• A cenoura e o burro

    Montagem
    "Reconfortado" é, sem dúvida, a palavra que melhor descreve meu estado de espírito ao constatar que, enquanto boa parte da população do ocidente se descabela em busca de presentes para seus entes queridos, posso me dar ao luxo de manter a serenidade, respaldo pela constatação de ter cumprido meu dever ainda na primeira semana de dezembro. A verdade é que as compras de Natal seriam um tema absolutamente superado para mim não fosse um pequenino detalhe que me impede de encerrar em definitivo este breve e enfadonho período que separa a primeira parcela do 13° das rabanadas: os R$ 22 em notas fiscais que me faltam para ter direito a um cupom no sorteio de 6 carros do shopping.

    Preciso admitir que tenho tido até certa dificuldade para dormir ao lembrar que os R$ 488 em créditos acumulados com sacrifício serão jogados no lixo se nos próximos dias eu não forjar, de alguma maneira que ainda não sei, a coragem necessária para imergir naquela Sodomo e Gomorra do consumismo – onde, a essa altura, pobres almas se esbofeteiam por camisas polos listradas, necessaires, caixas de bombom e brinquedos dos quais mal conseguem pronunciar os nomes – e fazer justiça à minha sorte.

    Pois eu, que nunca joguei na loteria, comprei uma rifa (sem ser coagido por terceiros) ou participei de concursos para concorrer ao que quer que fosse, simplesmente não consigo deixar para trás a chance de ganhar um carro que, pensando bem, nem quero. Eis o que esses marqueteiros perversos fizeram comigo: onde antes não havia sequer a aspiração, agora há um sentimento de perda, só que de algo que eu nunca quis de fato, exatamente como quando se coloca uma cenoura na ponta de um galho para estimular o burro a andar para frente. Ainda que não esteja com fome, ele não resiste a um lanchinho aparentemente tão ao alcance. Comovido com meu drama particular, o pragmático leitor pensa em me consolar através da seção de comentários deste blog, alegando que a probabilidade matemática de levar o prêmio é desprezível, afinal, quem aí conhece alguém que já ganhou um carro no shopping, né?

    Eu conheço. E o pior é que não era qualquer carro não, foi uma dessas SUV top de linha que a pessoa vendeu antes mesmo de pegar na concessionária, sem ao menos se dar ao trabalho de anunciar. Não fosse esta genuína materialização da oportunidade desperdiçada, há ainda o desafio de atingir apenas a soma necessária para ter direito ao bilhete sem deixar uma grana como crédito a ser completado (sob risco de reiniciar o ciclo), ou você acredita que atualmente dentro de um shopping existe alguma coisa que custe menos do que R$ 50?

    No afã de resolver o impasse e alcançar a almejada paz de consciência, sondei quem se dispusesse a apresentar os benditos R$ 22 em notas fiscais e atrelá-los ao meu CPF, quem sabe quando este sujeito caridoso fosse enfrentar a fila para levar as suas próprias. Ledo engano. Em todas as abordagens o favor foi encarado com estranhamento semelhante ao evidenciado quando se pede uma escova de dentes emprestada, em resumo, uma daquelas coisas que, por mais intimidade que se tenha, não se pede a ninguém. Bem, ao que tudo indica, as alternativas que me restam são duas: esquecer de uma vez essa história toda e torcer para que a benção da sorte recaia sobre alguém que a mereça mais do que eu ou me atirar de cabeça num shopping lotado faltando uma semana do Natal, imaginando que este sacrifício por si só me habilite perante aos céus como merecedor do prêmio...

    *Fotos: Montagem/Bruno Medina

  • De volta pra casa

    Los Hermanos
    Não se pode negar que o finalzinho do ano chegou trazendo uma boa notícia para quem gosta de Los Hermanos. Na sexta-feira passada, a prefeitura do Rio anunciou duas apresentações da banda (nos dias 30 e 31 de outubro de 2015), dentro do calendário de comemorações dos 450 anos da cidade.
     
    De certa forma, posso dizer que não foram apenas os fãs que se surpreenderam com a novidade, visto que nós mesmos recebemos o convite poucas semanas antes da divulgação oficial, e, claro, aceitamos na hora.
     
    Esta será uma ocasião especial em muitos sentidos, a começar pelo fato de termos sido incluídos numa programação que se destina a celebrar os principais símbolos da cidade, e isso não é pouca coisa, sobretudo se considerarmos o papel de protagonismo que o Rio sempre desempenhou no cenário cultural brasileiro.
     
    Acredito que esse reconhecimento, que muito nos orgulha, tenha algo a ver com a constância com que o samba e o carnaval de rua, temáticas essencialmente cariocas, ainda que misturadas a outras influências, se fizeram presentes em nossos discos, reflexos naturais das vivências que permearam tanto a formação de nossa identidade artística quanto como indivíduos.
     
    Também nem é preciso mencionar que este tem tudo para ser mais um emocionante encontro com o público que acompanhou de maneira tão carinhosa a evolução de nossa carreira, nos prestigiando quer fosse no diminuto segundo andar do Empório, nas temporadas do Canecão e da Fundição, no topo do Morro da Urca ou na imensidão das areias do Réveillon em Copacabana.
     
    Soma-se agora a esta emblemática lista o tradicional Jockey Club do Brasil, local que, além da beleza arquitetônica e da enorme relevância histórica, ao longo de seus mais de 90 anos de existência, abriu seus portões para pouquíssimas bandas, dentre as quais se inclui a Legião Urbana, no mítico show que lá realizaram em 1990.
     
    Como se todos esses ainda não fossem motivos suficientes, eis aí uma grande oportunidade para que este grupo de velhos amigos – que hoje, por conta dos descaminhos da vida, se vê muito menos do que de fato gostaria – possa, após três longos anos, novamente se reunir para fazerem, juntos, o que mais gostam.
     
    Até outubro do próximo ano há ainda um longo caminho a ser percorrido, tempo mais do que suficiente para remover a poeira dos equipamentos, relembrar acordes esquecidos, definir os inúmeros aspectos práticos relativos às apresentações e, acima de tudo, ficar imaginando em detalhes estas duas noites que, sem dúvida, serão memoráveis. Taí um presente de Natal pra ninguém botar defeito...

    *Foto: Caroline Bittencourt Fotografia

  • Segunda chance

    KombiSem dúvida alguma, dentre as cicatrizes que carrego da infância, uma das que mais me doem é nunca ter ganho de presente dos meus pais um kit de modelismo. Talvez este imperdoável gap se deva simplesmente ao fato de que, na maioria dos casos, este é um hobby que passa de pai pra filho, sendo que o meu, em sua infância, estava mais para guerra de pedra com os moleques da rua do que para a meticulosa e solitária montagem em escala de aviões, tanques, navios, carros e afins.
     
    Acontece que, do alto dos meus 8 anos, a única verdade que se punha em meu horizonte infanto-juvenil era a de que meus pais julgavam que eu não tinha ainda maturidade ou competência suficiente para me dedicar a uma tarefa que exigia tamanha capacidade de raciocínio espacial, disciplina e habilidade manual. De certo modo, naqueles idos, ter a destreza para dar conta de um daqueles complexos modelos hiper-realistas era o que diferenciava meninos de rapazes, visto que representava uma espécie de rito de passagem entre a tenra infância e o prenúncio da vida adulta.
     
    Supostamente desacreditado pelas pessoas que melhor me conheciam no mundo, a mim restava apenas lidar com a frustração de observar as caixas em exibição nas lojas só pelo lado de fora, imaginando que ali dentro encontrava-se – fragmentada em diminutas partes – a chave para uma vida com menos restrições e mais autonomia. Os anos se passaram e, como não poderia deixar de ser, tornei-me adulto a despeito dos tais kits de modelismo. Sendo muito sincero, poderia até dizer que, ao longo das duas últimas décadas, eles foram fenecendo em minha memória emotiva, na medida em que também tornaram-se menos populares entre as crianças.
     
    Este é, claro, um cenário bastante favorável para a superação de um trauma, pelo menos foi, até o dia em que a Volkswagen T1 Camper Van cruzou o meu caminho. A Kombi 1962 branca e vermelha, com portas que se abrem, teto expansível e interior reproduzido nos mínimos detalhes mexeu comigo de tal forma que só fui assimilar o que de fato significava adquiri-la quando já estava em casa. Ao abrir a caixa, entretanto, notei que não havia dentro dela chave de coisa alguma, mas sim 1.332 peças plásticas que me levaram imediatamente a concluir que deveria ter arrumado uma forma menos complicada de lavar minha honra.
     
    Só para se ter uma ideia da cilada em que me meti, o modelo não é recomendável para menores de 16 anos, ou seja, o grau de dificuldade da montagem é compatível com a responsabilidade de se eleger um presidente! Então eis que lá fui eu, numa tarde chuvosa de sábado, encarar de peito aberto o oceano de bloquinhos multicoloridos sobre a mesa, tendo o manual de instruções como Bíblia e a convicção de que minha autoestima dali por diante estaria atrelada ao sucesso daquela empreitada.
     
    Confesso que foi uma experiência catártica dar ordem aquele pequeno caos, testemunhando, tijolo por tijolo, o surgimento do meu troféu particular perdido na infância. Após 4 horas consecutivas de trabalho árduo, tendo a base estrutural da Kombi mais ou menos delineada, resolvi antecipar algumas etapas da montagem e colocar logo no lugar as quatro rodinhas, apenas para antever como seria o resultado final. Neste momento, fui tomando por um frio na espinha, mais precisamente ao constatar que as rodas dianteiras não cabiam no espaço que lhes era reservado. Então seria esse o trágico final da história? A prova cabal de que os kits de modelismo permaneceriam para mim como uma ferida aberta, o símbolo máximo da minha incompetência? Melhor seria transmutar aquilo logo numa fazendinha e enterrar de vez este fantasma do passado, pensei.
     
    Nada disso. Dessa vez eu tinha ido longe demais para cogitar desistir; mesmo fragilizado pela perspectiva de ter cometido um erro fatal, fui buscar no fundo do poço a motivação necessária para folhear o manual ao inverso, refazendo passo a passo a montagem até identificar o ponto exato onde havia me enganado. Com a precisão de um cirurgião cerebral, retirei o eixo dianteiro procurando não impactar a parte superior, já montada, e desloquei-o um furinho para frente. E pensar que aquele mísero descuido poderia jogar tudo por terra...
     
    Aliviado por estar de volta à estrada da redenção pessoal, ainda que ciente do longo trajeto que me resta percorrer, posso concluir que o episódio, até agora, serviu ao menos para me ensinar uma valorosa lição: assim como nos kits de modelismo, na vida também sempre há uma segunda chance. 

    *Foto: Bruno Medina

  • Uma Odisseia no vaso

    Montagem - banheiro e sondaAo longo destes últimos dias, as atenções de muitos de nós se voltaram para o espaço, mais especificamente para Philae, a sonda lançada há 10 anos pela Agência Espacial Europeia que enfim encontrou seu destino ao cravar as patas na superfície do cometa “67/P”. Além de premiar a coragem e a perseverança de um grupo de cientistas, o acontecimento torna-se histórico não apenas por representar a primeira missão bem sucedida desta natureza, mas, sobretudo, pelo fato das primeiras informações transmitidas pelo robô praticamente confirmarem a tese de que a vida na Terra originou-se de um bombardeio de corpos celestes semelhantes a este que agora é estudado, carregados de moléculas de carbono e água.

    Lendo as notícias e conversas em curso na minha timeline, fiquei com a impressão de que o fascínio gerado pelo assunto tem menos a ver com a confirmação das hipóteses científicas associadas ao experimento e mais com a façanha tecnológica de catapultar uma geladeira para o espaço e, uma década depois, vê-la pousar em segurança num cometa que se encontra a 510 milhões de quilômetros de distância. Não seria, portanto, exagero algum afirmar que a perícia destes cientistas nos enche de orgulho e esperança na medida em que simboliza uma louvável conquista para a humanidade, a mesma que costumeiramente dá tantos motivos para nos envergonhar.

    Me parece também que o feito teve como consequência direta estabelecer entre nós, indivíduos pertencentes à mesma espécie que os tais cientistas, um novo parâmetro de competência e eficácia; no final de semana passado, por exemplo, na mesa ao lado da em que eu almoçava, uma mãe utilizava a história de sucesso da Philae como argumento para convencer o filho pré-adolescente de que era possível, sim, urinar sem respingar a tábua do vaso: “Se os caras acertaram um frigobar num comenta que está no espaço, como você não consegue mirar num troço que está a menos de 1 metro do seu...?!”, alegou a mulher com expressão serena, certa de estar respaldada por um argumento irrefutável.

    A bem da verdade, a cena testemunhada me fez temer os possíveis desdobramentos dessa linha de raciocínio aplicada ao contexto profissional, afinal, como sobreviver a um chefe que porventura tenha este case como referência de bom resultado? “Se pelo menos o último slide do Power Point culminasse com uma queima de fogos na sala de reunião, acho que teríamos conseguido encantado o cliente”. Por outro lado, não seria de todo mal se esta fosse a inspiração para o aprimoramento de serviços e produtos, e já que falávamos há pouco em banheiro, por que não começar pelo papel higiênico? Francamente, não é possível que diante de tamanha demonstração de conhecimento tecnológico ainda hoje sejamos obrigados a lidar com a questão da mesma forma que faziam nossos ancestrais, nos primórdios da civilização!

    Ok, tá certo que passamos do ganso plumado, da pedra lisa e da folha de urtiga para algo um pouco mais adequado, o rolinho de papel folha dupla aveludado, mas, pelo amor de Deus, será que em 50 mil anos de existência o Homo Sapiens não conseguiu se organizar para conceber um método de higiene íntima que fugisse ao mesmo princípio básico que aplica à resolução do problema desde seu surgimento? Reparem que não tem ninguém aqui reivindicando skate voador ou impressora 3D de alimentos, só um pouco mais de comprometimento com uma causa que gera desconfortos e constrangimentos diários a boa parte dos mais de 7 bilhões de habitantes deste planeta. Claro que não tenho a petulância de propor uma solução, mas imagino que algo na linha dos removedores de manchas para roupas poderia funcionar.

    Desculpem, amigos, mas é por esta e outras que não consigo me deixar deslumbrar pelas peripécias desta missão espacial quando aqui embaixo ainda há tantas evidências de que vivemos a vanguarda do atraso. Talvez estivéssemos melhor se as agências de fomento tecnológico olhassem menos para as estrelas e mais para o próprio rabo, com o perdão da expressão...

    *Foto: Montagem/Bruno Medina

  • Ouro negro

    Chocolate
    “Se você gosta de chocolate, temos uma notícia ruim para te dar”, era o que dizia a manchete compartilhada mais cedo por uma amiga no Facebook. Assim como deve ter feito a imensa maioria dos amigos dela – afinal, existe alguém que de fato não goste de chocolate? –, cliquei no link, na expectativa de mais uma vez me deparar com algum desses artigos científicos que escolhem randomicamente um alimento para eleger como inimigo número 1 da saúde. Aumento anormal do fígado, distúrbios psicológicos irreversíveis, crescimento de seios em homens e barba em mulheres, eu considerava estar preparado para o que quer que fosse. Ledo engano.

    Muito além dos costumeiros malefícios associáveis ao consumo excessivo do alimento milenar, concebido pela Civilização Maia e popularizado na Europa por Cristóvão Colombo, o artigo do jornal britânico "The Independent" trazia uma tenebrosa informação que nem o mais pessimista dos chocólatras seria capaz de imaginar: está prevista para 2020 uma potencial escassez de chocolate em nível mundial. É isso mesmo que você acabou de ler, caro amigo: enquanto o crescimento econômico dos mercados asiáticos não para de introduzir novos membros no já extenso contingente de consumidores do produto, as fazendas de cultivo de cacau simplesmente não conseguem dar vazão ao nosso apetite voraz.

    Se as coisas continuarem caminhando nessa direção, de acordo com especialistas, as barras de chocolate do futuro terão tão pouco cacau em sua fórmula que nada restará de familiar em relação ao alimento que hoje conhecemos e, desde pequenos, aprendemos a amar. Ainda segundo eles, dentro de 20 anos, o chocolate será tão caro quanto o caviar. Bem, se esse cenário apocalíptico de fato se cumprir, imaginem como viver num mundo sem brigadeiro, chocolate quente e ovo de páscoa, em que a melhor recompensa após a prova difícil será saborear uma barra de gergelim e casais apaixonados se presentearão com caixas de biscoitos integrais, ou em que crises de baixa-estima serão curadas à base de sorvete de limão?

    Mas não para por aí. Posso antever uma crise humanitária sem precedentes na Bélgica e na Suíça, a multiplicação exponencial de centros de tratamento e adesivos de cacau como únicos instrumentos de combate à dependência química, quadrilhas especializadas em roubo de tabletes de chocolate e a música homônima de Tim Maia sendo reclassificada como apologia ao crime, crianças que nunca rasparam o dedo na calda do bolo ou sequer tiveram uma dor de barriga de verdade!

    E quando a população do planeta estiver absorta na mais profunda depressão, tendo os índices de dopamina mais baixos que a segunda cota do volume morto do Sistema Cantareira, como medida profilática, essências de chocolate produzidas artificialmente em laboratório serão borrifadas nos sistemas de refrigeração dos metrôs das grandes cidades, onde também haverá exibições públicas de filmes como “A Fantástica Fábrica de Chocolates” e “O Diário de Bridget Jones”. Ao ver Renée Zellweger afogar as mágoas do amor não correspondido num pote de sorvete de chocolate, os espectadores também se debulharão em lágrimas, num misto de tristeza e saudade daquele gosto mágico do qual seus paladares mal se recordam.

    Confesso que essa perspectiva me deixou à beira do desespero, sobretudo devido à consciência pesada por minha inquestionável contribuição ao longo de todos esses anos para a suposta escassez do cacau. A vontade agora seria chafurdar numa caixa recheada de bombons, mas a prudência me sugere outra coisa: começar já a fazer um estoque para os dias mais difíceis que possivelmente estão por vir.

    *Foto: Ruan Melo/G1

  • Grunge, uma startup que deu certo

    Nirvana
    Nesta semana retornei de um giro por algumas cidades americanas que há muito queria conhecer, dentre as quais, como não poderia deixar de ser, incluía-se a mítica Seattle. Talvez a adjetivação soe levemente exagerada para alguém que tenha menos de 30 anos, ou que apenas consulte o Wikipédia para concluir que a capital do estado de Washington trata-se de um reconhecido polo das indústrias tecnológica (a sede da Microsoft fica lá) e madeireira e, é claro, o berço do grunge.
     
    Engana-se, no entanto, quem porventura pense que a cada esquina de Seattle se encontra um ambulante com cabelo na altura dos ombros e cavanhaque tingido de vermelho vendendo camisas com a capa de ‘In Utero’ ou bandanas do Pearl Jam. Apesar de ter dado origem a um movimento musical consistente o bastante para colocar no mapa cultural do século XX a fria e distante localidade do noroeste americano e, de certa forma, redefinir os rumos do rock, pela simples incidência do tempo ou por instinto de sobrevivência (?), a cidade conseguiu seguir adiante e se recriar, a partir do valoroso legado deixado por Kurt Cobain, Eddie Vedder, Layne Staley, Chris Cornell e seus contemporâneos.
     
    Colocado assim, fica até a impressão de que a população local optou por também enterrar o grunge naquela fatídica manhã de 5 de abril de 1994, quando o líder do Nirvana decidiu tirar a própria vida. Não é o caso. A incrível história da banda – e do movimento em si – estará para sempre registrada no magistral "Experience Music Project Museum – EPM", um dos mais bonitos museus que já visitei e, para quem ainda está na dúvida, que certamente justifica uma visita a Seattle.
     
    Num dos documentários em exibição, me chamou a atenção o depoimento de Dave Grohl sobre seu despertar musical. Dizia ele que, durante a adolescência, as tardes chuvosas pós-escola, passadas numa cidade onde nada de fato acontecia, somadas ao acesso a equipamentos de gravação relativamente baratos e a certeza de que nenhum dos artista que admirava dariam os ares da graça naquele extremo do país, o impulsionou a reunir na garagem de casa os amigos que tocavam (ainda que muito mal) e criar, junto com outros grupos formados por garotos motivados pelos mesmos propósitos, uma cena musical que ao menos aliviasse o tédio dos fins de semana.
     
    No final dos anos 80, as únicas maneiras de ter contato com novas bandas era formando uma ou através de zines, fitas-cassete demo e rádios comunitárias, um contexto bem diferente do que encontramos agora, passados mais de 25 anos, onde a abrangência e a facilidade com que se obtém informação via web criou um mundo hiperconectado, a famigerada "aldeia global", que ignora fronteiras e a própria noção de localidade. Nem foi preciso, portanto, grande empenho para constatar que nada de muito relevante em termos musicais surgiu em Seattle depois do grunge e, para ser sincero, duvido muito que um dia surja.
     
    A despeito daqueles anos terem testemunhado uma safra de músicos com talento acima da média, capazes de não só transformar suas angústias e mazelas em ótimas músicas como também fazê-las ressoar em milhões de outras pessoas, o que impede um novo grunge de surgir não é propriamente a falta de talento das gerações atuais, mas sim o mundo, em seu constante e inevitável processo de mutação. Se num passado não tão distante moleques entediados e com acesso restrito aos seus objetos de interesse, munidos da gana por transpor as barreiras impostas pelo lugar onde nasceram, uniam-se para criar sua própria cena musical, como fizeram Nirvana e Pearl Jam, hoje me arrisco a dizer que boa parte destes mesmos moleques não estão mais na garagem de seus pais fazendo barulho suficiente para incomodar os vizinhos, mas sim silenciosamente sentados em frente aos seus computadores, tentando criar a próxima startup de sucesso.
     
    Quando é mais fácil e mais conveniente fazer um sócio no Camboja do que uma banda com o sujeito do outro lado da rua, fica mesmo difícil conceber algo genuíno e autoral, que fuja de um denominador comum que, por assim dizer, permeie a generalidade da condição humana. E que a história daqueles garotos de Seattle continue sempre nos inspirando a criar não só mais e melhores músicas, mas o mundo em que queremos viver.

    *Imagem: Divulgação

Sobre a página

Bruno Medina é músico da banda Los Hermanos e escritor nas horas vagas. Nascido no Rio de Janeiro, formou-se em comunicação pela PUC-RJ, mas a música nunca permitiu que chegasse ao mercado publicitário. Começou a tocar piano e escrever histórias ainda criança, sendo que as duas aptidões o acompanham desde então.