por Carlos Velloso
Indaga-se se seriam cabíveis, no Supremo Tribunal Federal, embargos infringentes em ação penal originária. Alguns juristas, porque a Lei 8.038, de 1990, que institui normas procedimentais para a ação penal originária, teria silenciado a respeito, concluem pela inexistência deste.[1]
Mas a questão não se resolve dessa forma.
Primeiro que tudo, é preciso reconhecer que a Lei 8.038, de 1990, institui normas para os processos que especifica, perante o STJ e o Supremo Tribunal Federal. O processo da ação penal originária é um desses processos especificados na Lei 8.038/90, artigos 1º a 12. Passo a passo, a lei estabelece o procedimento a ser observado: o prazo que ao Ministério Público é concedido para o oferecimento da denúncia (art. 1º); diligências complementares poderão ser deferidas pelo relator, com interrupção do prazo concedido para a denúncia (§ 1º); se o indiciado estiver preso, o prazo para a denúncia será de cinco dias (§ 2º, “a”), as diligências complementares não interromperão o prazo, salvo se o relator, ao deferi-las, determinar o relaxamento da prisão (§2º, “b”).
E segue a lei disciplinando o processo da ação penal originária, minuciosamente, até o findar da instrução, quando estatui, no art. 12, regras a serem observadas no julgamento, estabelecendo: “o Tribunal procederá ao julgamento, na forma determinada pelo regimento interno, observando-se o seguinte: I – a acusação e a defesa terão sucessivamente, nessa ordem, prazo de uma hora para sustentação oral, assegurado ao assistente um quarto do tempo da acusação; II – encerrados os debates, o Tribunal passará a proferir o julgamento, podendo o Presidente limitar a presença no recinto às partes e seus advogados, ou somente a estes, se o interesse público exigir.”
Tem-se, então, que a Lei 8.038, de 1990, disciplinou o processo da ação penal originária no Supremo Tribunal. Não o fez, entretanto, integralmente, mas até o julgamento da ação (Lei 8.038/90, art. 12).
É conferir: finda a instrução, segue-se o julgamento, na forma determinada no regimento interno – art. 12 da Lei 8.038 — observando-se, no julgamento, além do regimento interno, as regras dos incisos I e II do mesmo art. 12 da Lei 8.038. Aos atos subsequentes ao julgamento, porque com relação a eles a lei nada dispôs, aplica-se o regimento interno, parece-nos evidente, certo que a citada Lei 8.038, de 1990, referindo-se, expressamente, ao regimento interno, reconheceu a sua existência e aplicabilidade naquilo que ela, Lei 8.038, não
Verifica-se, portanto, que a Lei 8.038, de 1990, não extinguiu, no ponto, recursos inscritos no regimento interno do Supremo, como afirmado por alguns. Ao contrário, silenciou-se a lei.
Outros — que não são do ramo — invocam a Constituição, afirmando que ela também é silente. Ora, a Constituição jamais cuidou de recursos internos. Ela dispõe a respeito, apenas, dos recursos constitucionais: (i) o recurso extraordinário (C.F., art. 102, III e alíneas) e (ii) o recurso ordinário constitucional (C.F., art. 102, II e alíneas).
É oportuno invocar, no ponto, relativamente à Lei 8.038, o velho brocardo jurídico “ubi lex voluit dixit, ubi noluit tacuit” – quando a lei quis, determinou, sobre o que não quis, silenciou-se; ou este outro: “lex, si aliud voluisset, expressisset” – a lei, se o quisesse, o expressaria claramente.[2]
Os brocardos jurídicos, anota Vladimir Passos de Freitas,[3] invocando Orlando Gomes, representam “uma condensação tradicional de princípios gerais.”[4] Os brocardos, leciona Miguel Reale, lembra Vladimir, “se nem sempre traduzem princípios gerais ainda subsistentes, atuam como ideias diretoras, que o operador do direito não pode a priori desprezar.”[5]
O Regimento Interno do Supremo Tribunal estabelece que cabem embargos infringentes à decisão não unânime do Plenário ou da Turma que julgar procedente a ação penal (art. 333, I) e que “o cabimento dos embargos, em decisão do Plenário, depende da existência, no mínimo, de quatro votos divergentes, salvo nos casos de julgamento criminal em sessão secreta.” (Art. 333, parágrafo único). Sessão secreta, após a Constituição de 1988, não há mais, felizmente. (C.F., art. 92, IX).
O Supremo Tribunal, “sob a égide da Carta Política de 1969 (art. 119, § 3º, “c”), dispunha de competência normativa primária para, em sede meramente regimental, formular normas de direito processual concernentes ao processo e ao julgamento dos feitos de sua competência originária ou recursal. Com a superveniência da Constituição de 1988, operou-se a recepção de tais preceitos regimentais, que passaram a ostentar força e eficácia de norma legal (RTJ 147/1010; RTJ 151/278), (…).”[6]
Ora, conforme vimos, a Lei 8.038, de 1990, disciplinou o processo da ação penal originária apenas até o término da instrução. Finda esta, “o Tribunal procederá ao julgamento, na forma determinada pelo regimento interno” (art. 12), observando-se, no julgamento, o disposto nos incisos I e II do citado art. 12. É dizer, a partir daí, a partir do julgamento, aplicam-se as disposições do Regimento Interno, estando entre elas a que estabelece os embargos infringentes.
Na era dos direitos, dos direitos garantidos,[7] seria inconcebível interpretação restritiva, voluntarista, em detrimento do direito de defesa, da liberdade, assim do devido processo legal, uma das mais relevantes garantias constitucionais (C.F., art. 5º, LV). A propósito, convém assinalar que, em termos de garantir direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal jamais falhou.
[1] Por todos, Strek, Lênio Luiz, “Não cabem embargos infringentes no Supremo”, CONAMP, em www.conamp.org.br/lists/artigos/dispform.aspx.
[2] Freitas, Vladimir Passos de, “Os pouco conhecidos e lembrados brocardos jurídicos”, em “Consultor Jurídico, ” 24.03.2013, www.conjur.com.br.
[4] Gomes, Orlando, “Introdução à Ciência do Direito”, Forense, p. 50.
[5] Reale, Miguel, “Lições Preliminares de Direito”, Saraiva, p. 315
[6] AI 727.503-AgR-ED-EDv-AgR-ED, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário, DJE de 06.12.2011, em www.stf.jus.br/jurisprudência.
[7] Bobbio, Norberto, “A Era dos Direitos”, Ed. Campus, 1992.