O perfil do jurista fictício Carlos Bandeirense Mirandópolis foi apagado da enciclopédia virtual Wikipédia depois de reportagem do G1 ter mostrado que a página criada em 2010 para fazer uma “pegadinha” com um estagiário já foi citada em decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), em documentário de cinema e em trabalho acadêmico de graduação.
Desde o final da manhã desta terça-feira (23), ao procurar por Mirandópolis no Wikipédia, o leitor se depara – em vez da “biografia” do falso jurista – com a informação de que o perfil foi excluído em 23 de fevereiro, após ter permanecido cinco anos e cinco meses sem ser “detectado”.
O perfil de Carlos Bandeirense Mirandópolis foi criado em agosto de 2010 por dois advogados de São Paulo que queriam pregar uma peça num estagiário depois de perceberem que o estudante estava usando – sem checar – informações de internet como base das pesquisas do escritório.
Desde então, o conteúdo do perfil bem elaborado com fotos e detalhes biográficos, se espalhou pela internet, e o personagem passou a ser mencionado como se de fato existisse.
Wikipédia
A Wikipédia é uma enciclopédia virtual de conteúdo aberto, ou seja, que permite a edição e inclusão de textos pelos próprios internautas.
Quem edita ou cria os perfis pode incluir links das fontes consultadas para a produção do conteúdo. A enciclopédia virtual foi criada pela Wikimedia, fundação internacional que, em sua página oficial, afirma que tem o objetivo de levar conhecimento gratuito às populações.
Procurada por e-mail pelo G1, a Wikimedia destacou que os conteúdos das páginas da Wikipédia são monitorados pelos próprios internautas, que atuam como "editores voluntários".
“Um dos princípios fundamentais do Wikipédia é a presunção de boa fé. E a grande maioria dos editores operam em acordo com este princípio. No entanto, é quase impossível impedir por completo a ação de pessoas que queiram manipular o propósito da Wikipédia de ser uma fonte de conhecimento confiável e neutra”, disse a Wikemedia ao G1.
Qualquer um pode se tornar voluntário – não é preciso autorização da fundação internacional – e iniciar modificações para aperfeiçoar as páginas da Wikipédia.
Os editores podem se comunicar entre si por fóruns de discussão que existem em todos os perfis da enciclopédia.
Os usuários mais antigos da Wikipédia adquirem, com o tempo, poder de administrador para fazer modificações consideradas mais sérias, como a retirada de um perfil do ar. Em casos graves ou que gerem ações judiciais, gestores da Wikimedia atuam.
No caso do perfil de Carlos Bandeirense Mirandópolis, a página foi excluída pelo usuário Leon Saudanha, um dos membros da comunidade brasileira de editores voluntários.
“A Wikipédia possui milhares de artigos e é mantida por voluntários, sendo que o único modo de identificar artigos falsos é checando as fontes, e isso não é feito de maneira ostensiva. Além do que, não possuímos supervisão editorial, ficando a tarefa de confirmar a veracidade ou não do que é posto nos artigos sob total responsabilidade de quem edita-os, cabendo a nós, administradores apenas agir quando solicitados”, disse Leon Saudanha em email encaminhado ao G1.
Carlos Bandeirense Mirandópolis
Na Wikipédia, Mirandópolis era apresentado como catedrático da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Foi perseguido durante a ditadura militar (1964-1985) e se exilou em Paris.
Segundo a enciclopédia virtual, na Europa, o jurista fictício conheceu Chico Buarque de Hollanda e inspirou o compositor na música "Samba de Orly", uma parceria entre o próprio Chico, Toquinho e Vinícius de Moraes.
“Segundo ele [Chico Buarque], a composição de Mirandópolis era muito mais bela, porém este nunca permitiu que fosse gravada, pois não queria perpetuar na partitura a tristeza do exílio!", dizia o texto, com toque poético.
Procurada pelo G1, a assessoria de Chico Buarque disse que o compositor não conhece o "jurista". A PUC-SP informou que nunca teve em seus quadros um professor com o nome de Carlos Bandeirense Mirandópolis.
O texto do Wikipédia também dizia que o jurista fictício retornou ao Brasil na década de 1980 e atuou ativamente no comício das Diretas Já.
Decisão do TJ
A participação nos protestos das Diretas Já, que obviamente nunca existiu, é citada em uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de 10 de novembro de 2014.
Mirandópolis é mencionado pela relatora de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que pedia a derrubada da lei estadual que proibiu o uso de máscaras em manifestações.
A lei foi aprovada após a onda de protestos de rua em 2013 e determinou que as máscaras podem ser usadas em eventos culturais, mas, se uma pessoa for presa com o rosto coberto em uma manifestação de rua, deverá ser encaminhada a uma delegacia.
A desembargadora Nilza Bittar negou o pedido para declarar a lei inconstitucional e destacou, no voto, que Carlos Bandeirense Mirandópolis não usou máscara quando participou do comício das Diretas Já, assim como personalidades como Ulysses Guimarães, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro disse que a menção feita pela desembargadora a Carlos Bandeirense Mirandópolis teve como fontes a página do núcleo de memória da PUC do Rio de Janeiro e o filme "Diretas Já".
O Tribunal afirmou ainda que a menção teve caráter meramente ilustrativo, não exercendo qualquer influência ou contribuição jurídica para o embasamento da decisão.
Citação acadêmica
Carlos Bandeirense Mirandópolis também aparece em um trabalho acadêmico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sobre produções artísticas censuradas na ditadura militar.
A estudante, do curso de arquivologia, menciona que Chico Buarque se tornou amigo de Mirandópolis, em viagem à França. O jurista também é citado em um documentário sobre as Diretas Já e em diversos outros sites sobre a ditadura militar e a redemocratização.
A 'criação'
O G1 localizou os “criadores” de Carlos Bandeirense Mirandópolis, os advogados Victor Nóbrega Luccas e Daniel Tavela.
Eles contaram que perceberam uma “dinâmica” entre os estagiários de usar informações da internet para fazer as pesquisas jurídicas.
Decidiram, então, pregar uma peça e mandaram que um dos jovens fizesse uma pesquisa sobre a teoria da Oferta Pública de Associação, que não existe. Para dar veracidade à história, criaram o perfil de Mirandópolis, que seria o autor da tese. “A ideia veio de uma experiência com um estagiário que eu e o Vitor tivemos, e a gente tinha identificado nele uma dificuldade em fazer pesquisa. Particularmente, por ele acreditar em tudo que aparecia na internet. Aí a gente resolveu criar esse personagem e fazer essa experiência didática com ele”, disse Daniel Tavela.
O que os advogados não esperavam era que o estagiário não seria o único a “cair" na brincadeira.
Victor Nóbrega diz que viu com “surpresa” a citação a Carlos Bandeirense Mirandópolis em uma decisão judicial.
“A coisa tomou uma proporção que a gente nunca imaginava. Eu esperava aparecer em alguns blogs, mas não em uma fonte mais séria. Eu gargalhei. Mas, se é engraçado por um lado, é triste por outro, porque as pessoas não estão usando a internet corretamente”, afirmou o advogado.
Segundo os advogados, a foto que ilustrava a página, e que seria uma imagem do suposto jurista, foi adicionada depois da criação do perfil de Mirandópolis, por uma outra pessoa. A produção da GloboNews apurou que a foto é do prefeito de Viena, na Áustria, Michael Häupl.
Especialistas
O G1 também ouviu especialistas sobre o uso de informações da internet. O professor Gilberto Lacerda Santos, da Universidade de Brasília (UnB), diz que o episódio mostra que a sociedade ainda não aprendeu a usar as informações disponíveis na rede.
“Nós estamos ainda tateando essas possibilidades novas e esses problemas, essas situações problemáticas que aparecem aqui e ali só revelam a fragilidade da nossa educação básica. Competiria às pessoas, a nós cidadãos dessa sociedade tecnológica, desenvolver mecanismos, estratégias, habilidades pra que saibamos separar o joio do trigo”, afirmou.
O professor Ronaldo Lemos, do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, diz que a internet é um instrumento importante de pesquisa e comunicação. Mas ressalta que é preciso “desconfiar sempre” e checar as informações.
“A rede é assim, ela vai continuar assim, e não há muito o que a gente possa fazer para mudar isso. O que a gente tem que mudar é a gente poder checar a origem dos fatos, checar a origem das informações. E não ter aquilo que está na rede, só pelo fato de estar postado na internet, como verdadeiro”, afirmou.
“A gente tem que fazer algumas perguntas: quem escreveu essa informação? Quem confirma essa informação? Ela está presente em outras fontes também? É algo que é reconhecido por exemplo, por instituições cientifícas? É fundamental que essa educação para a mídia esteja presente na cabeça das pessoas”, disse.