'Imortal' da ABL abre mão de mausoléu e confessa mentira
A Globonews leva ao ar, neste sábado (28), às 21h05, no Dossiê Globonews, com reprise no domingo, às 16h05, uma entrevista em que escritor e acadêmico Carlos Heitor Cony confessa que cometeu um pecado contra o jornalismo: "Eu inventava muito."
O jornalista desembarca diante de uma velha mansão em Aldenham, a trinta quilômetros de Londres, para cumprir um ritual que se repetia uma vez por ano.
Como se fosse uma criança que contasse os dias que faltavam para a chegada do Natal, o jornalista – um certo Richard MacPherson – passava o ano contando os meses que faltavam para a chegada de dezembro. Porque, em algum fim de tarde de dezembro, às seis em ponto, o telefone de MacPherson tocaria. Do outro lado da linha, como fazia todos os anos, uma voz gutural convocaria MacPherson para uma entrevista exclusiva, no dia seguinte. Era sempre assim. As florestas interiores de MacPherson entravam em ebulição. Quem o chamava – afinal – era um personagem extraordinário: o "único vidente cego do mundo", um indiano capaz de antever o cardápio de catástrofes, alegrias, lágrimas e glórias que o futuro ofertaria ao planeta nos próximos doze meses. O vidente se chamava Allan Richard Way, um indiano que adotara este nome depois de trocar os incensos de Nova Déli pelo cinza renitente de Londres.
Allan Richard Way não tinha os jornalistas em grande conta. Uma vez, ao notar no tom de voz do repórter uma certa excitação diante da antevisão de uma catástrofe, o vidente cego desabafara:
"Vocês – da imprensa – são uns abutres, mas nós, os astrólogos, não somos feitos de massa melhor..."
O caderno de anotações do único repórter a quem o vidente dava entrevistas guardou as impressões de um daqueles encontros inesquecíveis. Richard MacPherson tinha um texto inspirado:
"Pensava encontrá-lo de bem com a vida – mas não se pode confiar em profetas: eles estão sempre acabrunhados, se não com o próprio drama, com o drama dos outros ( ...) Allan Richard Way afunda um pouco na poltrona de espaldar alto onde sempre se senta quando fala comigo para dar suas previsões. É uma rotina que já completa treze anos, mas, para mim, sempre parece uma novidade, um acontecimento misterioso e excitante, com promessas de surpresas e coisas terríveis. Fomos para o escritório, cuja atmosfera só pode ser definida como mágica. O aposento termina numa espécie de jardim de inverno, com claraboia. Nesse ponto, junto às vidraças, voltado para o céu, está o misterioso siderômetro, o aparelho com que Alan Richard Way perscruta os astros e o infinito. Tapeçarias orientais distribuídas com cuidadosa negligência dão um toque fin de siècle ao refúgio do bruxo de Aldenham. Cada vez que entro naquele aposento, meu olhar se dirige de imediato ao siderômetro. Fico a admirá-lo por algum tempo, como se fosse um totem trazido de alguma civilização distante".
"A catarata que ele operara em 1980 na URSS, com a parapsicóloga Djuna Davitashvili, retornou com força total. Hoje, pode-se dizer que Allan Richard Way é o único grande vidente cego do mundo. Corria, em Londres, o boato de que ele estava morrendo. Mas logo tudo se esclareceu. Fora uma perfídia da parapsicóloga soviética Djuna Davitashvili – que há coisa de três anos operara (infrutiferamente) a catarata do mestre (cirurgia psíquica, é claro). Tremendamente despeitada por Allan Richard Way ter previsto no ano passado a morte de Chernenko e a ascensão de Gorbachev ao poder, Djuna espalhou o boato cruel. A tudo isso, como de resto a todas as outras coisas, o recluso de Aldenham retrucou com um de seus sorrisos irônicos – e também com um comentário cortante: 'Ela é cega e surda como as portas do Kremlin'".
"Como se tivesse previsto (e acho mesmo que previu) a chegada do chá, desviou o olhar inútil para a porta que se abriu lentamente – deixando passar a silenciosa governanta carregando uma bandeja onde percebi, com alegria, a presença de cheirosos muffins. 'Deixe-me descansar um pouco'. Logo tomei meu carro, percorri os vinte quilômetros que separam Aldenham de Edgware pensando em tudo o que ouvira e meditando, mais uma vez, sobre a selva que habitamos. Parece que Allan Richard Way encontra estranho prazer em descobrir, na sintaxe dos astros, a crueza de nossas desgraças, a perenidade de nossa dor".
É ou não uma bela descrição de um encontro com um grande personagem? Acontece que tanto o repórter Richard MacPherson quanto o vidente Allan Richard Way jamais existiram. Ambos foram inventados, na redação da revista "Manchete", pelo hoje acadêmico Carlos Heitor Cony. Durante anos, sempre no mês de janeiro, a revista publicava páginas e páginas com as previsões do suposto vidente cego. As reportagens eram sempre assinadas por MacPherson. Tudo invenção.
Cony confessa este pecado na entrevista gravada para o Dossiê Globonews. Vai adiante: diz que, uma vez, estava no Aeroporto de Heatrow, em Londres. Um indiano – com turbante e vasta barba branca – transitava pelos corredores. Cony se aproximou do homem, disse que, ao vê-lo, lembrou-se do pai. Perguntou: "Posso tirar uma foto?". "Claro", respondeu o transeunte barbado. Resultado: a foto do indiano anônimo foi estampada na revista, como se fosse do vidente cego. E assim Allan Richard Way ganhou rosto.
O dono da cadeira número três da Academia Brasileira de Letras (ABL) diz que os jornalistas deveriam "meditar" sobre o fato de o vidente jamais ter sido desmascarado.
Que assim seja.
Tenho a tentação de perguntar a Cony, como se de repente encarnasse o espírito do repórter Richard MacPherson: "Dizei, Allan Richard Way, o que teus olhos cegos enxergam para o Brasil? ". Cony responde: "Sou pessimista". Mas esclarece que cultiva um pessimismo não apenas sobre os destinos brasileiros, mas sobre o futuro da espécie humana. "Não, o homem não merece salvação" – constata, com uma ponta de desolação temperada por oito décadas de irrevogável ceticismo diante de tudo e de todos.
Em outro trecho da entrevista, Cony anuncia que tomou uma decisão provavelmente inédita entre acadêmicos. Resolveu, desde já, que não quer ser sepultado no mausoléu da Academia, no cemitério São João Batista. Disposto a não deixar no ar qualquer dúvida, diz que já incluiu a decisão no testamento.
Aos 89 anos de idade, recém-completados, Carlos Heitor Cony terá toda a obra relançada pela Editora Nova Fronteira. Os primeiros títulos já estão nas livrarias.
Abaixo, um trecho da entrevista:
Com algum bom humor, você escreveu que não considera o cemitério de São João Batista "merecedor da confiança que se deve ter nos cemitérios". O problema é que o mausoléu da Academia Brasileira de Letras – para onde um dia o acadêmico Carlos Heitor Cony será levado, num futuro que a gente espera remoto – fica justamente no cemitério São João Batista – que você detesta. Como é que você vai resolver este impasse? Vai abrir mão desse privilégio acadêmico?
Cony: "Vou resolver da seguinte maneira: podendo morrer, não morro! A morte é uma coisa nojenta. Se morrer, serei cremado. Minhas cinzas serão jogadas num morro em Itaipava, que pertencia ao seminário. Era o Morro do Cruzeiro, porque tinha uma cruz em cima. É um sonho que me persegue muito. Quando queria me isolar, ainda nos tempos do seminário – embora já vivesse isolado da família e do mundo – eu sempre ia a este morro, para ver aquelas montanhas e o açude. Minhas cinzas merecem estar lá. Já deixei em testamento: não quero ir para o mausoléu da Academia Brasileira de Letras!".
Se fosse criança, que pergunta você teria curiosidade de fazer ao adulto Carlos Heitor Cony sobre a vida?
Cony: "Por que é que não morri antes? Se eu tivesse essa possibilidade, é o que perguntaria. E às vezes me pergunto: o que é que estou fazendo aqui? Minha vida – e a dos outros – não tem sentido algum".
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