Um encontro com o cavaleiro do apocalipse: um dos homens que jogaram a bomba atômica em Hiroshima, ‘o ato mais violento da história da humanidade’
O último tripulante do Enola Gay, o avião que jogou a bomba atômica em Hiroshima, na segunda Guerra Mundial, morreu aos noventa e três anos, neste final de julho, nos Estados Unidos. Vai ser enterrado no dia cinco de agosto.
Vasculho os arquivos das andanças deste repórter. Eis o relato de um encontro com o homem que participou diretamente de um ato devastador - que dividirá para sempre as opiniões:
Eis um dos cavaleiros do apocalipse: um homem colhe peras no pequeno pomar que cultiva no jardim de casa, num subúrbio de São Francisco, Califórnia. Oferece-me a fruta. “É boa e doce”. Faz sol. O azul escancarado do céu só é maculado pelo rastro deixado por um avião a jato.
Enquanto saboreia a pera que acabou de colher, ele se dirige, a passos lentos, para uma cadeira na beira da piscina. Os raios de sol acentuam a brancura dos cabelos ralos. O pomar em casa e o conforto sugerido pela piscina podem dar a impressão de que o homem que colhe peras é um milionário. Não é. O homem que colhe peras é apenas um militar aposentado.
A biografia deste octogenário não seria diferente da de tantos outros veteranos de guerra se ele não tivesse levantado voo, na madrugada de seis de agosto de 1945, a bordo do Enola Gay – o avião que conduzia a primeira bomba atômica usada numa guerra. Ao embarcar no Enola Gay, Van Kirk entrou para a História – para o bem e para o mal.
Os que criticam o uso da arma atômica chamam os militares que participaram do ataque de mensageiros da morte. Os que encontram uma justificativa histórica chamam-nos de guerreiros da paz. A polêmica durará séculos.
A missão que Theodore Van Kirk cumpriu em 1945 mudou a história da humanidade. Todos os superlativos já foram usados para descrever a enormidade do ataque nuclear a Hiroshima. “Aquele foi o ato mais violento da história da humanidade, mas trouxe um fim para a Segunda Guerra” - diz Bob Greene, autor do livro-reportagem “Duty: a Father, His Son and The Man Who Won The War” - um jornalista que, desde criança, era fascinado pela Missão Hiroshima.
Que fantasmas povoam hoje os dias calmos do homem que colhe peras no pomar?
Se ele não tivesse embarcado para a Missão Hiroshima , certamente não teria o descanso dos seus dias de aposentadoria quebrado pela impertinência de repórteres que o procuram para tirar velhas dúvidas.
É o que faço agora. Van Kirk nos recebe - a mim e ao cinegrafista Sherman Costa - com um sorriso largo, uma pergunta bem-humorada (“Vocês conseguiram chegar? Pensei que tinham ficado presos no engarrafamento!”) e a disposição de abrir o armário onde se escondem os fantasmas de Hiroshima.
Pergunto se ele levou algum objeto pessoal quando embarcou no voo histórico. Van Kirk me surpreende com a resposta: o único “objeto pessoal” que ele levou a bordo do avião que carregava a bomba atômica foi uma Bíblia. Se precisasse de conforto espiritual durante a Missão, poderia recorrer àquela pequena relíquia familiar:
- A única peça pessoal que carreguei comigo foi uma Bíblia – que eu tinha recebido de minha mãe e de meu pai. Era pequena. Cabia no bolso. Durante o voo, eu me lembro de ter tocado a Bíblia com a mão. Mas não cheguei a ler nenhuma passagem. O exemplar da Bíblia não tinha meu nome, nada que pudesse identificar quem eu era. Se o avião por acaso fosse derrubado em território inimigo, os japoneses não poderiam me identificar pela Bíblia. Terminei perdendo-a, tempos depois.
Além do pequeno exemplar da Bíblia, Van Kirk carregava consigo uma pistola automática – que poderia ser usada numa situação extrema:
- Não havia rifles a bordo. Mas cada um de nós tinha uma pistola automática, calibre 45. Carreguei uma comigo, na missão rumo a Hiroshima. Se fôssemos derrubados sobre território japonês, poderíamos usar as pistolas para nos proteger ou – Deus nos livre – para destruir a nós mesmos, se necessário (Van Kirk evita a palavra “suicídio”). Mas, se algo desse errado na missão, a cena seria tão catastrófica que teríamos pouca chance de usar as pistolas.
Van Kirk orgulha-se de ter contribuído para o fim da guerra. É um fato histórico indiscutível. O uso das armas atômicas – primeiro, em Hiroshima e depois em Nagasaki - obrigou o Japão à rendição incondicional. Se o Japão continuasse em guerra, seria invadido por terra. O número de mortos poderia ter sido maior do que o causado pelas bombas – dizem os estrategistas. Mas o preço do uso das armas atômicas foi altíssimo. O horror causado pelo cogumelo atômico jamais se dissipou. Calcula-se que cem mil pessoas tiveram morte instantânea, nos dez segundos seguintes à explosão. As cicatrizes deixadas pelas explosões atômicas vão atravessar os tempos.
Que tipo de pensamento terá passado pela cabeça de Van Kirk quando ele viu Hiroshima pela primeira vez, ainda a bordo do Enola Gay?
Van Kirk faz uma pausa, reconstitui o cenário do apocalipse:
- Era um dia perfeitamente claro. A gente podia ver a cidade a milhas de distância. A primeira coisa que me veio à cabeça foi a de que nossa missão tinha sido bem sucedida: nós tínhamos encontrado a cidade, cumprimos os horários previstos, tudo estava perfeito. O primeiro pensamento que tive depois da explosão da bomba foi de alívio. Porque aquilo era algo que tinha exigido um treinamento que durara meses. O segundo pensamento que tive foi: a guerra acabou!
A História dos tempos de guerra não é feita apenas de ordens militares grandiosas e decisões sem rosto. Há sempre alguém que cumpre as ordens. As decisões tomadas no Salão Oval da casa Branca pelo Presidente dos Estados Unidos podem exigir - por exemplo – que um grupo de militares entre num avião de madrugada, invada o espaço aéreo japonês, mire numa cidade lá embaixo e abra as comportas para que seja lançada, naquele alvo povoado por homens, mulheres e crianças, a arma mais mortífera já concebida pelo homem - uma bomba atômica.
O avião Enola Gay levanta voo da ilha de Tinian, no Oceano Pacífico, às 2 e 45 da manhã de seis de agosto de 1945 rumo a Hiroshima, com doze homens – e uma bomba atômica a bordo. A bomba explode às 9h16. Cem mil pessoas morrem instantaneamente na explosão. O número de vítimas chegaria a 145 mil no final de 1945.
“Numa cidade de 245 mil habitantes, cerca de 100 mil haviam morrido ou iriam morrer em breve; outros 100 mil estavam feridos. Pelo menos 10 mil feridos se arrastaram até o melhor hospital de Hiroshima, que não tinha condições de abrigá-los, pois contava apenas seiscentos leitos e todos já estavam ocupados”, diria o jornalista americano John Hersey em "Hiroshima", texto clássico sobre a hecatombe.
“Nuvens de fumaça, próximas e distantes, despontavam pouco a pouco por entre a poeira. O reverendo se perguntou como um céu silencioso ter causado tanta destruição (...) Zonzos de dor, erguiam os braços, como se carregassem alguma coisa com as duas mãos. Alguns vomitavam, sem parar de andar. Muitos estavam nus ou envoltos em farrapos.”
A Missão Hiroshima foi o momento mais grave vivido por Van Kirk. Mas, para decepção dos fanáticos por guerra, ele constata:
- A guerra é mais interessante na TV do que na vida real. Guerra pode significar cinco minutos de extrema atividade – e um ano de monotonia....
Não havia lugar para monotonia a bordo de um avião que voava rumo ao Japão para cumprir uma missão que – não é exagero dizer - entraria para a História da humanidade:
- Havia a possibilidade de a bomba explodir no avião, o que seria desastroso. Poderíamos ter problemas no motor. Nós estávamos preparados para o pior – que, felizmente, não aconteceu. Não estávamos preocupados com os japoneses durante o voo em direção a Hiroshima, porque sabíamos que eles não tinham como nos alcançar naquela altitude – confessa Van Kirk. – Mas sabíamos que nosso avião seria atingido por ondas provocadas pelo deslocamento de ar, depois da explosão. Disseram-nos que, depois da explosão, iríamos sofrer o impacto. Houve até especulações sobre o risco de a explosão atingir o nosso avião. De volta à base, cheguei a ouvir de um dos cientistas o seguinte: “Quando vocês partiram para a missão, pensei que aquela seria a última vez que eu os veria....”. A turbulência durou pouco. O voo de volta pôde continuar.
O calor que se espalhou por Hiroshima e Nagasaki era o de “mil sóis”. Seres humanos “se desintegraram sem deixar qualquer vestígio”. O inferno se instalou na terra. O grande paradoxo é que tanta destruição foi cometida, em última instância, em nome da paz – para acabar com a guerra. O Japão se rendeu. A Segunda Guerra Mundial acabou ali. Mas Hiroshima e Nagasaki entraram para sempre na História como provas de que o homem é tecnicamente capaz de destruir a vida sobre a terra. Basta tomar a decisão.
“Os cientistas tinham dito que a temperatura no centro da explosão seria mais forte que a do sol – diz Van Kirk. Quando a bomba explodiu lá embaixo, nós já estávamos nos afastando de Hiroshima. Não havia janelas na parte traseira do avião. Usávamos equipamentos para proteger nosso olhos. Ainda assim, pudemos ver um clarão parecido com o de um flash fotográfico numa sala escura. Hiroshima estava inteiramente encoberta por uma fumaça negra e por poeira. Não se via a cidade. A nuvem que se formou tinha várias cores: eram tons de cor púrpura, rosa, branca – todos os tipos de cores".
A visão era bonita? – pergunto ao navegador.
“Não se pode chamar algo assim de belo. Era algo mais horrível do que bonito”.
Adiante, ele aprofunda a descrição:
- Minha primeira reação, ao ver as primeiras imagens de Hiroshima, foi de surpresa: como aquilo tudo pôde ser feito com apenas uma bomba? Aquilo reforçou a nossa certeza de que não havia meio de os japoneses resistirem a uma arma daquele tipo. O Japão iria se render logo depois.
O que é que a palavra Hiroshima significa para este homem?
“Para mim, Hiroshima significa, hoje, a ressurreição de uma cidade que foi destruída”, diz Van Kirk. “Hiroshima é também a prova de que o homem pode corrigir seus erros. Não é que a bomba atômica tenha sido um equívoco. O bombardeio foi perfeitamente legítimo como ato de guerra. A população de Hiroshima é hoje devotada à paz. É uma mensagem que vai para todo o mundo”.
Que resposta o navegador do Enola Gay dá, hoje, aos críticos da Missão Hiroshima, gente que condena o uso de armas atômicas?
- Críticos da missão atômica não entendem a situação que se vivia naquele momento específico e qual a alternativa que existia ao uso da bomba. O que aconteceu é que a bomba salvou vidas. Se não tivéssemos jogado a bomba, a guerra não teria terminado em agosto. Teria se estendido por um, dois meses. Durante este período, o Japão estaria exposto a um horrível bombardeio – com grande perda de vidas. Embora tenha havido uma horrível perda de vidas em Hiroshima – e também em Nagasaki – a alternativa seria pior : basta levar em conta o número de vidas que teriam sido perdidas se a guerra continuasse.
Ao contrário do esperado, o Japão não se rendeu depois da explosão da bomba em Hiroshima. Os Estados Unidos decidem, então, lançar uma segunda bomba atômica. O alvo era a cidade de Kokura. Mas, como a cidade estava encoberta por nuvens, a bomba foi jogada em Nagasaki. O Japão finalmente se rende. O documento da rendição incondicional é assinado no dia 2 de setembro
Pergunto se Van Kirk já teve pesadelo com Hiroshima:
- Nunca. Há quem me critique pelo fato de eu nunca ter tido pesadelo com a bomba atômica. Mas devo dizer que não tive. Porque acho que o que fizemos em Hiroshima foi apropriado.
Faria tudo de novo?
- Eu faria – diz Van Kirk , sem titubear. – Faria tudo de novo, se as circunstâncias que a gente tinha ali se repetissem: um conflito que se estendia por anos, com muita matança, com feridos, com o país inteiro em estado de guerra, não apenas as Forças Armadas. Mas creio que as circunstâncias não se repetiriam. Não acredito que nenhuma outra guerra dure mais que uma semana ou duas.
Se tivesse tido a chance de falar aos habitantes de Hiroshima momentos antes do lançamento da bomba, o que Van Kirka diria a eles?
- Eu diria: lamento que nós tenhamos de bombardear a cidade. É um ato necessário. Vocês não aceitaram os termos da rendição incondicional – que nós oferecemos. O resultado é este.
Aos que dizem que o ataque a Hiroshima é discutível porque atingiu indiscriminadamente alvos civis, Van Kirk responde que não: Hiroshima era a sede das instalações militares japonesas encarregadas de defender o país em caso de invasão. Havia na cidade pelo menos cem “alvos militares”. Mas a população civil pagou o preço.
Van Kirk acha absurda qualquer comparação entre o ataque atômico ao Japão – um ato de tempos de guerra – e, por exemplo, o ataque dos "soldados" de Bin Laden ao World Trade Center. O sentimento antiamericano, aguçado na era Bush, deu margem a comparações desse tipo.
- Quando vi o ataque ao World Trade Center me perguntei: que tipo de gente pode fazer algo assim? É algo que não consigo imaginar: que eles tenham achado que algo de bom poderia sair dali. Quando houve Hiroshima, nós estávamos em guerra. Havia legitimidade. Não apenas nós estávamos envolvidos na guerra, mas todo mundo – os britânicos, os russos, todos. Mas o ataque ao World Trade Center foi feito em tempos de paz. Como puderam fazer? Não consigo entender. Eu não o faria. Nunca. Nunca.
Vida de personagem da história é assim: o navegador do avião que jogou a bomba atômica oferece ao repórter um autógrafo sobre uma foto do Enola Gay. A relíquia vai para meus arquivos implacáveis. Pai de dois filhos e duas filhas, avô de sete netos, Van Kirk vive com a mulher - parcialmente inválida.
Em seus momentos de solidão, Van Kirk se lembra das vítimas da bomba?
- Eu hoje me lembro das vítimas com menos frequência do que antes. Mas a cada vez que vejo uma foto, um filme ou uma menção de alguém, me lembro das vítimas da bomba atômica. É algo que acontece menos e menos, à medida em que envelheço e o tempo vai passando. Hoje, devo me lembrar das vítimas uma vez por mês. Pode acontecer de eu me lembrar das vítimas duas vezes em um mês e, em seguida, passar três meses sem me lembrar. Mas a média é de uma vez por mês.
Van Kirk fica em silêncio. Nessas horas, ele parece rever intimamente os fantasmas de Hiroshima: o pesadelo da guerra, o imenso cogumelo atômico, a decisão dramática, a destruição indizível.
É sempre assim: quando uma notícia qualquer de TV fala da guerra ou quando um repórter vem de longe para ouvi-lo sobre o dia histórico, Van Kirk embarca numa viagem feita de palavras, lembranças e silêncios - como agora. Não se recusa a falar. Não se esconde. Porque, desde o momento em que entrou no Enola Gay para voar rumo a Hiroshima, ele sabia que aquela viagem não acabaria nunca.
( A entrevista foi gravada em 2003, para o Fantástico)