Quem dorme não lembra da Gretchen
É costume dizer que, além da morte, poucas são as certezas que temos na vida, mas, seguramente, uma delas consiste em reconhecer que cedo ou tarde, em nossas famigeradas existências, seremos acometidos por um mal ao qual nenhum ser humano parece de fato estar imune. Contrariando a solidez das estatísticas que apontam que algo entre 40% e 60% da população mundial sofre de algum grau de insônia, até bem pouco tempo eu gostava de me gabar por pertencer ao seleto grupo de felizardos que nunca vararam uma noite sequer em decorrência do estresse do dia a dia ou da hesitação frente a uma dificuldade pontual que se impôs no caminho.
Ledo engano. De uns meses para cá, passei a conviver com uma modalidade não tão óbvia de privação do sono, designada de "insônia tardia", que nada mais é do que quando despertamos no meio da noite pensando em quantos maridos teve a Gretchen ou tentando lembrar o nome do grupo que cantava "Macarena", e não mais conseguimos dormir. A primeira coisa que alguém que sofre desta condição descobre ao procurar na internet por maneiras de atenuá-la é que praticamente todo conhecimento acumulado pela ciência sobre o tema ao longo dos séculos se refere à forma tradicional de insônia. Ou seja, como se não bastasse passar as madrugadas em claro, é preciso conformar-se que nem ao menos será possível aproveitar essas horas indesejavelmente ganhas para tentar reverter a incômoda situação.
Então de nada adianta me sugerir colocar uma folha de alface no criado mudo, tomar um copo de leite morno ou fazer exercícios leves algumas horas antes de deitar. A bem da verdade, eu poderia adormecer sem maiores dificuldades numa micareta ou na arquibancada do Maracanã durante um Fla-Flu, afinal meu problema não é pegar no sono, mas sim evitar que o cérebro desperte antes do momento devido. E como descrever a sensação de permanecer deitado na cama, de olhos fechados, querendo muito se convencer de que será possível voltar a dormir a qualquer instante, quando, na realidade, o pensamento está a mil e, portanto, isso não poderia estar mais longe de acontecer?
Nessas horas, sinto que seria capaz de resolver teoremas matemáticos complexos citando simultaneamente a obra completa de Camões, mas a razão determina que o sensato a fazer é restringir-me apenas a contar carneirinhos. Quando uns 1.500 já pularam a cerca, jogo a toalha e decido começar o dia, sem saber ao certo por que o sono decidiu me abandonar. Muita gente acredita que a insônia é um sintoma da vida moderna, associável à hiperconectividade e ao ritmo insano a que submetemos nossas rotinas, mas eu duvido que ela já não esteja por aí há bastante tempo. Na Idade Meédia, por exemplo, era comum dividir a noite de sono em dois períodos de 4 horas, intercalados por 2 horas de atividade, o que talvez possa sugerir que a insônia não é necessariamente um mal, mas sim um indício de inadequação ao padrão de sono que tornou-se predominante em nossa sociedade.
Não sei se serve de consolo, mas da próxima vez que você chegar ao trabalho no bagaço, com aquelas olheiras de Frankenstein, desejando levar a garrafa térmica de café do departamento direto para sua mesa, pense que em outros tempos estranho seria esse seu odiável colega, que adora espalhar aos quatro ventos que dormiu a noite toda feito um bebê. Caso alguém porventura note o peso de sua expressão apática e pergunte se você tem insônia, responda que na verdade, assim como Leonardo da Vinci, você é adepto do sono polifásico, e que alterna sonecas de 15 minutos a cada 4 horas para se tornar mais produtivo. Provavelmente você vai continuar se sentindo péssimo, mas pelo menos tira uma onda no escritório.
Se você está decepcionado por constatar que este é o primeiro texto da história sobre insônia que não termina com dicas práticas para combater o sintoma, em minha defesa, gostaria de alegar que se elas realmente funcionassem este post jamais teria sido escrito; também os fatos de que a Gretchen se casou 16 vezes e que "Macarena" foi gravada pela dupla Los del Rio teriam caído para sempre em esquecimento.