A verdade é uma mentira que esqueceu de acontecer
Impressão minha ou esse foi o 1° de abril mais xoxo de todos os tempos? Confesso que ontem passei o dia todo esperando ser surpreendido pelo inusitado, viesse de onde fosse; o e-mail de um amigo bebum, no meio da tarde, contando que havia decidido virar monge budista, um telefonema – supostamente da companhia de luz – avisando que a eletricidade seria cortada por falta de pagamento, ou mesmo dar uma mordida num biscoito de chocolate e descobrir que algum espírito de porco havia substituído o recheio de baunilha por pasta de dente. Mas eis que nada disso aconteceu, restando a mim reconhecer, saudoso, que aquele 1° de abril arte, aquele 1° de abril moleque de outrora se foi, cedendo lugar a uma sonolenta sucessão de pegadinhas cibernéticas que não enganam mesmo a ninguém.
Colocando-me na pele do sujeito fanfarrão que em outros idos dedicava horas a fio de seu valoroso tempo a conceber, produzir e aplicar pegadinhas épicas entre seus consortes, imagino a questão que se impõe hoje em seu zombeteiro horizonte: afinal de contas, por que se contentar com uma única sardinha se é possível fisgar de uma só vez o cardume inteiro? Em outras palavras, qual o sentido de empregar tanta engenhosidade e suor em prol de enganar uma vítima apenas se sentado numa cadeira em frente ao computador, com meia dúzia de palavras bem escolhidas, pode se alcançar milhares de pessoas?
Apesar desta parecer uma escolha bastante lógica, há de se considerar, no entanto, um aspecto essencial: a partir da meteórica popularização das redes sociais ocorrida nos últimos anos, tornou-se extremamente improvável contar uma mentira que perdure por mais do que alguns minutos. Assim sendo, a expectativa em relação ao 1° de abril deixou de ser deparar-se com uma farsa tão hilária quanto verossímil na qual as pessoas de fato acreditem. Dado que o objetivo de ludibriar os incautos não será mesmo atingido, o jeito é propor algo tão absurdo que a mera suposição da existência já se configure como piada. Mas que graça isso tem?
Tomemos por exemplo o Google, que consolidou-se como referência máxima quando o assunto é pegadinhas de 1° de abril. Em 2014, sua proposta para tapear hordas de internautas nos quatro cantos do planeta foi o 'Pokémon Challenge', uma disputa global que tem por base a geolocalização e a realidade aumentada e que se destina a eleger o maior caçador de pokémons da atualidade. De acordo com o vídeo apresentado por Brian McClendon, vice-presidente do Google Maps, os candidatos entrariam no desafio através do aplicativo, onde seria possível conhecer a localização precisa dos bichinhos, que tanto poderiam estar escondidos nas areias de Copacabana quanto incrustados numa rocha do Grand Canyon. Ao vencedor da competição, a glória que provavelmente acreditam ser o prêmio mais almejado da era moderna: um emprego no Google.
Quando um amigo me encaminhou o link do vídeo, antes mesmo de clicar no 'play', a primeira coisa em que bati o olho foi o comentário de alguém que entregava a farsa, associando o canhestro programa de seleção de funcionários ao 1° de abril. Tempo que a piada durou para mim? 10 segundos. Em adição à iniciativa do Google, podem ainda ser mencionadas a do Youtube – assumindo a autoria de todos os vídeos que viralizaram na web desde 2005 – a da Samsung – um projeto destinado a prover wifi gratuito a partir de micro-roteadores acoplados em pombos – e a do Waze – utilizar sua enorme rede composta por motoristas para promover também encontros amorosos.
A reflexão não tão óbvia suscitada por estas piadas que já nascem mortas é constatar que, se por um lado o mosaico infinito de olhares e vozes que estão na internet configura-se como um importante e necessário sistema de vigilância da sociedade atual, por outro precipita o julgamento e encerra qualquer possível brecha para a fantasia. Por um determinado ponto de vista, a internet é como um primo mais velho, que no almoço de domingo confidencia a verdade sobre o coelhinho da páscoa, ou então aquele professor mala, que nos cobra a todo tempo ter opinião sobre tudo.
O fato do Google ter se transformado na fonte primordial de piadas no 1° de abril apenas torna mais evidente a hegemonia das experiências coletivas em detrimento das individuais, fenômeno que paulatinamente transfere aos grandes provedores de conteúdo a responsabilidade de pautar nossas vidas. Será que alguém já parou para pensar na ironia que há na empresa em que bilhões de pessoas confiam suas buscas diárias por informação ser consagrada como uma boa contadora de mentiras? Sinal dos tempos.