Suassuna: 'A literatura é uma forma de protestar contra a morte'
Ó meu Deus judaico-tapuio e mouro-sertanejo! Considerai que qualquer coisa é bastante para me tirar a vida! Uma gota de salmoura que desça ao coração entupindo uma artéria, uma veia importante que rompa em meu peito, uma sufocação de tosse, uma forte pressão interna, um fluxo impetuoso do meu sangue, uma cobra coral que me morda, uma febre, uma picada,um corisco de pedra-lispe incendiada, um raio, uma pedrinha de areia nos rins, um inimigo audacioso, uma pedra que se despenque de um serrote - tudo isso e qualquer coisa pode me cortar o Nó do sangue, roubando-me a vida em dois tempos!".
A "veia importante" se rompeu. O que Ariano Suassuna escreveu neste trecho de "Romance d'a pedra do reino" terminou acontecendo nesta quarta-feira.
Suassuna tinha palavra - em todos os sentidos. Quem não o conhece como escritor deve devorar o "Romance d'a pedra do reino". É um grande livro. Ali, ele realiza o sonho de todo escritor: erguer uma bela catedral com palavras. A catedral de Ariano era um Brasil que ele inventou: sertanejo, belo, ensolarado, épico e,ao mesmo tempo, despojado. Os que o conhecem apenas pelo eventual histrionismo das aulas-espetáculo (de fato divertidas e instrutivas ) podem estar perdendo a chance de descobrir, nas páginas da "Pedra do reino", um grande escritor. É só o que interessa: um grande escritor.
Ao longo de quarenta anos (!), fiz "n" entrevistas com Ariano. (Assista acima a uma das entrevistas feitas pelo colunista)
Durante um certo tempo, horrorizado com os pecados que os repórteres cometiam ao transcrever o que dizia, ele se dava ao trabalho de responder as entrevistas por escrito - ali, "ao vivo", diante do autor das perguntas. Queixava-se de que, ao publicar suas declarações, repórteres descuidados com o texto botavam no papel cacos da linguagem falada - como "né?". Aquilo doía nos olhos de Ariano - um escritor que tratava a língua com reverência jamais escreveria um "né?".
Guardo, em meus arquivos, não tão implacáveis, uma pequena coleção de manuscritos de Ariano - aquela letra pequena e bem desenhada. Depois, ele abandonou o hábito de responder por escrito aos questionários. Não teria tempo para tanto.
Vivi uma cena que mostra o que era a palavra de um sertanejo (Ariano nasceu, na verdade, em João Pessoa, mas se criou no sertão ). Uma vez, ele me disse que Glauber Rocha, antes de ficar famoso como cineasta, o entrevistara longamente. A entrevista tinha sido publicada, no início dos anos sessenta, no Diário de Notícias, no Rio. Quando recebeu o jornal, Ariano viu que Glauber tinha atribuído a ele declarações que ele não tinha feito. Não teve dúvidas: antes de guardar o exemplar em seus bem cuidados arquivos, Ariano fez anotações à margem do recorte, para "corrigir" o texto. Fiquei curioso para ler. Pedi a ele para ver o jornal. Ariano disse: "Vou procurar, depois lhe dou".
Pois bem: passaram-se pelo menos seis anos. Ariano vem ao Rio para tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Em meio ao tumulto de abraços e cumprimentos pela posse, ele me diz: "Espere aí. Vou pegar um negócio que trouxe para você".
Procura numa pasta um recorte. Era a tal entrevista que dera a Glauber. Fiquei surpreso e comovido com a lembrança - qualquer um ficaria.
Aquilo, sim, era cumprir uma promessa! Ariano não se esqueceu de que tinha prometido ao repórter - que o "perseguia" há anos - um velho recorte de jornal. Ali, no mais improvável dos lugares, em meio a uma festa de posse na Academia, ele "cumpriu a palavra". O homem era assim.
Um pequeno trecho corrigido por Ariano:
Ariano: "Fui criado no protestantismo, mas, depois, ao reler os evangelhos, vi que o verdadeiro cristianismo é o catolicismo".
Glauber: É católico enquadrado?
Ariano: "Não. Católico enquadrado é santo. Vou à missa, de vez em quando me confesso, mas bom católico é católico safado" (aqui, Ariano emendou o recorte com uma frase escrita à mão: "Eu nunca disse isso!").
Aqui, numa das entrevistas que fiz com ele para a TV ( outras tantas foram para jornal), ele falava de seus sonhos brasileiros:
GMN: Todo escritor, em última instância, escreve para ser lembrado. Isso é que motiva o senhor a escrever?
Ariano Suassuna: "A literatura é uma forma de protestar contra a morte. Em minha visão, a literatura - e a arte, de modo geral - é uma forma precária, mas, ainda assim, poderosa de afirmar a imortalidade. O homem não nasceu para a morte: o homem nasceu para a vida e para a imortalidade.
GMN: Como é o Brasil dos sonhos de Ariano Suassuna?
Ariano Suassuna: "Eu sei que é um sonho- mas sem sonho a gente não vive. É necessário, ao ser humano, um sonho - lá na frente para que a gente não se acomode e procure aquele ideal. O Brasil com que sonho, então, seria um regime no qual a gente realizasse, pela primeira vez na história humana, a fusão de justiça e liberdade".
GMN: O senhor já disse que considera a Disneylândia o maior monumento já erguido a imbecilidade humana. Qual é o grande monumento erguido à imbecilidade no Brasil?
Ariano Suassuna: "A réplica da Estátua da Liberdade que construíram na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Ainda não estive lá, mas já estou com raiva da estátua - porque não gosto nem do original - quanto mais de uma réplica de segunda classe feita no Brasil!".
GMN: A quem o senhor daria - de bom grado - o título de representante número um do lixo cultural?
Ariano Suassuna: "Em primeiro lugar, já que estamos falando no tempo de hoje, eu daria a Michael Jackson. Mas já estou com pena de Michael Jackson - porque os americanos inventam um mito falso como ele e depois destroem". .
GMN: Em que situação o senhor compraria um disco de uma artista como Madonna ou Michel Jackson?
Ariano Suassuna: "Numa situação de extrema penúria intelectual, econômica, moral e mental. Se você me vir comprando qualquer coisa desse tipo, pode me internar, porque não estaria no meu juízo perfeito".
GMN: Ao reagir contra manifestações da cultura de massa, o senhor não teme ser considerado um grande dinossauro?
Ariano Suassuna: "Eu "temo", não: já fui chamado! E já fui chamado de "Dom Quixote arcaico", por viver, segundo diziam, esgrimindo contra os moinhos de vento da globalização. Não me incomodo".
GMN: Qual é a maior obra de arte já produzida no Brasil?
Ariano Suassuna: "Em artes plásticas: o Santuário de Congonhas, onde estão os 12 profetas esculpidos em pedra sabão pelo Aleijadinho. Em música, a obra de Villa-Lobos. Em literatura, Os Sertões - de Euclides da Cunha".