praticamente se extinguiram. De acordo com esta já não tão nova ordem, a internet é a melhor maneira de acompanhar a rotina de um ídolo, ligar para rádios pedindo músicas perdeu muito da relevância e boa parte dos artistas não mais precisam de intermediários para manter informado seu fiel séquito de seguidores sobre o que de fato parece importar, ou seja, qual prato comeram durante o almoço.

    Por mais que seja doloroso reconhecer, o mundo mudou, e neste em que vivemos os fãs clubes tornaram-se tão obsoletos quanto o ato de trocar fitas-cassete contendo lados B da banda preferida. Em seu lugar, no entanto, surgiram verdadeiros exércitos online que inverteram as habituais polaridades desta que sempre foi uma relação bastante desigual, transferindo o poder de quem esteve todo o tempo no centro dos holofotes para as mãos dos que acostumaram-se a estar por trás deles.

    Eu sei, a afirmação parece um tanto forte, mas reparem que não faltam por aí indícios de como, mais do que comprar discos e ingressos para shows, os artistas de hoje precisam que seus fãs os representem e os prestigiem virtualmente. Basta pensar que o atual motor que traciona o showbusiness é movido a número de cliques, views, curtidas, seguidores, tweets e downloads, e isso por si só justifica a importância que passou a ter para cantores, atores e afins estabelecer, através das redes sociais, uma relação estreita com suas bases de apoio.

    Para que a tropa se mantenha feliz e motivada, mais do que apenas marcar presença, é necessário empenho constante para fabricar factoides que possam vir a ser compartilhados, saciando um apetite voraz por intimidade, sobretudo quando consideramos o público formado por milhões e milhões de adolescentes dispostos a comer o fígado de todos aqueles que porventura ousarem criticar seus ídolos.

    Permanecer ausente deste diálogo por muito tempo pode representar um risco de perder controle sobre esta massa excessivamente emotiva e desorganizada por natureza, não muito menor, entretanto, do que o de trocar os pés pelas mãos ao tecer comentários que ofendam ou incitem os fãs numa direção indesejada.

    Para os novos artistas, a única opção existente é mergulhar de cabeça nesta modalidade de interação, visto que a capacidade de mobilizar admiradores virtuais encontra-se diretamente associada as chances de obter algum êxito comercial. Esse aspecto tornou-se tão determinante para a consolidação de carreiras bem sucedidas que deixou de ser surpreendente encontrar artistas que, apesar de possuírem produção musical irrelevante, conseguem manter-se no foco das atenções apenas devido a habilidade de arregimentar seus exércitos nas redes sociais.

    Para os artistas já estabelecidos, fica a impressão de que isso tudo é muito complicado, e que saudosos eram os tempos em que um autógrafo bastava...

    * Foto: Mateus Rigola/G1

  • Balde de água fria

    Bill GatesÉ bem provável que nos últimos 3 ou 4 dias você tenha se deparado algumas vezes na web com a intrigante cena de alguém - anônimo ou celebridade - recebendo por sobre a cabeça uma caprichada baldada de pedrinhas de gelo mergulhadas em água fria. Como muitos já sabem, essa espécie de tortura voluntária faz parte do Ice Bucket Challenge, em bom português, "Desafio do Balde Gelado", uma ação promovida nas redes sociais pela ALS Association, que visa arrecadar fundos para pesquisas e tratamento da Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), uma doença neurodegenerativa relativamente obscura que tem entre uma de suas mais conhecidas vítimas o cientista Stephen Hawking.

    De acordo com as regras da brincadeira, o desafiado possui duas alternativas: doar U$100 para a referida associação ou submeter-se ao impiedoso balde. Após definir sua escolha, deve indicar 3 pessoas para também participarem do desafio, e assim por diante. Ao que tudo indica, a campanha inspirou-se numa iniciativa semelhante surgida no norte dos Estados Unidos durante o inverno passado, em que optava-se por doar dinheiro para a cura do câncer ou pular num lago gelado. À época, a inusitada modalidade de arrecadação não chegou a deslanchar, o que só aumenta a curiosidade sobre as razões que transformaram o Ice Bucket Challenge num fenômeno viral desta magnitude, capaz de atrair personalidades do quilate de Bill Gates, Oprah, Winfrey, Mark Zuckerberg, Justin Timberlake, Robert Downey Jr., Britney Spears e Cristiano Ronaldo, dentre tantos outros.

    Uma possível explicação para tamanho sucesso talvez se relacione ao fato do desafio ser simples de realizar e quase sempre render cenas engraçadas, sem mencionar que reforça a faceta solidária dos participantes e tem apelo visual suficiente para estimular o compartilhamento das imagens com os amigos. Mas antes de continuar adentrando na ingrata seara de tentar compreender o que faz de um vídeo viral realmente viral, cabe observar o quão paradoxal pode ser a constatação de que cada nova postagem de alguém sendo encharcado por um balde gelado, em tese, materializa a escolha de não contribuir para o objetivo central da campanha, que é arrecadar dinheiro para a realização de pesquisas que auxiliem no tratamento da doença.

    Para os críticos de plantão, chama atenção a quantidade de gente disposta a investir na compra de sacos de gelo, ao invés de efetivamente ajudar a ASL com o que a entidade mais precisa. Este seria um típico exemplo do que por aqui tem sido chamado de "ativismo de sofá", comportamento que se caracteriza pela adesão leviana via internet a causas consideradas relevantes, mas que na prática exigem pouco tempo ou dedicação na vida real. Por outro lado, não seria incorreto afirmar que, embora não estejam necessariamente doando dinheiro, ou mesmo que nem desconfiem do motivo pelo qual de uma hora para outra jogar um balde gelado na cabeça se tornou tão legal, estas pessoas estão de alguma forma colaborando com o propósito da campanha, uma vez que os vídeos que fazem ajudam a sensibilizar os responsáveis pelas doações efetivas, que até ontem já superavam os U$19 milhões.

    Independente de considerar ou não que os fins justificam os meios, episódios como este do Ice Bucket Challenge ressaltam a necessidade de empregar artifícios cada vez mais mirabolantes para mobilizar pessoas em prol de causas positivas, quando o engajamento deveria ocorrer de forma natural. Mais do que isso, apesar do resultado financeiro ter sido satisfatório, a campanha sugere uma incômoda reflexão: a de que há muito mais gente motivada em fazer graça para os conhecidos do que verdadeiramente sensibilizada pelos sintomas de uma doença gravíssima que pode, inclusive, ser fatal.  

  • A Caixa de Pandora

    instante posterior

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     


    No último sábado, enquanto buscava através da janela do restaurante alguma distração que me ajudasse a atenuar a demora do prato que havia pedido, me deparei com uma pitoresca visão, daquelas que costumam escapar aos olhos menos atentos na correria do dia a dia. Eis que numa movimentada esquina do bairro do Jardim Botânico, lá estava, bem em frente a minha mesa, em toda a sua nostálgica imponência azul e amarela, uma caixa de coleta dos Correios.
     
    Apesar de ter absoluta certeza de que aquele nada discreto objeto já se encontrava há muito tempo no preciso lugar em que o avistei – quiçá desde os idos em que o Xou da Xuxa era gravado ali perto – eu, que por tantas vezes sentei naquela mesmíssima mesa, fui surpreendido pela constatação de que não só nunca havia notado sua presença como, de certa forma, havia também apagado da minha mente qualquer registro relacionado à existência de uma caixa de coleta dos Correios. Para me manter fiel à lembrança do Xou da Xuxa, o sentimento despertado pelo inusitado encontro remeteu a não avistar o Geninho mal camuflado num arbusto bem no centro da tela, no desafio pelo qual todas as crianças aguardavam ansiosamente no encerramento do desenho da She-Ra. 
     
    Talvez, menos provável do que conceber a existência do Planeta Ethéria – onde a irmã de He-Man se locomovia montada num unicórnio alado e tinha como confidente uma coruja que falava e voava balançado orelhas gigantescas com as cores do arco-íris – seja supor que hoje em dia ainda existe alguém que se preste a depositar uma carta na tal caixa. Basta pensar que, para alcançar seu destino final, a correspondência precisa estar selada (sim, aparentemente ainda há quem possua um estoque de selos em casa) e ser recolhida pelo carteiro (sabe-se Deus com que periodicidade), que possui uma chave específica daquela caixa, para só então ser levada à agência, e de lá, enfim, despachada.
     
    Sem querer passar a impressão de ser um intransigente defensor da hegemonia tecnológica, dada a relativa complexidade do processo se comparado às atuais alternativas existentes de comunicação entre pessoas, seria até natural conceber a sobrevivência das caixas em contextos adversos, tais como cidades muito pequenas ou povoados encrustados em meio à Floresta Amazônica, mas este certamente não é o contexto em que se inserem os moradores e frequentadores da Rua Maria Angélica. Uma breve pesquisa no Google feita antes do almoço (o prato realmente demorou a vir) indicou o óbvio: as caixas de coleta de fato estão se tornando obsoletas Brasil afora e têm sido pouco a pouco descontinuadas pelos Correios.
     
    Assim sendo, não pude deixar de refletir sobre o quão desestimulante pode ser a rotina do sujeito incumbido de checar o que nelas é depositado; reparem que seu trabalho é muito semelhante a participar do extinto programa Porta da Esperança, afinal, devem ser consideráveis as chances de retornar para a central com as mãos abanando após um dia inteiro na rua: “Querido, como foi seu dia?” “Hoje o bagulho foi bem loco, na oitava caixa que abri tinham 2 cartas, e eram de remetentes distintos!”.
     
    A necessidade destes profissionais lidarem constantemente com a frustração me leva a cogitar se nos centros de treinamento dos Correios, aqueles onde gostamos de pensar que existem muros cenográficos e cachorros ciborgues para testar as habilidades físicas dos candidatos a carteiros, já não existem grupos de apoio orientados a reforçar a autoestima dos que têm como ofício a incessante busca por algo que quase nunca encontram. Posso até imaginar como devem ser as sessões: “Boa tarde pessoal, bem-vindos ao grupo de apoio dos coletores de caixas! Antes de começar, gostaria de fazer uma pergunta: quem aí quando criança gostava de procurar o Geninho no desenho da She-Ra?”

Sobre a página

Bruno Medina é músico da banda Los Hermanos e escritor nas horas vagas. Nascido no Rio de Janeiro, formou-se em comunicação pela PUC-RJ, mas a música nunca permitiu que chegasse ao mercado publicitário. Começou a tocar piano e escrever histórias ainda criança, sendo que as duas aptidões o acompanham desde então.