2014: ‘Strangeways, here we come’

seg, 30/12/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Vou começar logo explicando a citação – algo necessário para quem tem menos de 40 anos e/ou não é fã dos Smiths. Esse é o título do último álbum de estúdio dessa banda – e eu quis usá-lo para o abrir o breve post de hoje por dois motivos. O primeiro é que Morrissey está mais do que nunca no meu imaginário, uma vez que escolhi sua autobiografia (ainda inédita no Brasil), como principal leitura do meu fim de ano – aguarde um longo comentário neste mesmo espaço assim que eu terminá-la (e está não é uma promessa de ano novo que eu pretendo descumprir!). O segundo é que aquilo que a frase anuncia (que em português, na minha tradução sempre apressada, poderia passar por “Caminhos estranhos, aqui vamos nós”) parece se encaixar perfeitamente nos desígnios do pop para 2014.

Você, tanto quanto eu, deve estar no limite de ouvir previsões e tendências para o ano que vem. É a maneira que os críticos, repórteres, blogueiros e similares têm de preencher seus espaços nesta época em que, presumivelmente, quase nada acontece. Não se preocupe que eu não vou perder tempo com isso, até porque eu não acho que nesta temporada não tenham boas coisas acontecendo. Ótimos filmes estão ainda frescos nas telas de cinemas – em especial por aqui, onde os bons lançamentos mesmo (aqueles com boas chances de estar entres os premiados das cerimônias vindouras) só estreiam por agora. Posso apostar que nessa pilha de CDs pegando poeira aí na sua mesa – ou na lista infindável de álbuns que você baixou nas últimas semanas – ainda tem coisa que você nem ouviu, verdadeiros tesouros que correm o risco de serem “atropelados” pelos novos sons que vão abrir 2014 (sim, porque esses mesmos jornalistas já estão preocupados em preencher seus espaços culturais de janeiro e fevereiro com as tais previsões que depois ninguém nunca vem cobrar lá na frente se elas se cumpriram de fato – mas eu divago….). E o que dizer dos livros? – os que você comprou para ler nesses feriados, ou mesmo aqueles que você ganhou de amigo secreto, se é que alguém ainda dá livro como presente de amigo secreto…

A cultura pop nunca para de oferecer coisas fantásticas – não importa se os jornais, revistas, sites, oráculos e similares tentem te convencer do contrário. O pop é uma fonte infinita de provocações. Eu mesmo, passando por Londres nesses dias entre Natal e Réveillon tive de me controlar para não me afogar nas opções culturais que são oferecidas nesta época do ano – ao chegar na cidade bem no dia 25, depois de ficar quase paralisado sem ação só de conferir os filmes que estavam em cartaz, decidi ficar em casa (isto é, na casa do meu irmão, que é residente) e ver o episódio final da quarta temporada de “Downton Abbey”, mesmo sem ter conferido sequer um capitulo além do trágico final da terceira temporada (a “brigada do spoiler” pode sossegar: não vou entregar nada aqui, até porque algumas coisas nesse “especial de Natal” ficaram bastante nebulosas para este que não acompanhou os episódios anteriores, como por exemplo “o mistério de Edith”, “o desabrochar de Rose”, e “a escolha de Mary”, que continua uma chata…).

Como sempre, acabei por priorizar as visitas às exposições mais interessantes, começando pela de Mira Schendel, na Tate Modern. Que é simplesmente sensacional. Tive mais de um momento de prazer andando pelas salas vazias da mega mostra desta artista que nasceu na Suíça, mas teve todo seu desenvolvimento artístico no Brasil. Vagar pelos salões da Tate praticamente sozinho é um raro prazer – raro e também duvidoso, já que a contrapartida é que eu só estava tão desacompanhado assim porque a exposição obviamente não era das mais populares (no andar debaixo, o mesmo espaço decorado com obras de Klee, um artista que eu sempre considerei mais um ilustrador, além de um bom teórico de arte, estava abarrotado de turistas, em pleno dia 27 de dezembro, se acotovelando para conferir suas diminutas criações). Azar de quem não quis viver a experiência dos trabalhos de Mira, que foi uma das primeiras artistas plásticas que conheci.

Sob o risco de ser acusado de novamente divagar, enveredo agora por um parágrafo em sua memória. Na primeira metade dos anos 80, logo que sai da faculdade, fui trabalhar numa galeria de arte que infelizmente já não existe mais, a Paulo Figueiredo. Foi um período riquíssimo da minha vida, em que eu tive contato com vários talentos brasileiros das artes – havia uma certa “geração 80″ nascendo, ao mesmo tempo em que a “galeria do Paulinho”, como era carinhosamente chamada, expunha grandes nomes como Tomie Othake e Mira Schendel! A tentação de contar algumas historias desse tempo é grande, mas vou focar agora só em Mira, que tinha uma relação especial com aquele espaço. Suas obras, de um rigor estético que eu ainda não conhecia, eram extremamente frágeis e difíceis de serem manuseadas (até hoje tremo só de saber que um trabalho é feito em têmpera!), mas mais frágil de tudo era a saúde de Mira – que viria a morrer não muito tempo depois de eu deixar a galeria (1985). Eu sempre ia buscá-la de carro, numa Brasília velha que eu tinha, e vínhamos batendo longos papos, sempre regados com seu forte sotaque (alemão) e intercalados com súplicas de que eu fosse mais devagar – mais devagar do que os 20km/h que o velocímetro marcava! – para que sua coluna não sofresse quando eu passava nos buracos. Ela sempre chegava na galeria reclamado para o Paulinho da minha condução, mas era sempre eu que ela pedia que fosse buscá-la – numa prova de afeição velada, que se materializou quando um dia ela me deu uma de suas têmperas com uma letra “Z” (de Zeca) estampada, e que é, claro, até hoje a peça mais valiosa (pelo menos para mim) da minha coleção.

Eram historias como essa que me cruzavam a mente enquanto eu visitava a Tate. E foi com uma mistura de uma grande satisfação com um ligeiro desconforto (pelo fato da exposição estar vazia) que sai de lá para a nova Serpentine Gallery – aberta recentemente, numa construção bem próxima à galeria original, reformada pela arquiteta iraquiana Zaha Hadid. E mesmo preparado “psicologicamente” para ver uma exposição dos irmãos Chapman (famosos, entre outras coisas, por substituírem bocas e narizes dos manequins mirins de suas esculturas por órgãos sexuais) devo dizer fiquei ainda mais desconfortável – o que é um bom sinal, afinal, não é esse um dos objetivos da boa arte?

Os “velhos truques” de Jake e Dino – os irmãos Chapman – já nem me incomodavam mais. Lá estavam suas crianças deformadas, vitrines com miniaturas de mortos vivos (muitas lembravam aquelas cenas em que os zumbis de “Guerra mundial Z” escalavam muros enormes!), reproduções de genitálias variadas. Mas mais forte do que isso eram as ultra realistas estátuas de homens vestidos como membros da Ku Klux Klan que pareciam visitar a exposição com você – e apreciar tudo com surpreendente desenvoltura. Calçando meias coloridas e chinelão, essas figuras ganhavam detalhes ainda mais verossímeis, que só faziam aumentar o desconforto pelos corredores. Não eram uma ou duas, mas dezenas delas, criando uma sensação de que toda a arte ali era feita sob medidas para eles!

Saí literalmente desorientado, e tentei espairecer no Soho, visitando minha loja de discos favorita em Londres, a Sister Ray. Mas mesmo depois de conferir a seleção – que reproduzo aqui – dos seus funcionários com os melhores discos de 2013 (sim, comprei quase todos que eu não tinha), ainda estava em transe pelo efeito da exposição dos Chapman. Afinal, o que eu tinha visto (ou sentido, ou experimentado) de tão perturbador?

Ainda não encontrei a resposta – e, ao que tudo indica, vou entrar 2014 insistindo na pergunta. Mas aqueles figurinos horripilantes serviram ao menos para pontuar para mim a estranheza com que as coisas estão se encaminhando na cultura pop. Em um dos balanços que fiz deste ano (e que você pode conferir em praticamente todos os posts meus de dezembro), lamentei de maneira geral que as coisas estão cada vez mais superficiais e tolas – uma música de sucesso equivale a uma carreira, uma “notinha” equivale a uma notícia etc. Num certo sentido aqueles manequins dos Chapman também são superficiais e tolos. Mas eles estão lá para nos lembrar que toda a cultura pop agora parece ser direcionada a eles.

Quem são aquelas figuras? Ora, medíocres reacionários (KKK) disfarçados de “hipsters” (lembra das meias coloridas?). São os anônimos medíocres que assombram incógnitos pela internet, as cabeças vazias que andam fazendo e consumindo o pop, os advogados míopes do nivelamento da cultura “por baixo”. E identificar esses seres nos torna muito diferentes deles? – perguntam os mais cínicos. Bem, eu tenho que achar que sim. Se não, não valeria a pena sequer ter chegado até aqui. Contudo, não desanimo!

São caminhos estranhos que não aguardam ali na esquina, logo que virarmos 2014. Mas também não deixam de ser divertidos. Mesmo na música mais ridícula, no humor mais degradante, na performance mais constrangedora, há sempre uma certa graça – que talvez não sobreviva até 2015, mas pelo menos nos ajuda a atravessar mais 12 longos meses de dor e prazer na cultura pop!

Um bom descanso para você – retomamos aqui dia 06 de janeiro. Fecho aqui com uma imagem linda da exposição de Mira. E lembre-se: todo ano novo é feliz!



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