A ementa do processo do mensalão

sex, 19/04/13
por Alexandre Camanho |

O Supremo Tribunal Federal divulgou a ementa do processo – resumo das decisões tomadas pelos ministros – depois de quatro meses do fim do julgamento do Mensalão. Tendo em vista a complexidade do julgamento, a referida ementa é extensa e diferenciada das habituais poucas palavras utilizadas nos processos judiciais , que se prestam a sintetizar o fato, as razões de decidir e a decisão.

A ementa divulgada pelo Supremo apresenta os fatos, detalha as decisões e teses definidas durante os meses de julgamento (53 sessões) – inclusive a decisão acerca da perda do mandato dos condenados –, argumentos da acusação e da defesa, bem como a pena aplicada a cada um dos 25 réus condenados e o regime de cumprimento. Considerar-se-á publicada – tal como indica o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal – no dia útil seguinte ao da divulgação no Diário de Justiça Eletrônico, ou seja, segunda-feira (22/04/2013). Por ser um documento formulado pelo relator – no caso do Mensalão, o ministro Joaquim Barbosa -, a ementa acaba por se tornar para a defesa um indicativo dos argumentos mais relevantes para o relator em cada ponto discutido, bem como a indicação dos votos vencidos e dos votos vencedores.

Desse modo, no dia 23/04/2013 inicia-se o prazo para que os réus apresentem seus recursos, que terminará em 2 de maio, considerando que a Corte atendeu ao pedido da defesa e dilatou o prazo para 10 dias.

Divulgou-se que na próxima segunda-feira (22/04/2013) o STF disponibilizará o inteiro teor do acórdão – a integralidade dos votos escritos dos 11 ministros e a transcrição dos debates ocorridos durante o julgamento, o que coincidirá com a publicação da ementa e com o início do prazo para apresentação de recursos. Tal documento conta com mais de 8 mil páginas.

A providência adotada pelo Supremo, além de decorrer da complexidade do processo, como dito, é louvável, na medida em que prestigia a ampla defesa e o contraditório, adiantando para a defesa os pontos cruciais do julgamento. Aqui, não há falar em favorecimento: a ampla defesa e o contraditório são postulados que devem orientar todo e qualquer julgamento, em favor de todas as partes, em um Estado Democrático de Direito.

Os próximos passos

sex, 19/04/13
por Centro de Justiça e Sociedade da FGV-Rio |

por Adriana Lacombe Coiro

Há quase 4 meses, o STF encerrou o julgamento do mérito da ação penal 470, o Mensalão.  Começado o novo ano, no entanto, nada parece ter mudado na vida dos condenados. O que está faltando? Quais os próximos passos?

Primeiro, a publicação do acórdão, que tecnicamente ocorrerá na segunda-feira, dia em que serão divulgados os votos dos ministros. E qual a importância do acórdão e dos votos? São peças fundamentais do julgamento. É a partir delas que os advogados conhecerão os detalhes dos argumentos dos ministros, as minúcias das razões de seu voto, indispensáveis para qualquer recurso.

Afinal, muito embora o julgamento tenha sido televisionado, muitos ministros apenas declararam seus votos, sem ler integralmente seus fundamentos. Não basta saber que um ministro absolveu ou condenou. É preciso saber o porquê. Direito fundamental para a defesa dos réus.

A publicação do acórdão tem ainda outro significado: dar início ao prazo para recursos. Recursos estes que não são, em princípio, manobras protelatórias de advogados, mas instrumentos previstos em lei, para garantir a ampla defesa. Desses e de quaisquer outros réus.

No mensalão, há dois recursos previstos no Regimento Interno do STF: embargos de declaração, para resolver eventuais omissões, contradições ou obscuridades dos votos e, para 12 dos réus, também embargos infringentes, recurso para que o tribunal reveja suas decisões nos casos em que houve 4 votos pela absolvição. Há uma discussão de se estes últimos seriam possíveis, mas em caso positivo, podem causar verdadeira reviravolta no julgamento.

Primeiro, pois será designado um novo relator, e deixa de haver revisor. Um novo ministro começará apresentando seu voto, para uma nova composição do STF. Saem os ministros Ayres Britto e Peluso, que tinham votado pela condenação, e entra o ministro Teori Zavaski, que ainda não votou neste processo. Um voto, que pode ser o suficiente para que Dirceu e Delúbio deixem de cumprir pena em regime fechado, ou para que Breno Fishberg passe de condenado a absolvido.

É apenas depois de todo esse processo, da publicação do acórdão, ajuizamento e julgamento dos recursos, que a decisão será cumprida. Que prisões serão efetuadas, e que os mandatos no Congresso de Valdemar Costa Neto, João Paulo Cunha e Pedro Henry serão cassados.

Os recursos serão aceitos? Haverá mudança substancial? Há ainda muitas perguntas, que só o Supremo poderá responder. No meio delas, as certezas: haverá recursos e debates. O ponto final do julgamento ainda está por vir.

Extensão do prazo para defesa levou em conta pluralidade de réus

qua, 17/04/13
por Centro de Justiça e Sociedade da FGV-Rio |

Por Adriana Lacombe Coiro
Em sessão plenária de hoje, o STF decidiu que o prazo para embargos de declaração no mensalão será dobrado, passando para 10 dias. O que chamou a atenção, no entanto, não foi a decisão final, mas seu fundamento.

Entenderam os ministros que nesse caso haveria justificativa legal para dobrar o prazo: um artigo do Código de Processo Civil, que traz expressamente essa possibilidade quando há vários réus, com diferentes advogados. Optaram por aplicar esta regra, muito embora o mensalão trate de direito penal.

O argumento não foi, então, o tamanho do caso, como havia alegado o advogado de José Dirceu, que fizera o pedido, mas sim a pluralidade de réus. Com isso, os ministros pareceram tentar escapar  da visão de que o mensalão seria diferente e, por seu volume, deveria ter os prazos aumentados. Aplicaram uma regra geral, já prevista na legislação. Seus efeitos, no entanto, são ainda incertos, embora potencialmente graves.

Poderão agora os advogados de todos os acusados por formação de quadrilha, por exemplo, em que há sempre um mínimo de quatro réus, solicitar prazo em dobro nos casos em que há advogados diferentes, usando como exemplo a decisão de hoje do Supremo? E o tamanho do processo realmente não importa?

O Supremo decidiu dentro de seu poder discricionário. Aumentou o prazo, o que garante o direito de defesa dos réus, e não atrasa o processo. Deixou, no entanto, algumas questões em aberto.

São questões que, como várias outras geradas pela decisão no mensalão, irão se desdobrar ainda em muitos julgamentos futuros, dentro e fora do Supremo.

Perda de mandato é resposta à marginalização dos agentes públicos

ter, 18/12/12
por Alexandre Camanho |

O julgamento do mensalão emancipou-se – em diversos aspectos – da jurisprudência indulgente com agentes públicos corruptos. Reconciliou a leitura da Constituição com a República.

Ora, juntamente com outros instrumentos recentes – como a Lei da Ficha Limpa – , o devido rigor que o Supremo dispensou aos crimes praticados pelos mensaleiros arejou um sistema político eleitoral até então desgastado e descompassado dos reclamos sociais, notadamente os relacionados ao desenvolvimento do país e ao combate à corrupção que o degenera.

O povo elege seus representantes e não pode se ver refém de uma confiança traída: é preciso que haja efetiva resposta à crescente “marginalização” dos agentes públicos.

Nesse rumo, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento definitivo de que a perda do mandato de parlamentar condenado por crime contra a administração pública, no foro privilegiado do Supremo, não depende de decisão do Plenário da Casa do Congresso em que o parlamentar exerça o mandato popular. É dizer: a perda do mandato é consequência automática da suspensão dos direitos políticos por condenação criminal transitada em julgado.

A discussão orbitava os artigos 15-III (“É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”) e 55-IV (“Perderá o mandato o Deputado ou Senador: IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos”) da Constituição.

Ora, se é certo que a Constituição permite-se licitamente interpretar por qualquer cidadão, instância pública ou segmento privado, não menos certo é que ao Supremo cabe de forma vinculante ditar exegese sobre matéria constitucional, cabendo à Câmara ou ao Senado um “provimento meramente declaratório” para cassar o mandato do parlamentar condenado por crime contra a administração pública, uma vez que a condenação criminal por si opera a restrição dos direitos políticos.

Não há que se falar, portanto, em afronta ao postulado da Separação dos Poderes, mas sim em cumprimento do quanto estabelece a Constituição em matéria de ética e moralidade política, segundo a inquestionável deliberação do Supremo.

Como ponderou o ministro Gilmar Mendes, “do ponto de vista lógico, eu sequer consigo entender que nós aceitemos como válida a aplicação da Lei de Improbidade e da Lei da Ficha Limpa, que reforça a ideia da inelegibilidade, e consideremos hígido o mandato de um deputado preso com trânsito em julgado no exercício do mandato”.

O condenado por crime contra a administração pública perde seu direito de ser visto como representante do povo, justamente porque inverteu a supremacia dos interesses que deveria defender – o privado preponderou ao público.

Reparação dos danos em outro processo

seg, 17/12/12
por Centro de Justiça e Sociedade da FGV-Rio |

Por André Mendes
O último dia do julgamento da ação penal 470 foi curto, mas movimentado. A esperada decisão quanto à cassação saiu. O STF decidiu, por maioria, que os parlamentares condenados criminalmente perdem seus mandatos, cabendo à Câmara dos Deputados apenas declarar tal perda.

Os ministros fizeram também alguns reajustes em penas de multa. Manifestou-se o Procurador Geral da República. Disse que entregaria uma petição fundamentando o pedido de prisão imediata dos réus condenados… após o encerramento do processo.

Mas o Tribunal também tomou outra importante decisão: a de não fixar na sentença um valor mínimo para reparação dos danos causados pelos crimes.

Em suas alegações finais, o Ministério Público Federal havia pedido que fosse fixado na sentença um valor mínimo para reparação dos crimes dos réus do mensalão. O que significa isso?

Toda sentença penal que condena alguém tem um efeito genérico: obriga o condenado a indenizar o dano decorrente do crime. Se alguém é condenado por roubar um carro, fica obrigado a indenizar a vítima pelo valor do carro.

Sendo assim, os réus condenados no mensalão por desvio de recursos, lavagem de dinheiro teriam que reparar seus danos, indenizando os cofres públicos. Ou seja, indenizar o Estado pelos crimes praticados.

O ministro Joaquim Barbosa entendeu que a complexidade dos fatos inviabilizava a fixação de um valor de indenização, ainda que mínimo. Havendo diversas operações, simulações e etapas financeiras descritas no processo, não era possível identificar o valor a ser reparado por cada réu condenado.

Se não há como quantificar o dano causado pelo crime de cada réu poderia o juiz fixar o valor da reparação por esse crime? Não. Se não há meios no processo criminal de se identificar o prejuízo, não há como fixar uma indenização.

Então não haverá reparação dos danos? Poderá haver. Em outro processo. Em um processo civil que indique valores, provas relativas a esses valores e que dê à defesa a oportunidade de se manifestar sobre todos os aspectos. Assim é o devido processo legal.

Efeitos de mais uma nova versão

qua, 12/12/12
por Centro de Justiça e Sociedade da FGV-Rio |

por Ivar A. Hartmann
Não importa qual o critério de medição usado, Marcos Valério é o réu central do processo do mensalão – ainda que não seja o mais poderoso. É o nome mais citado pelos ministros do Supremo em seus votos e tem a maior pena aplicada até agora. O que significarão então as novas declarações de Valério?

O depoimento atestando a participação de José Dirceu em reunião para tratar do sistema de compra de votos seria uma das provas mais fortes contra o ex-ministro. A nova informação mais relevante, porém, é sem dúvida o envolvimento do ex-presidente Lula. O novo testemunho de Marcos Valério faria prova do envolvimento de Lula como figura central na organização do esquema, além de mostrar que o então presidente da República recebeu para uso pessoal valores desviados pelo mesmo mecanismo do mensalão. Se a nova versão for levada a sério, poderia comprovar a prática de corrupção ativa e passiva por Lula.

Mas a credibilidade de Marcos Valério perante os ministros do STF não é boa. Ao ser ouvido durante o processo judicial, Marcos Valério contradisse depoimento prestado à Polícia Federal e desmentiu depoimento prestado à sub-procuradora-geral da República. Joaquim Barbosa afirmou em seu voto que Valério “muda de versão conforme as circunstâncias”. É provável que esse novo depoimento, analisado por um julgador, seria considerado prova frágil.

Na prática, nada do que Marcos Valério fala agora terá qualquer efeito na sua pena em processo que já está terminando. Cabe à Polícia Federal investigar e ao Ministério Público – se entender apropriado – oferecer nova denúncia sobre os fatos novos agora relatados. Somente nesse novo procedimento Valério, se for novamente réu, poderia pleitear a delação premiada. Isso é, caso não mude novamente sua versão.

Constituição tem duas regras sobre perda de mandato

seg, 10/12/12
por Centro de Justiça e Sociedade da FGV-Rio |

por Carolina Haber
Na etapa final do julgamento do mensalão faltava, ainda, decidir o que fazer com o mandato dos réus que ocupam cargos políticos. Novamente, relator e revisor divergiram. Como nas outras vezes, fundamentaram seus votos em dispositivos legais, interpretando-os conforme seu ponto de vista: Joaquim Barbosa defendeu que cabe ao Supremo determinar a perda do mandato e à Câmara acatar sua decisão.

Lewandowski, de outro lado, afirmou que essa decisão é exclusiva dos parlamentares, pois, ainda que a condenação criminal acarrete a suspensão ou perda dos direitos políticos, a Constituição trata de forma especial a perda do mandato político, a ser decidida pela maioria absoluta dos membros da Casa Legislativa.

A Constituição, no art. 15, especifica as hipóteses em que pode haver perda ou suspensão dos direitos políticos, ou seja, do direito de votar e de se eleger, incluindo, entre eles, a condenação criminal definitiva. Mais para frente, no art. 55, trata especificamente da perda de mandato de membro do Congresso, que pode ocorrer, entre outras hipóteses, quando há perda ou suspensão dos direitos políticos (em razão dos casos previstos no art. 15) ou condenação criminal definitiva. Determina, entretanto, regras diferentes para cada um desses casos. Com relação ao primeiro, diz que a perda será apenas declarada pela Mesa da Casa, ou seja, cabe a ela formalizar a decisão do STF; para o segundo afirma que deve haver decisão da maioria dos parlamentares para que ela ocorra.

O ministro Joaquim Barbosa entendeu que não há um tratamento especial para a perda do mandato em caso de condenação criminal definitiva. Aplica-se, portanto, a regra prevista para a suspensão ou perda dos direitos políticos. Ainda que seja uma interpretação possível, afirmar isso significa deixar de lado o tratamento dado pela Constituição aos casos de perda de mandato em razão de condenação criminal definitiva, como se a regra não estivesse lá por algum razão.

Se o legislador não utiliza palavras inúteis, a questão merece maior atenção. Mas parece que, tratando-se do mensalão, não basta condenar os réus a penas de prisão, é preciso ir além e decidir sobre o alcance político dessa condenação. Resta aguardar a sessão desta segunda (10)  para saber como votarão os demais ministros.

Os ausentes

qui, 29/11/12
por Centro de Justiça e Sociedade da FGV-Rio |

Por Adriana Lacombe Coiro
Na sessão de ontem no STF, três ausentes estiveram presentes. Britto e Peluso, ambos aposentados durante o julgamento, assim como Zavascki, que toma posse hoje, foram figuras centrais de importantes discussões entre os ministros.

Britto e Teori apareceram no fim do julgamento, quando o advogado de João Paulo Cunha levantou uma questão de ordem. A defesa do ex-presidente da Câmara disse que, como seu cliente havia sido condenado por lavagem de dinheiro por 6 votos a 5 e apenas 4 dos ministros que o condenaram estavam presentes, não haveria quórum para que fosse votada a dosimetria da pena. Seriam necessários 6 ministros, e haveria apenas 4. A solução, segundo ele, seria esperar o novo ministro, Teori Zavascki, que toma posse hoje.

Questão semelhante havia sido levantada na semana passada pelo advogado de Pedro Correa. Naquele momento, o advogado argumentou que seria necessário o voto de 6 ministros para que fosse preenchido o quórum mínimo necessário para uma votação do STF, conforme prevê o Regimento Interno da corte.

O presidente Joaquim Barbosa, no entanto, argumentou que o quórum de 6 ministros a que o regimento fazia referência era necessário para a realização da sessão, mas isso não significava que os seis precisariam votar. O presidente, então, submeteu a questão ao plenário, que o acompanhou.

A questão gerou hoje acalorada discussão e uma nova posição adotada pelo ministro Marco Aurélio. De acordo com ele, o problema agora era novo. Isso porque a decisão no caso de hoje havia sido por 6 votos a 5, e não por 6 votos a 4, como a anterior.

Para o ministro, a condenação por 6 a 5 aliada à atual composição da corte revelariam uma diferença fundamental: o caso seria, hoje, de empate. Como assim? Marco Aurélio entendeu que, como o Ministro Britto condenara João Paulo Cunha, mas não fixara a pena, seu voto ficara incompleto e, por isso, não poderia ser considerado. Como a condenação havia sido por 6 a 5, sem o voto do Britto, ficaria 5 a 5. E, com o empate, o réu deveria ser absolvido.

A situação era diversa, pois se no caso de Pedro Correa havia maioria para condenar mesmo sem o voto de Britto, o mesmo não aconteceria com João Paulo. Haveria quórum para a realização da sessão, mas não maioria definida para a determinação da pena.

Marco Aurélio foi voto vencido. A maioria entendeu que o voto de Britto vale, com ou sem dosimetria. E que Teori não vota nas penas.

O ministro Peluso, outro ausente na atual fase do julgamento, também apareceu na sessão, ao fazer o que Britto deixou de fazer: deixou definida a dosimetria, ainda que tenha participado apenas de um item do julgamento. Seu voto foi lido em plenário, e no julgamento do crime de corrupção passiva cometido por João Paulo não obteve maioria por pouco. Foi vencido apenas no último minuto, com mudança de voto da ministra Rosa Weber.

Assim, Britto, Teori e Peluso, mesmo ausentes, se fizeram presentes.

Publicada às 8h18

Barbosa terá deveres diferentes como presidente do STF

qua, 14/11/12
por Centro de Justiça e Sociedade da FGV-Rio |

Por Thiago Bottino
No dia 22 Joaquim Barbosa tomará posse como presidente do Supremo Tribunal Federal. Mas o processo do mensalão não estará terminado ainda. Como funcionará o acúmulo de funções de relator do processo com o de presidência do tribunal?

Em tese, não há nenhum problema. Os presidentes, quando assumem, mantêm a relatoria de processos e os levam para deliberação em plenário. Isso é comum e nunca foi óbice para o desempenho das funções de presidente, nem para as funções de relator.

No entanto, especula-se que dados os embates calorosos que ocorreram entre os ministros do Supremo durante o julgamento do mensalão – e Joaquim Barbosa participou de muitos deles – ficaria prejudicada a função de moderador dos debates, papel desempenhado pelo presidente.

Ora, o presidente do Supremo, uma vez empossado, passa a ter deveres e obrigações diferentes daquelas que cabem aos demais ministros. Presidir as sessões é uma delas.

Isso significa que ao assumir a cadeira de presidente, o ministro Joaquim Barbosa passará a atuar como tal. Não se poderia, antes disso, esperar que conduzisse ou “moderasse” os debates, já que essa função não lhe competia. A partir de sua posse como presidente, a posição discursiva se modifica e novas atribuições passarão a ser desempenhadas por ele.

Por outro lado, embora o atual presidente, ministro Carlos Britto, tenha efetivamente adotado uma postura mais serena (em meio ao calor dos debates dos colegas) em vários momentos, outros ministros intervieram para “acalmar os ânimos” de colegas que estivessem mais exaltados em determinados momentos. Não há razão para acreditar que isso será diferente a partir de agora.

Por fim, não há como negar que o processo do mensalão é um caso único. Além de ser um caso complicado (com milhares de páginas, dezenas de condenados, inúmeros crimes etc.), características que por si só já conduziriam a um acirramento de embates, não se pode desprezar o fato de que esse caso tem sido um fator de enorme desgaste entre os ministros. Afinal, julgar um único caso, durante meses, em sessões com longas horas de duração, é um desafio para qualquer ser humano.

Colocando sob essa perspectiva, as características pessoais de Joaquim Barbosa talvez tenham influenciado tanto quanto as características pessoais de Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, Dias Toffoli, Carmen Lucia, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello, Carlos Britto e Cezar Peluso.

O Supremo e a pena de Dirceu

seg, 12/11/12
por Centro de Justiça e Sociedade da FGV-Rio |

Por André Mendes
No julgamento de hoje, o STF condenou José Dirceu a penas que, somadas, totalizaram 10 anos e 10 meses de reclusão. A pena é resultante das condenações pelos crimes de formação de quadrilha – 2 anos e 11 meses – e corrupção ativa – 7 anos e 11 meses. Como os ministros chegaram a essas penas?

O ministro Joaquim Barbosa aumentou a pena-base de Dirceu por considerar desfavoráveis as chamadas circunstâncias judiciais. Entendeu, por exemplo, que Dirceu desempenhou papel central na escolha de parlamentares para o oferecimento de vantagens no crime de corrupção ativa. Entendeu também que o fato de Dirceu ser, à época, ministro-chefe da Casa Civil, torna o crime mais grave.

Na segunda fase de aplicação da pena, assim como no caso de Marcos Valério, no julgamento do núcleo publicitário, o ministro Joaquim Barbosa entendeu que Dirceu dirigiu as atividades de outros réus. Por essa razão, aumentou sua pena. Quando demonstrado que um réu dirigiu as atividades de outros réus na prática de crimes ou promoveu e organizou o crime, a lei penal permite que a pena seja agravada em razão dessa circunstância.

Na terceira fase de aplicação de pena, assim como nos demais casos, o ministro Joaquim Barbosa entendeu também pela incidência do critério do denominado crime continuado. Os 9 crimes de corrupção ativa pelos quais Dirceu foi condenado possuíam um elo de ligação no tempo. Seriam promessas de vantagens feitas a parlamentares diferentes, mas em circunstâncias similares.

Pelo crime continuado, o agente pratica diversos crimes, mas pelas circunstâncias de tempo, lugar e modo de execução em que foram cometidos, os crimes seguintes são considerados como continuação do primeiro, constituindo então crime único.

Para evitar penas desproporcionais, criou-se essa ficção jurídica da continuidade delitiva, pela qual se aplica a pena de um dos crimes, aumentando-se na fração de 1/6 a 2/3. Em razão dos 9 crimes de corrupção ativa, o ministro Barbosa aplicou o aumento máximo de 2/3 para Dirceu.

Tendo em vista o total de 10 anos e 10 meses a que foi condenado Dirceu, ele deverá iniciar o cumprimento da pena em regime fechado, pois o Código Penal prevê tal regime no caso de condenação superior a 8 anos.

Contudo, Dirceu deve permanecer em regime fechado por pouco mais de 1 ano e 9 meses, quando então terá direito à progressão do regime fechado para o semiaberto, no qual poderá trabalhar fora do estabelecimento penal durante o dia, retornando à noite. A Lei de Execução Penal prevê a chamada progressão de regime quando o condenado cumpre 1/6 da pena e mostra bom comportamento atestado pelo Diretor do estabelecimento penal.

A pena privativa de liberdade: a prisão

seg, 12/11/12
por Carlos Velloso |

O Supremo Tribunal Federal está fixando as penas aplicáveis aos réus condenados na ação penal 470, denominada mensalão. O tema convida-nos a algumas reflexões.

O Código Penal, art. 32, estabelece três espécies de penas: privativas de liberdade, restritivas de direitos e a multa. Dentre as primeiras, têm-se a reclusão e a detenção; quanto às restritivas de direitos, as principais são a prestação de serviços à comunidade e a interdição temporária de direitos.

A distinção entre as penas de reclusão e de detenção situa-se, praticamente, no regime de seu cumprimento. É dizer, na pena de reclusão ter-se-á o seu início no regime fechado e a sua progressão para o semiaberto e aberto. Na pena de detenção não é admissível o regime inicial fechado. Ele poderá iniciar-se no semiaberto ou aberto, salvo necessidade de transferência para o regime fechado (C.P., art. 33). No regime fechado, a execução da pena será em estabelecimento de segurança máxima ou média; no semiaberto, em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; no aberto, em casa de albergado ou estabelecimento adequado (C.P., art. 33, §1º).

As penas privativas de liberdade deverão ser executadas de forma progressiva, segundo o mérito do condenado, com observância dos seguintes critérios: a) o condenado a pena superior a oito anos, começará no regime fechado; b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a quatro anos e não excede a oito, começará no regime semiaberto; c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto (C.P., art. 33, §2º). Manda o Código, ademais, que, na determinação do regime inicial de cumprimento da pena, serão observados os critérios do art. 59. E que o condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito (art. 33, § 3º). Deverá ser observada, ademais, a Lei de Execução Penal, Lei 7.210/84, especialmente os arts. 6º, 87 a 95, 110 a 119 e 203, § 2º.

Assim posta a questão, vamos a algumas reflexões.

Um velho juiz criminal de Minas, humano e sábio, advertia: a cadeia é para os delinquentes perigosos. De certa forma, essa sentença reflete a teoria penitenciarista americana, a “incapacitation”: os perigosos, enquanto estiverem presos, não vão delinquir, não vão causar danos às pessoas. E a ressocialização de delinquentes, nas prisões brasileiras, é uma quimera. A propósito, há um livro que acaba de sair – “Carcereiros” – de Dráuzio Varella, médico do sistema penitenciário paulista, que vale a pena ser lido e meditado.

De outro lado, é oportuno invocar a lição sempre atual de Cesare Beccaria, cujo livro, “Dos Delitos e das Penas,” marco do direito penal moderno, editado na segunda metade do Século XVIII, de que a pena há de ser humanizada. Essa humanização, nesta quadra de século, desaconselha penas pesadas.  Tratando-se de réu primário, sem antecedentes criminais, começa-se, de regra, na fixação da pena, do grau mínimo, certo que a possibilidade de prescrição não constitui agravante ou causa de exasperação da pena. O juiz deve ser rigoroso com o crime e piedoso com o homem que delinquiu. E quanto a réus primários, sem antecedentes criminais, a existência da ação penal, de regra, é constrangedora para o acusado e sua família. Já representa, portanto, uma pena. Recomendam-se, para os condenados não perigosos, penas restritivas de direitos, como a prestação de serviços à comunidade e a interdição temporária de direitos.

Dizíamos que a cadeia deve ser para os perigosos. No ponto, cumpre registrar que, segundo levantamento feito pelo CNJ,[1] o Brasil tem uma população carcerária que é a terceira maior do mundo. São cerca de 500 mil presos, com um deficit de aproximadamente 200 mil vagas. Na mesma linha, o artigo de Robson Pereira.[2] Acresce que, somente no Estado de S. Paulo, a informação corrente é que há mais de 150 mil mandados de prisão sem cumprimento. E quantos há em todo o Brasil? Isso quer dizer que os juízes criminais estão trabalhando duro. A impunidade não corre por conta da Justiça.

Ao cabo, vale anotar o registro do juiz Luciano Losekann, coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do CNJ, de que “o uso excessivo da prisão provisória no Brasil como uma espécie de antecipação da pena é uma realidade que nos preocupa. Os juízes precisam ser mais criteriosos no uso da prisão provisória.”[3]

Infelizmente, acrescentamos: o direito penal do inimigo faz escola.



[1] Portal CNJ, “Brasil tem terceira maior população carcerária do mundo.” www.cnj.jus.br

[2] Pereira, Robson, “População carcerária dobrou, mas cresce menos”, CONJUR, 13.06.2011.

[3] Portal do CNJ, citado.

Crime Continuado

qui, 08/11/12
por Centro de Justiça e Sociedade da FGV-Rio |

por Vitor Pinto Chaves

Logo no início da sessão de julgamento desta quarta-feira, o ministro revisor Ricardo Lewandowski levou ao plenário memorial distribuído aos ministros pelo advogado do réu condenado Marcos Valério. Para a defesa desse réu, o Supremo deveria levar em consideração na aplicação da pena a figura do crime continuado com relação aos crimes contra a Administração Pública (desvios de recursos públicos e corrupção). Não seria o caso de concurso material de crimes. Mas qual é a diferença desses dois conceitos para o julgamento do mensalão?

O pleito da defesa foi desconsiderado pelo ministro relator Joaquim Barbosa, que continuou seu voto sobre o réu Ramon Hollerbach. A questão veio à tona, entretanto, no voto do ministro Marco Aurélio. Para ele, tanto para Hollerbach quanto para Valério deveria aplicada a figura do crime continuado. Em sua interpretação, os crimes referentes aos desvios de recursos públicos e corrupção ativa, por serem crimes de mesma espécie, não devem ter suas penas somadas de forma bruta (concurso material). Seriam crimes que violam o mesmo bem jurídico (a Administração Pública) e que, no caso concreto, foram praticados de maneira semelhante. Qual seria o impacto da adoção do crime continuado?

A figura do crime continuado é uma ficção jurídica. Implica apenas a aplicação da pena do crime mais grave, aumentando-a de 1/6 a 2/3 em razão dos demais crimes, considerados nessa hipótese, como continuidade do primeiro. Assim, na questão da Câmara dos Deputados, a pena a ser aplicada, de acordo com o ministro Marco Aurélio, seria a de apenas um crime, acrescida de fração. A diferença prática, como enfatizou o ministro, seria, por exemplo, a redução da pena do réu Marcos Valério de 40 para 15 anos.

O decano do tribunal, ministro Celso de Mello, discordou de seu colega. Para ele, a consideração da figura do crime continuado para os diferentes crimes reconhecidos pelo STF não seria cabível. Não haveria vínculo objetivo tão claro entre as ações. Além de ser um incentivo à prática de vários delitos. Essa posição prevaleceu.

Na dúvida, em favor do réu

qua, 24/10/12
por Centro de Justiça e Sociedade da FGV-Rio |

Por Fernando Leal
Nesta quarta (24), o Supremo continuou a tarefa de determinar as penas dos crimes cometidos por Marcos Valério. Não sem discussões. A mais importante dizia respeito à possibilidade de aplicação de uma mudança no Código Penal a respeito do crime de corrupção ativa no caso.

Na sua redação original, o Código previa uma pena de 1 a 8 anos para o crime. Uma lei de novembro 2003, no entanto, estabeleceu novo intervalo para a pena, que passou a poder variar entre 2 e 12 anos. Qual das duas leis deveria ser aplicada?

A pergunta é fundamental. Quem é condenado precisa poder conhecer os motivos pelos quais sua pena foi estabelecida em um determinado valor para que se possa analisar se ela é proporcional à gravidade do crime específico que gerou a condenação. Sua importância se justifica porque envolve, em síntese, a preservação do tão citado princípio da individualização da pena. O fato da condenação não faz desaparecer o direito de defesa do réu.

A resposta para a questão passa necessariamente por dois fatores. O primeiro diz respeito à data em que o crime aconteceu. O segundo, à consideração do princípio de que, quando houver dúvida, decide-se favoravelmente ao réu. Esse princípio, por sinal, acabou prevalecendo em todos os casos relevantes de empate no processo – seja na decisão quanto à culpa ou inocência de um acusado (5 votos pela absolvição e 5 pela condenação), seja na decisão quanto à fixação da pena (com 5 ministros votando por um valor e 5 ministros votando por outro).

O ministro Joaquim Barbosa iniciou o seu voto afirmando que o crime de corrupção ativa teria ocorrido no ano de 2004, quando ainda se constatava a transferência de recursos do fundo Visanet para alimentar o esquema de compra de votos reconhecido pelo Tribunal. Neste caso, a lei nova deveria ser aplicada.

Para o ministro Ricardo Lewandowski, contudo, o crime tinha ocorrido em meados do ano de 2003, quando se ofereceu vantagem a Henrique Pizzolato, então diretor de marketing do Banco do Brasil, para beneficiar a empresa de Marcos Valério. Nesse caso, a lei a aplicar seria a antiga.

Questionado pelos demais ministros, Joaquim Barbosa disse ter dúvidas sobre quando o crime havia sido, de fato, consumado.  E, como decidiu a maioria dos ministros, se havia dúvida, ela deveria falar a favor do réu. Isso implicava a aplicação, no caso, da norma antiga, que previa penas máximas e mínimas menores. Manter a aplicação da lei nova, mesmo reconhecendo que os crimes se consumaram antes, violaria garantias fundamentais. A lei penal, em regra, não se aplica a fatos passados, salvo para beneficiar o réu. E esse não era o caso.

Barbosa, aparentemente convencido, cedeu à visão da maioria e mudou o fundamento do seu voto para aplicar a lei mais branda. Mas manteve a pena que tinha estabelecido, calculada com base na lei nova.

Teria havido violação do princípio da individualização da pena? Para o ministro relator, a resposta foi negativa. A pena não precisaria ser recalculada porque, de um jeito ou de outro, a gravidade do crime justificaria a pena grave dada a Valério. Mudou-se, portanto, a lei aplicável, mas manteve-se o resultado, agora com novo fundamento. Visão insuficiente, porém, para convencer os demais membros da corte, que se juntaram ao Ministro Lewandowski e votaram pela pena estabelecida pelo revisor.

Penalistas estrangeiros trazidos ao debate

qua, 24/10/12
por Carlos Velloso |

Indagam alguns, por que ministros do Supremo Tribunal Federal, juízes de alto saber jurídico, no julgamento da ação penal do mensalão, citaram penalistas estrangeiros, sobretudo alemães e italianos?

A resposta é fácil.

É que o Direito brasileiro inspirou-se, fortemente, no direito europeu continental. Começo com o Direito Constitucional. Nenhum constitucionalista brasileiro deixou de ler Santi Romano e Emmanuele Orlando, os fundadores da escola moderna italiana de direito público. Ainda na Itália, Paolo Biscaretti di Ruffia. Na França, Carré de Malberg e Gaston Gèze. Mencionamos os clássicos. Hoje, o nosso Direito Constitucional ainda se inspira no direito europeu, mas existe outra vertente, o constitucionalismo norte-americano, que deflui de decisões da Suprema Corte. O due process of law, com caráter substantivo, incorporado ao Direito Constitucional brasileiro, é bem um exemplo.

Vamos ao Direito Penal.

Antes de indicarmos os penalistas europeus que exerceram enorme influência no Brasil, é preciso dizer uma palavra a respeito dos nossos clássicos, Nelson Hungria, Heleno Fragoso, Aníbal Bruno, J. Frederico Marques, Roberto Lira. Nelson Hungria, que foi ministro do Supremo Tribunal, foi e é considerado o maior penalista brasileiro de todos os tempos, o príncipe dos penalistas. Quem não conhece os trabalhos de Hungria e dos penalistas mencionados, não sabe Direito Penal.

Na Alemanha – cuidamos, repetimos, apenas dos clássicos – merecem referência Von Feuerbach, Merkel, Binding, Von Liszt, Max Ernest Mayer, Von Hippel Mezger, Helmuth Mayer, Welzer e, hodiernamente, os mestres e pesquisadores do Instituto Max Planck.

Entre os italianos, vale mencionar, por primeiro, Carnellutti, que não foi apenas processualista. Ele foi, também, notável penalista. Carrara, o grande Carrara, foi mestre de muitos e muitos. Seguem-se Florian, Manzini, Maggiore Ranieri, Bettiol, Pannain.

Na França, sobressaem os livros e os trabalhos de Rossi, Chauveau e Hélie, Trébutien, Ortolan, Tissot, Villey, Normand, Garrud e Vidal. Na Espanha, a obra monumental de Luis Jiménez de Asúa. Na Argentina, os livros de Sebastián Soler e, contemporaneamente, de Zaffaroni, são magistrais.

A contribuição dos penalistas brasileiros, contemporaneamente, tem sido intensa e extensa. Menciono, por todos, Miguel Reale Filho, Francisco de Assis Toledo, René Ariel Dotti e Cezar R. Bitencourt. Neste artiguete, ressaltamos a contribuição estrangeira, clássica, especialmente a que veio da Alemanha, da Itália, da França, da Espanha e, na América Latina, da Argentina.

Essas contribuições estimulam o estudo do direito penal comparado, estudo, entretanto, que há de ser feito com cautela, dado que, como advertiu Heleno Fragoso, em relatório apresentado ao colóquio realizado pelo Instituto Max Planck, em 1978, “nenhum trabalho válido será possível sem ter presente a realidade criminológica e o contexto econômico, social e cultural, bem como a experiência do direito em ação no estrangeiro, no sentido que lhe dava Roscoe Pound, e, como lembra o prof. Schultz, do direito vivo, de Ehrlich.”[1]

Nessa linha, vale a pena trazer ao debate a receita de Nelson Hungria do bom juiz: “Longe de mim afirmar que o juiz não deva ilustrar-se, consultando a lição doutrinária e pondo-se em dia com a evolução jurídica; mas, se ele se deixa seduzir demasiadamente pelo teorismo, vai dar no carrascal das subtilitates juris e das abstrações inanes, distanciando-se do solo firme dos fatos, para aplicar, não a autêntica justiça, que é sentimento em face da vida, mas um direito cerebrino e inumano; não o direito como ciência da vida, mas o direito como ciência de lógica pura, divorciado da realidade humana; não a verdadeira justiça, que é função da alma, voltada para o mundo, mas um direito postiço, arrebicado, sabendo a palha seca e cheirando a naftalina de biblioteca.”[2]

Sábias palavras!



[1] Revista de Direito Penal, nº 24, Forense, ps. 17-25.

[2] Hungria, Nelson, Discurso de posse no cargo de desembargador do Tribunal de Justiça do então Distrito Federal, em 16/06/1944.

Supremo faz História e reconcilia-se com o conceito de República

qua, 24/10/12
por Alexandre Camanho |

O julgamento da Ação Penal 470 estabeleceu parâmetros de importância transcendental para o Direito e para o país.

O Ministério Público e a Polícia, ao longo dos últimos vinte anos, empenharam-se obsessivamente na produção de um acervo probatório de qualidade. Esta preocupação crescente decorreu da persistente mania de setores do Judiciário de exigir, abruptamente e muitas vezes sem adequada pertinência, novas balizas na investigação ou na instrução criminal. Assim, mesmo que comprovada a materialidade e a autoria do crime, todo o esforço despendido em prol da condenação resultava frustrado, porque se invocava a cada momento uma nova exigência e se anulava a ação penal.

Por força deste comportamento, inúmeras operações viram-se sabotar ao longo dos últimos anos, resultando na absolvição ou no reconhecimento da prescrição de quase todos os inquéritos e ações penais oferecidas ao Supremo Tribunal Federal desde a nova Constituição. As demais Cortes (STJ, Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça) por sua vez, seguiam tais orientações, a emulavam, desdobravam-na e a multiplicaram. Exemplos claros disso foram as operações Satiagraha e Castelo de Areia no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.

Talvez esse agir excessivamente garantista da cúpula judicial brasileira se devesse a uma preocupação tardia com a liberdade, que, subtraída na ditadura, foi sem embargo devolvida à nação com a Constituição de 1988.

Certo é que agora – talvez porque o próprio Supremo Tribunal Federal incumbiu-se da investigação, não tendo quem lhe opusesse qualquer censura – tivemos a oportunidade de presenciar um momento histórico no Brasil: não apenas o fato de um julgamento, finalmente, chegar ao seu termo com a superação de todas as armadilhas e óbices de índole formal; não apenas o fato de um julgamento avaliar o mérito e condenar os investigados; mas, sobretudo, o momento de se ver mandatários do povo brasileiro – como bem disse o ministro Celso de Mello, “não políticos corruptos, mas corruptos políticos” – responderem cabalmente por suas ações de modo eficiente.

É dizer: a Suprema Corte reassumiu um papel de vanguarda na defesa da República, e do quanto isto significa em sua essência: exercício responsável da coisa pública, na previsão, aplicação e execução de recursos públicos e no exercício de todas as funções inerentes ao cargo público ocupado.

Além disso, o Supremo, mais uma vez – já o tinha feito, em alguma medida, por ocasião do julgamento da Lei da Ficha Limpa – enalteceu o conceito de Democracia. Afinal, a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito: todo o Poder vem do Povo e é exercido em seu favor, devendo as leis ser editadas conforme o princípio democrático e não conforme o interesse mesquinho de alguns.

As condenações na Ação Penal 470 significam proclamar que os mandatários do povo, como tais, devem primar pelo exercício ilibado e irretocável de seus mandatos. A investidura é representativa do povo e em seu nome deve ser exercida.

O Supremo poderia ter-se detido nas cantilenas garantistas absolutamente desvirtuadas de todo o acervo probatório; em vez disso, transcendeu-as e adentrou a porta estreita, a que impõe a acurada análise de cada singular argumento, a análise de todas as provas que integram os autos.

Embora tenha reafirmado expressamente a adoção no Brasil da Teoria do Domínio do Fato, prestigiou, independentemente de rótulo acadêmico, a interpretação sistemática da prova para a condenação dos envolvidos; superou os anacronismos do conceito de quadrilha, reconhecendo, em seu lugar, o contexto de organização criminosa – empreendimento ainda mais sofisticado, cuja tipificação ainda pende de discussão –; por fim, o Supremo afastou-se completamente da leitura libertina e pró-criminoso que a jurisprudência  fazia da ampla defesa, permitindo, assim, uma investigação eficiente que culminou em um julgamento histórico.

Disso tudo repontou um marco divisor: o Supremo reconciliou-se com o conceito seminal de República e fez por merecer o reconhecimento de ser o mais alto Tribunal do país, porque a ele cabe, mais do que a ninguém, defender as garantias e princípios da Constituição. Neste julgamento, é certo que o fez magistralmente. Fez, a um só tempo, Justiça e História.



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